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V+J - Retiro ANUAL – O.S.F.S.

São Francisco de Sales em seu tempo
A partir de 1517 ocorrem dolorosas divisões no mundo cristão:

- Ruptura liderada por Martinho Lutero (1483-1546) na Alemanha
- Ruptura liderada por João Calvino (1509-1564) na França
- Cisma Anglicano, iniciado por Henrique VIII (1491-1547), na Inglaterra

- Segue-se um período de crescente polarização e guerras religiosas.
- A Igreja Católica reagiu com o Concílio Ecumênico de Trento (1545-1563), com
diversos intervalos, buscando definir melhor a “identidade católica”.
- De modo bem geral, temos aí o fundo histórico em que nasceu e viveu Francisco
de Sales.

Postura básica de Francisco de Sales


- Atitude de abertura para os novos tempos, buscando discernir a vontade de Deus.
- Revelou-se um humanista cristão, mantendo-se fiel ao tesouro espiritual da Patrística e dos grandes mestres espirituais da Idade Média.
- Reconhece a grande importância da renovação que começa no interior da pessoa humana, vendo a pessoa humana como um todo integrado, buscando superar o dualismo corpo & alma.
- Numa época em que predominava a apologia cerrada, Francisco de Sales é testemunha de um pastor compassivo, reconciliador, atuando com a força da bondade, mansidão e compreensão.
- Promovia o diálogo, sereno e convincente. Teve três encontros com Teodoro de Beza, representante de Calvino em Genebra.
- Num ambiente em que reinava a grosseria no modo de ser, tensões políticas e religiosas, Francisco surge como um oásis: uma presença que transmite paz, mansidão, alegria... e causava admiração e fascínio,... Mas outros se escandalizavam.

Trazendo para hoje...


São muitos ensinamentos que encontramos no tesouro da espiritualidade salesiana.“Vivemos um momento histórico marcado por uma inegável “ruptura cultural” de dimensões planetárias. As mudanças em curso são tão céleres que mal conseguimos acompanhá-las. Todo um modo de viver, até há pouco tido como ideal, começou a ser questionado. Literalmente, tudo está sendo colocado numa perspectiva de provisoriedade e “liquidez” e, consequentemente, carece de sólidas referências existenciais. Por toda parte surgem perguntas fundamentais sobre o sentido da vida” (José Matos, H.C., Ao Amor pelo Amor, Mazza, 2021, Belo Horizonte, p. 149).

“Não raras vezes, o próprio ser humano é visto como um simples “bem de consumo” que, após o uso, pode ser “descartado”. Para muitos, a sacralidade da vida e sua dimensão transcendente se perdeu. Papa Francisco fala de uma ‘globalização da indiferença’, tanto em relação à pessoa humana quanto à Natureza no seu todo.

A ideologia de mercado foi imposta como referência quase absoluta no relacionamento humano, tornando-se um critério decisivo no intercâmbio social. De outro lado, a tecnologia informática contém em si o perigo de substituir a comunicação entre as pessoas por contatos meramente virtuais, onde o indivíduo pode esconder sua identidade atrás de falsos perfis, sem assumir maiores compromissos” (ibidem).

“Não queremos negar ou subestimar os grandes avanços que a informática nos trouxe com possibilidades de comunicação antes inimagináveis, mas também não podemos fechar os olhos para suas limitações e o risco de empobrecer sensivelmente nossa convivência humana. Não é fora de propósito temer o surgimento de ‘cristãos virtuais’ que se alimentam de belas mensagens e teorias edificantes, mas são incapazes de ‘colocar a mão na massa’. Constatamos (também entre pessoas consagradas!) uma crescente contradição entre o ser e o fazer, entre a realidade e a aparência. ‘Na cultura dominante – escreveu Papa Francisco – ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial e provisório. O real cede lugar à aparência’ (EG, n. 62)” (ibidem, p. 150).

“Mais do que nunca, soa alto o grito por interiorização, a ânsia de redescobrir os derradeiros valores da existência, o desejo por horizontes que ultrapassam os interesses imediatos. É neste contexto que a pessoa e a mensagem de Francisco de Sales adquirem uma grande atualidade. Seu pensamento, sua orientação humana e espiritual e seus escritos ganham surpreendente relevância para os cristãos de nossos dias.

O Bispo de Genebra é, antes de tudo, uma pessoa íntegra que vive coerentemente aquilo que transmite aos outros mediante sua palavra, ação e escritos. O que nos atrai nele é a transparência, a serenidade, a paciência, a simplicidade, o equilíbrio, a cordialidade, o bom senso, a equanimidade, a valorização das virtudes humanas, particularmente a bondade e a finura no trato, a alegria e o otimismo” (ibidem).

Nascimento, crise e humanismo

Francisco de Sales nasceu quatro anos após o término do Concílio de Trento. Seu pai, Francisco de Boisy tinha 44 anos de idade, e sua mãe, Francisca de Sionnaz, apenas 15 anos. Foi o primogênito de doze filhos, cinco dos quais morreram logo após o nascimento.

Sempre muito dedicado aos estudos, sua vida espiritual foi marcada em 1584 por um curso bíblico sobre o Cântico dos Cânticos em Paris e, depois em Pádua, pelo diretor espiritual, o jesuíta Antônio Possevino, que desperta nele o gosto pela Bíblia e a mística.

A crise

Ainda em Paris, Francisco enfrentou, por seis semanas (dezembro de 1586 e janeiro de 1587), uma forte crise existencial, relacionada a dúvidas sobre a salvação, influenciada pelas teorias calvinistas, relacionadas à doutrina da predestinação. Isso o levou a um esgotamento mental e físico. Mais tarde, atribuiu sua cura à intervenção de Nossa Senhora, na igreja de Saint-Étienne-des-Grès, em Paris, onde se ajoelhou em oração perante uma famosa estátua de Nossa Senhora do Livramento, ao rezar o Memorare, o piissima Virgo Maria. Aí consagrou-se à Virgem Maria e decidiu dedicar sua vida a Deus através de um voto de castidade. Certamente a experiência de Deus misericórdia e amor o influenciaram decisivamente em toda sua vida. Sua intensa e constante vida na presença de Deus, seu equilíbrio constante, sua serenidade inalterável e paciência imperturbável em meio às contrariedades eram características que nele se ressaltavam. Aonde ele fosse, parecia que Deus ia junto com ele.

Humanismo


Certamente uma das contribuições da espiritualidade salesiana para nossos dias é o que podemos chamar de Humanismo Salesiano. No entanto, nos parece oportuno fazer uma distinção:

O que é Humanismo, nos tempos de São Francisco de Sales?

O humanismo foi um movimento intelectual iniciado na Itália no século XV com o Renascimento e difundido pela Europa, rompendo com a forte influência da Igreja e do pensamento religioso da Idade Média. Em um sentido amplo, humanismo significa valorizar o ser humano e a condição humana acima de tudo. Tal movimento colocava o homem no centro, ressaltando suas capacidades individuais. Usa o modelo experimental como forma de aproximar-se da verdade. Centra-se no homem, em oposição ao teocentrismo. Por isso, em certo sentido, coloca-se como inimigo da Igreja. O humanismo rompe com os limites religiosos impostos pela Igreja, criando um novo paradigma cultural na Europa.

As três principais características do Humanismo são: o Antropocentrismo, o Racionalismo e o Cientificismo.

Apenas o próprio homem pode determinar o critério do que é virtude ou pecado, e não uma autoridade a ele transcendente.

O humanismo salesiano

O humanismo salesiano é teocêntrico. O ser humano busca naturalmente a Deus, diz São Francisco de Sales (TAD).

Mais precisamente, poderíamos dizer que o humanismo salesiano é cristocêntrico:

-“O coração é a fonte das ações e são estas exatamente qual é o coração... Quem abriga Jesus no coração, tê-lo-á também em suas ações exteriores... Filoteia, antes de tudo quisera gravar em teu coração estas palavras sacrossantas: Viva Jesus!” (Filoteia, III, cap. 23).

-“Eu vivo, mas não sou eu já o que vive, pois Cristo é que vive em mim” (Gl 2,20; Filoteia, III, cap. 23).

Portanto, entendemos como humanismo salesiano o ser humano em seu sentido pleno, vivendo a partir de Deus e tendo Nele a fonte de sua vida cotidiana.

Contribuições para hoje

Olhemos para algumas contribuições relevantes da pessoa, do pensamento, da orientação humana e espiritual de São Francisco de Sales para o mundo de hoje. Além de fazer-nos notar o valor e a sacralidade da vida humana, diante da cultura do descarte, eis algumas contribuições específicas a ressaltar:

- Sólidas referências existenciais diante da rapidez e ‘liquidez’ do mundo de hoje
- Busca de um sentido da vida
- Promoção do relacionamento e do diálogo sadios, num mundo da tecnologia informática
- A fortaleza da interioridade: a renovação começa do interior
- Oferta de valores que ultrapassam o imediato, e que plenificam a vida humana
- Pastores que sejam compassivos, testemunhos do amor e da bondade de Deus
- Abertura para novos tempos e discernimento da vontade de Deus
- O cuidado com a casa comum

Sólidas referências existenciais diante da rapidez e ‘liquidez’ do mundo de hoje


“Quer elevemos nosso espírito à contemplação, a fim de repousarmos em Deus, quer nos exercitemos na prática das virtudes para sermos úteis ao próximo com nossas boas obras, façamos uma ou outra coisa de maneira que só a caridade de Cristo nos impulsione. É este o sacrifício perfeito da purificação espiritual, que não se oferece em templo feito por mão humana, mas no templo do coração onde Cristo Senhor entra com alegria” (José Matos, H.C., Ao Amor pelo Amor, Mazza, 2021, Belo Horizonte, p. 153).

“Os que estão com febre não acham bom nenhum lugar; não ficaram ainda um quarto de hora num leito e querem outro; não é o leito que cria empecilhos, é a febre que, por toda parte, os atormenta. A pessoa que não tem a febre da vontade própria se contenta com tudo” (Vidal, F. Às Fontes da alegria com São Francisco de Sales. São Paulo: Loyola, 1978, p. 78-79).

Uma vez, ao ser consultado sobre fazer sacrifícios e sobre introduzir a prática do andar descalço nas casas religiosas, Francisco de Sales disse: “Que seja permitido o uso de sapatos, uma vez que é mais necessário reformar a cabeça do que os pés” (Cf. Camus, J. P. Espírito e Doutrina de SFS, Doutor da Santa Igreja. São Paulo: Livraria Salesiana Editora, 1950, p. 151-152).

A uma senhora que tinha altos e baixos, e que estava numa fase de desânimo, ele diz: “Sê somente corajosa, filha muito querida. Nos roseirais espirituais as coisas se passam diversamente do que ocorre nos corporais. Nestes os espinhos duram e as rosas passam; naqueles, os espinhos passarão e as rosas hão de ficar” (Vidal, F. Às Fontes da alegria com São Francisco de Sales. São Paulo: Loyola, 1978, p. 178-179).

A uma Irmã, que se mostrava vacilante e apreensiva, Francisco diz: “Enche todo o teu coração de coragem, e tua coragem de confiança em Deus; aquele que te deu os primeiros atrativos do seu sagrado amor nunca te abandonará se nunca o abandonares” (ibidem, p. 237).

Francisco toca na questão de usar um mecanismo de fingimento sutil: “Muitas vezes dizemos que não somos nada, que somos a própria miséria e lixo do mundo; mas ficaríamos bem pesarosos se nos tomasse ao pé da letra e que dissessem que somos justamente isso que dizemos ser... se tais palavras não saem de um espírito extremamente persuadido da verdade de sua própria miséria, são a flor da mais fina de todas as vaidades” (ibidem, p. 64).

“Quer saber qual é o tempo mais apropriado para servir ao Senhor? É o momento presente, agora mesmo. Este é o verdadeiro tempo, pois o passado já não nos pertence e o futuro não está ao nosso alcance. O tempo melhor para servir ao Senhor é o momento de agora. Se quiseres recuperar o tempo perdido, empenha-te, com fervor e diligência, no tempo que te resta” (SFS, Sermões 16; O.C. IX, p. 132, em Todos os dias com São Francisco de Sales, p. 90).

Busca de um sentido da vida

É pelo amor, e somente pelo amor, que podemos tornar-nos um alter Christus, dizia o Salésio, uma vez que só a caridade dá o sentido derradeiro à vida” (José Matos, H.C., Ao Amor pelo Amor, Mazza, 2021, Belo Horizonte, p. 150-151).

“Em geral constatamos que os religiosos promovem inúmeros encontros de trabalho, mas têm dificuldade de se retirar para repousar na presença de Deus e de encher-se de sua paz. E é aí que aparece o perigo de cair no ativismo que esgota e arruína a pessoa do consagrado, criando um grande vazio interior” (ibidem, p. 146).

Promoção do relacionamento e do diálogo sadios, num mundo da tecnologia informática


“Basta amar bem para falar bem” (SFS) (Bianco, Enzo. Francisco de Sales: o santo da mansidão. São Paulo: Ed Salesiana, p. 183).

“O humanismo devoto descobre, na pessoa de Jesus e no seu duplo mandamento de amar a Deus e ao próximo, o modelo e paradigma para todo o comportamento humano” (cf Fiorelli, SFS: Doctor of the Love of God) (p. 67-68).

A devoção, quando verdadeira, ela é humanizadora e, como tal, contagiante. A uma senhora, Francisco escreve que ela deve tornar a devoção “amável a todos. Tu a tornas amável se a tornas útil e agradável. Os doentes gostarão da tua devoção se forem caridosamente consolados com ela; tua família, se te reconhecer mais cuidadosa e desvelada no seu bem, mais amável ao repreender, e assim por diante; seu marido, se ele vir que à medida que a tua devoção cresce és mais cordial no que lhe diz respeito e mais suave na afeição que lhe dedicas; teus pais e amigos, se reconhecerem em ti mais franqueza, tolerância, condescendência com as suas vontades que não se opuserem à de Deus. Numa palavra, espera-se que tanto quanto seja possível, tornes atraente a tua devoção” (Vidal, F. Às Fontes da alegria com São Francisco de Sales. São Paulo:
Loyola, 1978, p. 263).

No seu tempo, “algumas pessoas repreendiam o santo bispo por julgá-lo bondoso demais e excessivamente conciliador. Sua resposta era que as pessoas são movidas mais pelo amor e pela caridade do que pela severidade e pelo rigor, e que sempre teve que se arrepender pelas pouquíssimas vezes que recorreu a palavras mais duras. Atitudes de mansidão e misericórdia para com o próximo não significam fraqueza ou bonacheirice, pelo contrário, demonstram fortaleza de ânimo e domínio de si” (Jeanguenin, G. São Francisco de Sales, “Fioretti”. Brasília: SDB, 2014, p. 9).


A fortaleza da interioridade: a renovação começa do interior

“Temos diante de nós um cristão de profunda vida interior e de intensa atividade apostólica. De fato, Francisco de Sales cultivou, com esmero, a interioridade ou ‘devoção’, tendo em vista sua transformação in Christo (José Matos, H.C., Ao Amor pelo Amor, Mazza, 2021, Belo Horizonte, p. 150-151).

(...) No processo de beatificação do Salésio, iniciado em Paris, no mês de abril de 1628, São Vicente de Paulo, que foi amigo íntimo do Bispo de Genebra, testemunhou:
‘Observei nele o ardente desejo de se assemelhar ao Filho de Deus. Aliás, conformou-se tanto ao seu Mestre que, inúmeras vezes, com incontida admiração, eu me perguntava como uma simples criatura podia chegar a tão alto grau de perfeição, considerando a fragilidade humana’ (Dodin, A. Francisco de Sales e Vicente de Paulo: dois amigos, S. Paulo: Loyola, 1990, p. 74) (ibidem).

Cada pessoa pode aspirar à santidade. Mas para isso não bastam boas intenções. É preciso assumi-las decididamente. “Nunca devemos deixar de fazer bons propósitos, mesmo sabendo que será difícil executá-los. Façamos as nossas resoluções com tanta firmeza como se tivéssemos suficiente coragem para sair bem sucedidos”, pois sabemos que a força do Senhor vai operar em nós (OSFS. Todos os dias com SFS, p. 276).

Para alcançar a vida de santidade – vocação à qual todos somos chamados – requer-se que a pessoa entre num processo que inclui três elementos, intrinsicamente vinculados entre si:
1) A união com Jesus,
2) a transformação interior em outro Cristo e
3) a fiel observância do duplo mandamento do amor.

“União com Jesus começa pela nossa reflexão orante sobre sua pessoa e obra de salvação. Isso, por sua vez, leva à nossa transformação gradual em outro Cristo. Na medida em que isso ocorre, começamos a viver e agir cada vez mais conforme Jesus na sua relação de amor com Deus e com o próximo” (cf. Fiorelli, Salesian Mysticism).

Para Francisco, a verdadeira devoção humaniza: leva à solidariedade e é aberta à transcendência. Sua espiritualidade leva a uma constante busca de Deus e a um ardente desejo de estar com o Senhor. A pessoa devota tem os olhos fixos em Deus, pois a vida de santidade é dom e obra do Senhor. Tal dinâmica de vida conduz a uma constante purificação das segundas intenções e do que é inautêntico. Isso inclui um processo de conversão interior. Tal vida autêntica conduz à paz de coração, que se manifesta na serenidade e na paciência, assim como na perseverança na prática do bem (José Matos, H.C., Ao Amor pelo Amor, Mazza, 2021, Belo Horizonte, p. 133).

Para São João Bosco, a qualidade das obras apostólicas está diretamente relacionada com a qualidade da vida espiritual de seus membros e, mais especificamente, da oração e sua forma específica de meditação (José Matos, H.C., Ao Amor pelo Amor, Mazza, 2021, Belo Horizonte, p. 145).

Promoção de valores que ultrapassam o imediato, e que plenificam a vida humana

“Oh! Como é venturosa a alma que se porta com fidelidade e resignação nos desamparos e securas sensíveis! Aqui está o crisol, onde perfeitamente se refina o ouro da caridade mais pura. E bem-aventurado aquele que sofre com paciência esta prova; porque, sendo assim depurado, receberá por fim a preciosa coroa que Deus promete aos que deveras o amam e são por ele amados” (Cf. Camus, J. P. Espírito e Doutrina de SFS, Doutor da Santa Igreja. São Paulo: Livraria Salesiana Editora, 1950, p. 102).

Às Irmãs da Visitação Francisco recomenda: “Securas, tristezas, desamparos interiores, noite do espírito, nada disso vos perturbará a paz, porque esses estados, se por um lado nos encobrem a visão de Cristo, não nos privam da sua presença” Em suma: “Não se deve pedir nem recusar coisa alguma, mas deixar-se ficar nos braços da Providência divina, sem se entreter com nenhum desejo, e sim querendo o que Deus quer de nós... Toda a perfeição está na prática deste ponto” (ibidem, p. 217 e 114).

“Uma pessoa que se apega ao exercício da meditação, quando por um ou outro motivo tem de interrompê-lo, sai (da meditação) aborrecida, aflita e espantada, enquanto outra, que tem a verdadeira liberdade, sai com uma fisionomia inalterada e um coração gentil e afável, sem mostrar incômodo porque tudo lhe é indiferente: servir a Deus meditando ou servi-lo suportando o próximo que causou o transtorno”. Sabe que ambas as coisas expressam a vontade de Deus, mas, nesse caso, suportar o próximo é uma atitude mais de acordo com os ensinamentos do Senhor (Vidal, F. Às fontes da alegria com São Francisco de Sales, Loyola, p. 103) (p. 110).

Conversão requer mente aberta e intenção de acordo com a vontade de Deus. As boas obras sejam praticadas em espírito de humildade, ocultando-as, quanto possível, aos olhos dos homens, para serem vistas só por Deus. Francisco desejava que nada se fizesse pelo baixo fim do louvor humano. Ele nos ajuda a sairmos da dinâmica da autorreferencialidade, a qual escraviza, e insere-nos na dinâmica libertadora do amor. É o caminho da autêntica felicidade e realização humana (José Matos, H.C., Ao Amor pelo Amor, Mazza, 2021, Belo Horizonte, p. 134).

Pastores que sejam compassivos, testemunhos do amor e da bondade de Deus

O Doctor Amoris deixa transparecer em sua pessoa e obra que o amor verdadeiro se manifesta num coração ‘manso e humilde’ (Mt 11,29), revestido da doçura de uma pessoa que se tornou, ela mesma, amável! Na amabilidade de Jesus, os Evangelhos nos revelam quem Deus é na sua profundidade: um Pai compassivo que ama sem medida” (José Matos, H.C., Ao Amor pelo Amor, Mazza, 2021, Belo Horizonte, p. 153).

Charles de Foucauld (1858-1916), o ermitão do deserto e ‘irmão universal’, a ser canonizado em breve, dizia que ‘o amor é o meio mais poderoso de atrair o amor, porque amar é o meio mais poderoso de fazer-se amar...’. Numa das suas reflexões comenta: ‘Meu apostolado deve ser o apostolado da bondade. Quem me vê deve pensar: já que esse homem é tão bom, sua religião deve ser boa. E se me perguntarem porque sou manso e bom, devo responder: porque sou servo de um outro muito melhor do que eu. Ah! Se vocês soubessem como é bom o meu Senhor Jesus. Gostaria de ser tão bom, que se pudesse dizer: se o servo é assim, como não será, então, o Senhor?’” (ibidem, p. 155-156).

“É com a caridade que se deve abater as muralhas de Genebra, é com a caridade que é preciso invadi-la, com a caridade é que se deve reconquistá-la” SFS (Bianco, Enzo. Francisco de Sales: o santo da mansidão. São Paulo: Ed Salesiana, p. 125).

No processo de beatificação de Francisco de Sales, Joana de Chantal disse, em seu depoimento: “Reconheci claramente, pelas palavras e pelas ações de nosso bemaventurado pai, que o amor de Deus exercia soberana autoridade e pleno domínio sobre todas as suas paixões e afeições. Sustento ser verdade notória e pública que todos os atos de sua vida foram o efeito e a prova deste santo amor de Deus, que dominava tão poderosamente em sua alma” (Margerie, Amadée de. S. Francisco de Sales, Bispo de Genebra e Doutor da Igreja. Juiz de Fora: Livraria Editora “Lar Católico”, 1942, p. 67).

Francisco de Sales dá muita importância à bondade, à tolerância e à paciência nos relacionamentos humanos. Ele, pessoalmente, encarnava tais virtudes em sua vidacotidiana, o que grandemente contribuía para a aproximação, a reconciliação e a paz. É o Papa Francisco que o confirma, dizendo que o cultivo da bondade “dá uma consciência tranquila, uma alegria profunda, mesmo no meio de dificuldades e incompreensões. E até perante as ofensas sofridas, a bondade não é fraqueza, mas verdadeira força, capaz de renunciar à vingança” (FT n. 243).

Muitas vezes a alegria vem acompanhada de jovialidade e de humor, que são qualidades de quem está de bem com a vida e sabe relativizar o que não é essencial para a felicidade. Francisco era uma pessoa alegre e, por isso, seu espírito de humor tantas vezes se fazia notar. Conta-se que um dia passava pela rua um homem muito rico e vaidoso. Montado num cavalo branco, passava de modo solene, exibindo com orgulho uma armadura brilhante. Francisco, observando, via que as pessoas, tomadas de respeito, se inclinavam em sinal de respeito. Sem perder a pose, exclamou em alta voz: “Pobrezinho, não se dá conta de que estão saudando seu cavalo e sua armadura, e não a ele!” (Jeanguenin, Gilles, São Francisco de Sales, Fioretti, SDB p. 48).

Abertura para novos tempos e discernimento da vontade de Deus

Às Irmãs Visitandinas, que o rodeavam no seu leito de morte: “O que temos de fazer é não pedir nada, não recusar nada, mas procurar aceitar com gratidão tudo o que aprouver a Deus dar-nos”. (Margerie, Amadée de. S. Francisco de Sales, Bispo de Genebra e Doutor da Igreja. Juiz de Fora: Livraria Editora “Lar Católico”, 1942, p. 183)
“É um erro pensar que as ocupações diárias os afastam do amor divino... Deixar de as fazer sob o pretexto que dificultam a oração, o silêncio e o recolhimento é um grande engano. Quem age assim busca, no fundo, mais a si mesmo do que a Deus. Ser omisso aos deveres do próprio estado, alegando desejar maior devoção e piedade, é inverter as coisas. Deus quer ser servido segundo a sua vontade e não segundo os nossos caprichos. Santificamo-nos, de verdade, quando a vontade divina prevalece sobre a nossa vontade” (Cf. Camus, J. P. Espírito e Doutrina de SFS, Doutor da Santa Igreja. São Paulo: Livraria Salesiana Editora, 1950, p. 225).
Francisco de Sales não duvidava que “a vontade de Deus era absolutamente tudo para Jesus. Também deve ser tudo para quem, hoje, vive Jesus. Qualquer que seja a sua expressão, a vontade divina e o nosso agir para cumpri-la ou sofrer sem abraçá-la, é uma questão que Francisco chama de santa indiferença. Semelhante a Jesus, nós simplesmente confiamos em Deus e aceitamos que, como já sabemos, tudo ficará bem em suas mãos. Foi assim que Jesus viveu sua vida e aceitou a sua morte... A sabedoria cristã é encontrada nesta verdade e a santidade cristã é realizada nesta união” (Fiorelli, Lewis. Inspired Common Sense Seven Fundamental Themes of Salesian Spirituality. OSFS: Desales Resources and Ministries, 2021, p. 60-61).

O cuidado com a casa comum


Hoje a amabilidade não pode ficar limitada às relações inter-humanas, mas deve abranger igualmente o cuidado para com a Casa Comum, a Mãe Terra. O empenho por uma ecologia integral requer abertura em relação a categorias que transcendem vantagens materiais friamente calculadas. Papa Francisco comenta que devemos aproximar-nos da Natureza com admiração, afeto e encanto (José Matos, H.C., Ao Amor pelo Amor, Mazza, 2021, Belo Horizonte, 156).
‘Se deixarmos de falar a linguagem da fraternidade e da beleza na nossa relação com o meio ambiente, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo que existe, então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude’ (LS, n. 11)” (ibidem).

Por fim...


“Transcrevemos o perfil do Doctor Amoris, traçado, com sensibilidade e delicadeza, pelo Papa Paulo VI (1963-1978), na sua Carta apostólica Sabaudiae Gemma (29-1-1967), por ocasião do 4º Centenário do Nascimento de São Francisco de Sales.
O santo Bispo de Genebra era dotado de ‘aguda intuição de espírito; inteligência forte e esclarecida; juízo penetrante; admirável bondade e gentileza; doce sorriso no rosto e na palavra; ardor silencioso de espírito sempre ativo; rara simplicidade de vida, com modesta referência à sua descendência nobre; paz serena e tranquila; moderação sempre inalterável e segura, mas associada à fortaleza – a doçura nasce de quem é forte – com a qual sabia amar ternamente, mas não desprovido de firmeza a fim de alcançar seu objetivo sublime elevação de mente e amor à beleza, ansioso para dar aos outros os bens mais elevados: o céu e a poesia; zelo quase ilimitado pelas almas e amor de Deus que, qual sol fulgurantíssimo antecipa em si mesmo as demais virtudes. E todos esses donssão sublimados e aumentados pela superabundância da graça divina. Eis aí em linhas mestras a imagem da nobre figura de São Francisco de Sales’.

Pe. Aldino J. Kiesel, OSFS