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Análise
de Conjuntura – Maio de 2012 |
Apresentação
Em nível internacional, os impactos da eleição
de um socialista na França nos rumos econômicos
da União Europeia e a permanência no poder
de Assad na Síria mereceram aprofundamento na
Análise ora apresentada. Conclui-se esse âmbito
com breve comentário sobre as eleições
presidenciais norte-americanas.
Na análise da América Latina destacam-se
aspectos conjunturais da política no Peru e Colômbia,
a situação eleitoral na Venezuela e no
México, as estatizações na Bolívia
e Argentina, e três questões diferentes
sobre direitos humanos no continente: defesa da vida;
revelados documentos secretos da operação
Condor; e situação de pobreza, marginalização
social e política em que se encontram as populações
indígenas em vários países da América
Latina.
A análise do significado da redução
dos juros realizados pelo Governo Federal e suas implicações
para as relações de poder e com a inflação
abre a Conjuntura Nacional. Em seguida, o desenrolar
dos fatos alusivos à CPMI sobre as operações
perpetradas por Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos
Cachoeira, e o envolvimento do Senador Demóstenes
Torres. Este plano de análise é encerrado
com a abordagem do movimento ?Veta, Dilma?, após
a aprovação pela Câmara Federal
de proposta para o novo Código Florestal e com
a explicitação de alguns dados iniciais
do Resultado da Amostra do Censo 2010 que revelam mudanças
importantes na realidade brasileira.
No âmbito dos Movimentos Sociais, aborda-se o
resultado positivo das votações no STF
acerca de terras indígenas do território
Pataxó Hã Hã Hãe na Bahia
e da política de cotas para negros nas Universidades
Federais, criando expectativa para outras votações
emblemáticas. Segue-se, o debate sobre como aplicar
no país a convenção 169 da OIT
que preconiza que os povos indígenas, quilombolas
e de outras comunidades tradicionais deverão
ser consultados sobre iniciativas governamentais e legislativas
que impactem seus territórios ou suas culturas
e modos de ser.
Sobre as Notícias do Congresso foram destacados
os temas: recursos contra a aprovação
da ADPF 54 (despenaliza aborto de fetos anencefálicos);
reforma do Código Penal; PEC do Trabalho Escravo;
Estatuto da Diversidade Sexual; MP que altera limites
de oito áreas ambientais; validade nacional da
Declaração de Nascido Vivo; Erradicação
do Trabalho Infantil; e Prescrição de
crime sexual contra criança.
Excepcionalmente, o texto traz também um anexo
que sintetiza alguns dados do Resultado da Amostra do
Censo 20120.
Internacional
A Europa imobilizada
Duas visões se confrontam: austeridade versus
relançamento econômico. A origem da crise:
num contexto global de crise (2008) mal resolvida, a
Grécia, com enormes déficits públicos,
se declara insolvente, incapaz de pagar suas dívidas.
Essa situação afetava os 16 outros países
da União Europeia. Ocorreu um efeito-dominó:
a crise se estendeu aos países com uma situação
financeira frágil: Espanha, Portugal, Itália
e Irlanda. Bilhões de euros, virtuais, especulativos,
fugiram, com medo de ver o euro desvalorizado e os bancos
fechados.
A reação dos países da zona do
euro foi solidária e interessada. Não
se podia abandonar um país membro afundando.
Seria negar a utilidade da zona do euro e aumentar os
riscos para todos. A dívida da Grécia
foi ?perdoada e, no total, Atenas recebeu 100 bilhões
de euros. No ápice da crise, ministros das finanças
e chefes de Estado passaram horas e dias buscando a
melhor ?saída?. Em maio (5/5/2012), 25 países
assinam o ?Pacto Orçamental?, que tolera um déficit
mínimo de apenas de 0,5% das receitas. O Pacto
foi elaborado, sob a pressão do tandem Merkel/Sarkosy
(?Merkosy?). Em muitos pontos, o Tratado parece com
o (fracassado) ?Acordo de Washington? (1989). As medidas
do pacto se assemelham em muitos pontos aos que o FMI
impôs aos países latino-americanos nos
anos 1980 e 90: exaltação da austeridade,
privatizações, redução dos
gastos públicos, redução dos Estados,
reformas do trabalho, para voltar ao equilíbrio.
São medidas neoliberais que irão aumentar
ainda mais a recessão.
O novo presidente francês, François Hollande,
criticou muito esse acordo quando foi adotado em Bruxelas,
dizendo que pedirá uma revisão do Tratado.
O neoliberalismo não pode resolver os numerosos
desafios em todos os níveis. O presidente Hollande
considera que para superar a crise é necessário
um relançamento econômico, com investimentos
públicos, dando um toque de keynesianismo a uma
União Europeia cansada do rigor excessivo e sufocante.
Ângela Merkel repetiu que o Tratado não
é renegociável, que tinha sido aprovado
por 25 países (dos 27 da União Europeia)
e que devia agora ser aplicado. A Alemanha não
quer um crescimento pelos déficits, mas sim pelas
reformas estruturais.
Para a Grécia, Ângela Merkel considera
que o plano de ajuda europeu se configurava no melhor
caminho para enfrentar a crise. ?Essa política
expressa uma grande solidariedade européia por
uma parte e exige enormes esforços do lado dos
gregos, disse Merkel.
O dia seguinte à vitória de Hollande,
Paul Krugman, prêmio Nobel 2008, escreveu no editorial
do New York Times: ?Os Franceses se revoltam e os Gregos
também. Enfim, já era tempo! Berlim pode
não gostar desta conclusão: ?parece que
os Alemães não têm mais o apoio
indefectível do Elysée. E isso, podem
crer ou não, significa que o euro e o projeto
europeu têm, agora, melhores chances de sobrevivência?.
Por que Assad se mantem no poder na Síria?
No contexto da primavera árabe, onde regimes
e chefes criminosos foram presos ou mortos, como explicar
que o tirano Assad ainda se mantenha no poder em Damas?
Já se fala de 12 mil mortos e de mais de 150
mil presos. Apesar dos conselhos amigos lhe sugerindo
deter a repressão sanguinária para atenuar
a sua imagem de ?carrasco?, em nível internacional,
apesar da força da oposição armada
(sustentada pelos sunitas iraquianos e pelo Qatar),
ou apesar das condenações da ONU ou da
Liga Árabe, apesar da destruição
progressiva do país, Assad desafia os seus adversários
internos e externos, manifestando a todos que não
tem a menor intenção de deixar o poder.
O presidente e seus principais aliados são alauítas,
minoritários na população. Eles
temem o que poderia acontecer se os sunitas, majoritários
na oposição, tomassem o poder. A metade
da população, o exército e outras
forças ainda são leais ao presidente.
Neste contexto a economia vai mal. Poderia acontecer
que os pequenos produtores e comerciantes se afastassem
do presidente. Para muitos, Assad representa um fator
de estabilidade política.
Os países denunciam de forma unânime o
ditador, todavia não querem que Assad renuncie!
A Arábia Saudita descarta uma intervenção
militar. É que ela teme o que pode acontecer
se Assad for derrubado. Para Israel, Assad tem sido
um vizinho tranquilo que, mesmo tendo fornecido armas
ao Hizbollah durante alguns conflitos, não deixa
os Palestinos entrarem no seu país. Assad representa
uma segurança na fronteira norte.
Washington fala duro, mas ?não tem apetite para
uma intervenção militar. Foi um alívio
para a Casa Branca quando a Rússia vetou uma
resolução da ONU que propunha intervenção
para superação da crise. O ministro das
relações exteriores francês, lembrando
o passado da França na Síria, gritou e
gesticulou, denunciando o massacre, mas não mencionou
um eventual enviou de soldados.
Na Turquia, que procura melhorar suas relações
na região, o ministro do Exterior declarou: ?A
Turquia não provê armas, nem apóia
os desertores do exército?. Não quer uma
guerra civil em sua porta.
Ainda que as palavras sejam duras, ninguém quer,
de fato, que Assad vá.
Eleições nos Estados Unidos
As prévias do Partido Republicano definiram o
adversário de Barack Obama nas eleições
dos Estados Unidos. Uma opção mais conservadora,
próxima ao fundamentalismo, já presente
no pleito passado e viabilizada pelo ?Partido do Chá
não se efetivou. Definiu-se pela candidatura
de Mitt Romney, ex-governador de Massachusetts de tendência
mais moderada.
Pelo lado do Partido Democrata a candidatura de Obama
deixará de ser novidade como no passado. Obama
terá que defender seu governo e apresentar uma
proposta consistente para os próximos anos. Seu
governo se conduziu na estrutura demarcada no Governo
Bush sem operar transformações profundas
na forma administrativa do Estado. Isso o inibirá
em possíveis críticas do candidato do
Partido Republicano à estrutura administrativa.
Seus pilares são oriundos do Governo Bush.
Nestas eleições estarão em debate
os caminhos para a superação da fragilidade
econômica dos Estados Unidos que gerou o aumento
do desemprego e da população na linha
da pobreza agravadas pela crise financeira mundial em
suas diferentes ondas. Quanto à crise financeira,
vê-se alguma melhora nos Estados Unidos, contudo
a situação ainda é preocupante.
No que se refere à política externa, Obama
capitalizou o fato da morte de Osama Bin Laden, contudo
não assumiu um posicionamento decidido em relação
aos conflitos no Oriente.
Um possível exercício de acompanhamento
nos debates entre Obama e Romney poderia ser orientado
pela pergunta sobre a proposta dos candidatos em relação
à América Latina, países do Oriente,
política ambiental e enfrentamento da crescente
pobreza da população norte americana.
América Latina e Caribe
Conflito e Paz no Peru e na Colômbia influenciando
a política
No Peru se instalou uma crise momentaneamente no governo
de Ollanta Humala com a renúncia dos Ministros
do Interior Daniel Lozada e da Defesa Alberto Otárola.
Tais quedas se deram em função das mal
sucedidas ações do governo para conter
o avanço do grupo Sendero Luminoso, que conseguiu
sequestrar 36 trabalhadores da indústria petrolífera
no início de Maio. Os trabalhadores foram libertados
cinco dias depois em uma ação militar.
O grupo Sendero Luminoso não executava uma ação
desta envergadura há quase uma década.
Na Colômbia onde historicamente ocorrem confrontos
entre os governo e resistência armada como as
FARC, o governo de Juan Manuel Santos apresentou uma
queda de popularidade em pesquisa recente passando de
uma aprovação de 64% em novembro para
58% agora em maio. A pesquisa apontou desemprego, segurança
e custo de vida como razões para a queda de popularidade.
Há que se destacar também nessa pesquisa
de opinião a manifestação da maioria
dos entrevistados (53%) sugerindo que o governo deve
buscar o diálogo e a paz na interação
com as FARC. Em novembro esse percentual era de 47%.
Eleições presidenciais na Venezuela e
no México eleitorais, na Venezuela, têm
sido divulgadas com resultados muito diferentes. Há,
por exemplo, uma pesquisa em que Chávez aparece
30 pontos percentuais na frente do opositor Henrique
Capriles e, em outra, aparece em segundo com uma pequena
diferença de intenção de votos.
As pesquisas têm sido usadas como instrumento
de campanha e na maioria indica ampla vantagem de Chávez.
As eleições no México que ocorrerão
em julho continuam despertando atenção.
A candidata da coalização governista Josefina
Vázquez Mota do PAN (Partido Ação
Nacional) está em segundo lugar, tecnicamente
empatada com López Obrador, candidato de esquerda.
Em primeiro lugar está o Candidato Peña
Neto do PRI (Partido da Revolução Institucional).
Se os resultados eleitorais seguirem as atuais pesquisas,
o PRI, que governou o México por sete décadas
(1929 – 2000), poderá retornar ao poder.
Economia e segurança são os grandes temas
da campanha. A economia, pelo fato de o México
ter registrado diminuição significativa
em seu crescimento de 2010 (5,5%) para 2011 (3,9%) e
estar fortemente dependente da economia norte-americana.
A segurança, em função das dificuldades
do atual governo (Calderón) em lutar contra os
cartéis do narcotráfico.
Nacionalização de empresas na Bolívia
e Argentina
Chamaram atenção internacionalmente os
processos de estatização que ocorreram
tanto na Bolívia como na Argentina. Na Bolívia,
houve a estatização da Transportadora
de Eletricidade S.A. (TDE) – sob o argumento de
que a empresa investiu muito pouco no país nos
últimos anos e pela sua importância estratégica
para o desenvolvimento econômico do país,
sendo que atende 85% do mercado nacional e possui 73%
das linhas de transmissão na Bolívia.
Na Argentina, ocorreu a reestatização
da Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF). Considerada
como ação populista por uns, foi justificada
pela presidente Cristina Kirchner como sendo de interesse
público. Ambas eram empresas estatais no passado
e foram privatizadas. Agora, os governos retomam o controle
sobre o patrimônio e serviços dessas empresas.
Esses processos de nacionalização de empresas
são continuidade a uma série de outras
ocorridas ou em processo tanto na Bolívia e na
Argentina, como também na Venezuela e Equador.
Na Bolívia ocorreram em 2010 expropriações
de quatro empresas geradoras de energia e, antes, expropriações
nas áreas de gás, petróleo e mineração.
O temor em alguns mercados é desse processo dar
forças a movimentos que lutam pela reestatização
de outras empresas na América Latina, privatizadas
durante a onda neoliberal que imperou em governos passados
em diversos países, inclusive no Brasil. Aqui
há movimentos sociais que reivindicam a reestatização
de empresas como a Companhia Vale do Rio Doce.
Direitos Humanos na América Latina
Família, aborto e o direito de interromper a
vida de pacientes terminais estão entre os primeiros
temas sobre direitos humanos debatidos na Argentina.
Analistas avaliam que o governo de Kristina Kirchner
tem dado sinalizações contraditórias
sobre estes temas. Recentes deliberações
da Corte Suprema de Justiça a respeito do aborto
também têm provocado reações
de diversos setores, inclusive, acusando-a de usurpar
a função legislativa do congresso. Em
9 de maio, o Senado Argentino aprovou a Lei da ?Morte
digna?, que prevê a possibilidade de suspender
a hidratação e alimentação
de doentes terminais.
Em segundo lugar, a divulgação pela imprensa
de documentos secretos da Polícia Federal Argentina
sobre a Operação Condor (aliança
político-militar entre regimes militares da América
do Sul — Brasil, Argentina, Chile, Bolívia,
Paraguai e Uruguai montada nos anos 60 e atuante nas
décadas de 70 e 80) revela aspectos de como crimes
foram cometidos pelas forças repressivas da Argentina,
Uruguai e Chile contra militantes de algumas organizações
políticas desses países. Essa divulgação
é mais um passo na história desses países
para se resgatar a memória das atrocidades cometidas
em nome do Estado e a possibilidade de que seus responsáveis
sejam julgados.
Por último e, de altíssima relevância
para toda a América Latina, temos o pronunciamento
no mês de abril, de Alícia Bárcena,
Secretária Executiva da CEPAL (Comissão
Econômica para América Latina), que denunciou
a situação de pobreza, marginalização
social e política em que se encontram as
populações indígenas em vários
países da América Latina. Segundo ela,
tal situação não é resultado
de um momento, mas de uma discriminação
estrutural. São mais de 30 milhões de
indígenas em situação de discriminação.
Pode-se dizer que tal situação configura-se
como discriminação étnica e racismo
estrutural.
Nacional
Juros, inflação e poder.
As iniciativas e pronunciamentos da presidente Dilma
nas últimas semanas (marcantemente, o discurso
de 30 de abril) denotam uma inflexão na política
econômica, em termos de ênfase e de prioridades
entre objetivos complementares; parece querer iniciar
um tempo (em parte) novo, se comparado com a razoável
continuidade dos governos Collor, Itamar, FHC, Lula
– e o primeiro ano de Dilma.
Até agora, a política econômica
se baseava em juros altos e austeridade fiscal. A tenacidade
destes dois instrumentos macroeconômicos devia
garantir uma inflação baixa e a confiança
dos mercados internacionais na economia brasileira.
Os juros altos (por muito tempo, os mais altos do mundo)
se destinavam a atrair capital externo. Arguia-se que
a propensão média para poupar é
baixa no Brasil. Um dos papéis fundamentais dos
juros altos seria atrair a poupança externa,
para investimento no Brasil. De fato na prática
o sucesso deste intento foi modesto. O capital atraído
era, sobretudo, especulativo e voltado para o setor
financeiro da economia. E mais, não raro, poupança
interna seguia o mesmo caminho: empresários nacionais
preferiam colocar suas reservas no mercado financeiro,
em aplicações mais seguras e mais rendosas
que na produção (real) de bens e serviços.
Como os juros altos pesavam no serviço da dívida
pública, agiam de novo como tenazes junto com
a austeridade fiscal, para comprimir a capacidade do
governo de gastar em necessidades sociais, como educação
e saúde.
Estes juros altos e o conjunto da política econômica
(a ?confiabilidade do Brasil para os mercados externos)
garantiam um fluxo de aplicação externa.
No que os investidores externos cambiavam seus dólares
para os aplicarem em reais no Brasil, geravam no mercado
cambial um ?excesso? de dólares (em comparação
com o que ocorreria pelo jogo de mercado de importação
e exportação). Quer dizer, o preço
do dólar era ?pressionado para baixo? em relação
a seu valor em reais correspondente à força
das duas moedas em termos de bens e serviços.
O preço ?de mercado? do dólar em reais
no Brasil forçava para cima os preços
de nossas exportações e para baixo os
custos das importações gerando tensão
constante na balança de pagamentos. O pior disto
é que torna nossa indústria menos competitiva
do que poderia ser diante das importações.
Por outro lado, os juros altos eram dificuldade para
nossa indústria: o do custo do dinheiro. As indústrias
estrangeiras, com que as nossas competiam, tinham acesso
a recursos financeiros mais baratos (a juros mais baixos,
prazos mais longos, custos mais reduzidos de operação
financeira). Não era sem razão que empresários
nacionais não associados diretamente com capital
externo (como o falecido ex-vice-presidente José
de Alencar) pleiteassem a guinada que se está
tentando dar na política econômica.
Dilma quer criar condições para um crescimento
um pouco mais voltado para dentro e daí a pressão
sobre os bancos para reduzir os juros e os custos do
dinheiro (taxas de administração, entre
outros).
A nova forma de cálculo do rendimento da caderneta
de poupança para novas cadernetas ou novas aplicações,
faz parte da estratégia de redução
geral dos juros. Tradicionalmente os detentores das
cadernetas são em maioria pequenos poupadores,
mas não deixam de ser parte do mercado (interligado)
de oferta de poupanças para investimento.
Este processo almejado é um fato econômico,
de importantes aspectos políticos. Melhor examinado
se constata que é mais exato falar-se de um fato
político com aspectos econômicos decisivos.
O que Dilma está querendo fazer supõe
deslocamento de poder de fora do país para dentro,
do setor financeiro da economia para o setor produtivo
real. Em parte supõe, em parte induz este deslocamento
de poder – para ser bem sucedido.
Além da resistência de interesses atingidos,
o processo enfrenta dificuldades do momento econômico,
que ele encontra ou que induz.
Entre as dificuldades que encontra, pode-se citar a
queda do preço internacional dos produtos agrários
e minerais que o Brasil exporta – e que torna
mais complicada a evolução do câmbio.
Entre as dificuldades trazidas pela mudança mesma,
há o efeito colateral do aumento dos preços
das importações, pela redução
do fluxo de dólares e subida do valor deste em
termos de real. No médio prazo, este aumento
faz parte da correção que se visa, ao
reorientar demandas de bens importados para aqueles
nacionais. Mas no curto prazo, ao encarecer inevitavelmente
parcela do consumo e do investimento físico nacional,
contribui para inflação.
Caso Carlinhos Cachoeira-Senador Demóstenes Torres
e outros
Mais uma vez a sociedade brasileira se depara diante
de mais um caso de corrupção no País.
Um caso complexo e ainda em desvelamento. Cada dia novos
elementos surgem para escândalo dos que sonham
com critérios éticos na democracia.
Não é pretensão dessa Análise
apresentar um quadro completo da situação
Demóstenes-Cachoeira. Tudo partiu da empreitada
da Polícia Federal em coleta de dados, através
da Operação Vegas, em 2009, e completada
pela mais recente Operação Monte Carlo
com muitos desdobramentos.
A primeira operação detectou desvios envolvendo
o denominado ?Carlinhos Cachoeira, pseudônimo
de Carlos Augusto de Almeida Ramos, empresário
de jogos de azar, com uma relação espúria
com instituições variadas. As informações
colhidas pelas citadas Operações o relacionam
com o Parlamento Federal, via o Senador Demóstenes,
e com alguns deputados federais. Igualmente empresas
de alto porte estão implicadas; a título
de exemplo cita-se a empresa Delta, com atuação
em todo o país, com contratos bilionários
com o próprio Governo Federal através
do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento)
com projetos em andamento. E mais. As informações
fiscais, encaminhadas pelo STF e pela Fazenda à
CPMI, revelam um ?universo de empresas coligadas?, nas
quais Cachoeira tem participação acionária;
isto leva a crer que a evasão de divisas é
outro dos crimes praticados por ele.
A novela começou a ser revelada por meio de inúmeros
telefonemas do Senador Demóstenes com Carlos
Cachoeira, comprometendo o senador em sua imagem até
então considerada ilibada. Demóstenes
vai ao plenário do Senado para se explicar sobre
a acusação da imprensa de que teria mantido
quase 300 contatos telefônicos com Cachoeira.
No início, recebeu apoio dos seus pares, mas
foram tão fortes os indícios que levaram
os colegas senadores a mudarem de ideia, classificando-o
mesmo de personagem de ?dupla personalidade?.
A Comissão de Ética do Senado aceitou
uma representação do PSOL pedindo a abertura
de um processo administrativo-disciplinar contra o referido
Senador. No mesmo dia, o ministro do STF Ricardo Lewandowski
autoriza a quebra de sigilo bancário de Demóstenes.
A Comissão de Ética, tendo como relator
o senador Humberto Costa, ouvida a defesa, aprovou a
abertura do processo por 16 votos a 0. O processo continua
correndo, devendo chegar ao plenário do Senado
antes do recesso do Congresso, de julho; há expectativa
de que o Senador Demóstenes Torres seja julgado
indigno de ser representante do povo por quebra de decoro
parlamentar.
Ele renunciará ao mandato antes do julgamento?
Não parece claro embora já tenha declinado
da filiação do seu partido político
– o DEM.
No entanto, novos passos ainda mais profundos vão
sendo dados. A instauração de uma Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) tem trazido
à tona muitas informações já
registradas, com acesso aos membros da CPMI e aos advogados
de defesa dos acusados. Estão andamento os interrogatórios
e a coleta de mais provas por meio de testemunhos pessoais
de acusação e de defesa.
Mesmo os depoimentos sendo secretos, a grande imprensa
tem transmitido informações a serviço
da sociedade com sede de acompanhamento dos fatos vividos
em aparatos institucionais que a atingem de cheio.
O quadro vem se tornando cada dia mais complexo e com
riscos de perda de foco pela ampliação
demasiada. Tenha-se como exemplo a insistência
de parlamentares de que o Procurador Geral da República,
Roberto Gurgel, seja escutado na CPMI, como inquirição
sobre um possível abafamento do caso Demóstenes-Cachoeira,
já presente na operação Vegas,
em 2009, quando ele já teria conhecimento dos
fatos. Há quem veja nessa insistência uma
estratégia para desgastar o Procurador, considerando
ser ele o responsável pela apresentação
no Supremo Tribunal Federal (STF) da denúncia
do ?Mensalão?, que envolve um grande número
de parlamentares. Verdade ou exacerbação
de outros acontecimentos igualmente conflitivos no atual
momento histórico?
Nesse contexto, disputas jurídicas e partidárias
têm circulado nos bastidores dos poderes da República.
Conforme decisão da CPMI, o Procurador Roberto
Gurgel deve responder às devidas interpelações
por escrito e não oralmente como tinha sido proposto.
Ainda outros entraves têm causado conflitos em
torno dessa questão que envolve partidos políticos,
exige definições de pessoas dos três
poderes, com forte cobertura dos meios de comunicação
social.
Muitas ambiguidades estão em jogo. Não
por acaso, um Ministro do STF aceitou a solicitação
do advogado de Cachoeira para que seu depoimento seja
adiado, alegando falta de conhecimento das provas. Táticas
jurídicas? O seu advogado é o renomado
Márcio Tomaz Bastos, ex-ministro da Justiça,
contratado por 15 milhões de reais, conforme
afirmou a imprensa.
Por enquanto, há mais perguntas do que respostas
para se saber onde chegará toda esta enroscada.
Poderá ser um momento privilegiado de consolidação
da democracia ou poderá ser também momento
de frustração. As instituições
têm batalhado, num agir insano, na busca de maior
transparência, condição para um
passo adiante na maturidade democrática no Brasil.
A sociedade acompanha a novela com esperança
de novos ares.
Movimento “Veta, Dilma” e o Código
Florestal
A aprovação na Câmara dos Deputados
da proposta de mudança do Código Florestal
representa o maior retrocesso na legislação
ambiental na história do País. Se o texto
aprovado pelo Senado - embora contasse com avanços
residuais - já significava anistia aos desmatamentos
ilegais e incentivava novos desmatamentos, os deputados
conseguiram o que parecia impossível: torná-lo
ainda pior.
O texto da Câmara dos Deputados, além de
ferir os princípios constitucionais da isonomia,
da função social da propriedade e da proibição
de retrocessos em matéria de direitos fundamentais,
feriu o interesse nacional. O resultado decorre da ação
dos deputados vinculados aos ruralistas, que com eficiência
e habilidade instrumentalizaram o discurso de defesa
dos pequenos proprietários e da agricultura familiar,
retirando as poucas melhorias que o Senado efetivou.
O texto aprovado na Câmara, além de consolidar
estragos ambientais já perpetrados, trará
imensos ganhos patrimoniais aos detentores de domínios
no Centro-Oeste e no Norte nos quais as áreas
de preservação permanente (APP) foram
derrubadas, queimadas e maquiadas com capim.
A vitória ruralista remete ao paradoxo de um
país majoritariamente urbano em que a maior representação
na Câmara dos Deputados é rural. Revela
também o descolamento entre o legislativo e a
maioria da sociedade brasileira que, mediante pesquisa
de opinião, é contrária à
anistia a quem desmatou e a redução das
áreas de proteção permanente.
A Câmara nesse episódio se manteve distante
das expectativas da sociedade brasileira, deixando-se
capturar por um grupo econômico e político
poderoso em detrimento da necessária mediação
dos interesses envolvidos.
Essa disfunção gerou forte reação
na sociedade expresso em editoriais de importantes jornais
e revistas de grande circulação nacional
sugerindo que a Presidente Dilma corrigisse o acinte
feito pelos deputados.
Nesse contexto as redes sociais, muitos artistas e intelectuais
formaram o coro ?Veta, Dilma!?. É interessante
notar que o movimento ?Veta, Dilma!? seja anterior à
aprovação do texto de reforma do Código
Florestal na Câmara dos Deputados, denotando que
os organizadores do movimento já percebiam como
seria difícil vencer a cultura de produção
a todo custo que está incrustada na mentalidade
da bancada ruralista e de seus aliados.
Dada às dificuldades, o caminho do movimento
?Veta, Dilma!? foi o de centrar energia no debate com
a sociedade brasileira, espaço onde os ruralistas
mostraram-se frágeis e sem capilaridade social.
A estratégia mostrou-se acertada, pois em poucos
dias uma discussão supostamente árida,
técnica e que gera dúvidas até
entre aqueles que já acompanham profundamente
o assunto, ganhou audiência nas redes sociais
por meio do ?clic ativismo?.
O movimento ?Veta, Dilma!? se caracteriza por focar
no apoio à presidente Dilma para que ela saiba
que terá o respaldo da sociedade para cumprir
seu compromisso de campanha presidencial de impedir
retrocessos no Código Florestal.
O que se debate agora é o alcance e a profundidade
do veto, pois há os que defendem que Dilma vete
os ?excessos? cometidos na Câmara e retorne ao
texto acordado no Senado, visto como equilibrado e do
consenso possível. E de outra parte, cresce a
opinião de que as mudanças efetivadas
na Câmara, ao anular os avanços feitos
no Senado, tornam inócua a tentativa do veto
?cirúrgico? a pontos específicos. Desse
modo, o mais adequado nessa ótica seria o veto
integral ao texto do Código Florestal, sintetizada
na insígnia ?Veta tudo Dilma?.
Independente do resultado e do alcance do veto, a sociedade
brasileira sairá mais fortalecida, uma vez que
em tempo algum se discutiu tanto a questão florestal
e ambiental como agora e expressou sua insatisfação
a grupos específicos que operam no legislativo.
Quem sabe os ?indignados? que povoam a Europa estejam
chegando por aqui.
Alguns dados do censo demográfico de 2010
O IBGE divulgou os Resultados Gerais da Amostra do Censo
2010, que apresentam uma série de mudanças
ocorridas no país de 2000 para 2010. A pesquisa
inclui informações sobre características
de migração, nupcialidade, fecundidade,
educação, trabalho e rendimento, pessoas
com deficiência, domicílios e deslocamento
para trabalho e estudo, e tempo de deslocamento para
trabalho.
No período de dez anos, o número de óbitos
de crianças menores de um ano caiu de 29,7 para
15,6 para cada mil nascidas vivas, um decréscimo
de 47,6% na taxa brasileira de mortalidade infantil.
Entre as regiões, a maior queda foi no Nordeste,
de 44,7 para 18,5 óbitos, apesar de ainda ser
a região com o maior indicador.
Por outro lado, a taxa de fecundidade no Brasil também
caiu, de 2,38 filhos por mulher em 2000 para 1,90 em
2010, número abaixo do chamado nível de
reposição (2,1 filhos por mulher) que
garante a substituição das gerações.
O nível de instrução da população
aumentou: na população de 10 anos ou mais
de idade por nível de instrução,
de 2000 para 2010, o percentual de pessoas sem instrução
ou com o fundamental incompleto caiu de 65,1% para 50,2%;
já o de pessoas com pelo menos o curso superior
completo aumentou de 4,4% para 7,9%.
De 2000 para 2010, o percentual de jovens que não
frequentavam escola na faixa de 7 a 14 anos de idade
caiu de 5,5% para 3,1%. As maiores quedas ocorreram
nas Regiões Norte (de 11,2% para 5,6%, que ainda
é o maior percentual entre as regiões)
e Nordeste (de 7,1% para 3,2%).
Em 2010, o rendimento médio mensal de todos os
trabalhos das pessoas ocupadas com rendimento de trabalho
foi de R$ 1.345, contra R$ 1.275 em 2000, um ganho real
de 5,5%. Enquanto o rendimento médio real dos
homens passou de R$ 1.450 para R$ 1.510, de 2000 para
2010, o das mulheres foi de R$ 982 para R$ 1.115. O
ganho real foi de 13,5% para as mulheres e 4,1% para
os homens. A mulher passou a ganhar 73,8% do rendimento
médio de trabalho do homem; em 2000, esse percentual
era 67,7%.
As pessoas que ganhavam mais de 20 salários mínimos
de rendimento mensal de todos os trabalhos representaram
0,9% da população ocupada do país,
em 2010, enquanto a parcela das sem rendimento foi de
6,6% e a das com remuneração até
um salário mínimo, 32,7%.
No Brasil, 32,2 milhões de pessoas (52,2% do
total de trabalhadores que trabalhavam fora do domicílio)
levavam de seis a 30 minutos para chegar ao trabalho
em 2010 e 7,0 milhões (11,4%) levavam mais de
uma hora. Já no Rio de Janeiro, 2,0 milhões
(38,6%) levavam entre seis minutos e meia hora, 1,6
milhão (30,7%) levava entre meia e uma hora e
1,2 milhão (23,1%) levava mais de uma hora.
Em 2010, o país recebeu 268,5 mil imigrantes
internacionais, 86,7% a mais do que em 2000 (143,6 mil).
Os principais países de origem dos imigrantes
foram os Estados Unidos (51,9 mil) e Japão (41,4
mil). Do total de imigrantes internacionais, 174,6 mil
(65,0%) eram brasileiros e estavam retornando; já
em 2000, foram 87,9 mil imigrantes internacionais de
retorno, 61,2% do total dos imigrantes.
A migração de retorno dentro do país,
referente às pessoas que nasceram no estado em
que residiam na data de referência do Censo e
que moravam em outra unidade da Federação
cinco anos antes, passou de 22,0% do total de migrantes
(1,1 milhão de pessoas) para 24,5% dos migrantes
(1,2 milhão de pessoas).
A proporção de uniões consensuais
passou de 28,6% em 2000 para 36,4% em 2010 e diminuíram
os casamentos do tipo civil e religioso, de 49,2% para
42,9%. No Amapá, as uniões consensuais
chegaram a 63,5%.
Movimentos Sociais
O STF e as questões sociais
Nas últimas semanas, o Supremo Tribunal Federal
tomou duas decisões importantes para os setores
populares: considerou nulos os títulos de terra
particular incidentes sobre o território Pataxó
Hã Hã Hãe na Bahia e considerou
válidas as políticas de ações
afirmativas, como as que envolvem cotas raciais para
entrada nas universidades federais.
Tais decisões, de extrema relevância para
os movimentos sociais e excluídos em nosso país,
colocam fortes expectativas naquela Corte, no sentido
de dar continuidade a decisões dessa mesma natureza
e importância. Citem-se aqui os casos do povo
Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul, semelhante ao
caso Pataxó, a ser decidido também no
STF, e o julgamento ali em curso, a respeito da constitucionalidade
da política federal de reconhecimento dos territórios
quilombolas.
Segundo Oscar Vilhena, Diretor da Escola de Direito
da FGV de São Paulo, "ao expressar publicamente
a constitucionalidade de políticas e extrair
sentido concreto do texto constitucional, o Supremo
favorece o enraizamento de nosso pacto constitucional,
estabiliza o sistema político e permite que as
mudanças que a sociedade brasileira exige sejam
realizadas sem maiores conflitos. Ao proferir o último
voto no caso das ações afirmativas, o
novo presidente da corte, ministro Carlos Ayres Britto,
reivindicou que o STF estaria dando sua contribuição
ao processo de construção de uma verdadeira
nação, que a todos reconhece como sujeitos
de direito e obrigações".
Se assim for, os movimentos sociais precisam muito que
o STF continue coerente em suas decisões, reconhecendo
nos casos a serem decididos nos próximos dias,
tanto com relação ao povo Kadiwéu,
como em relação às comunidades
quilombolas, serem estes sujeitos de direito, e terem
seus direitos constitucionais corretamente preservados
pelo Supremo.
Convenção 169 da OIT
O Estado brasileiro é signatário da Convenção
169, da Organização Internacional do Trabalho,
a qual afirma que "povos indígenas e tribais"
devem ser consultados a respeito de medidas administrativas
ou legislativas que afetem seus territórios ou
suas culturas e modos de ser.
Embora tenha assinado esta Convenção,
o Estado brasileiro não havia ainda tomado providências
no sentido de regulamentar e definir como esta consulta
deve ser feita. A Convenção 169 é
autoaplicável, ou seja, está em plena
vigência, mas a sua regulamentação
é importante para se construir parâmetros
claros a respeito de como ela deve ser implementada.
A partir de um questionamento da OIT a este respeito,
o Governo brasileiro resolveu desencadear um processo
de regulamentação da Convenção
169, criando, para tanto, um diálogo com povos
indígenas, quilombolas e populações
tradicionais. O objetivo é de se regulamentar
a Convenção dentro de seu próprio
espírito, ou seja, a partir da consulta prévia
e informada destes povos. Para levar à frente
este processo foi criado um Grupo de Trabalho Interministerial
e grupos facilitadores formados com representantes das
comunidades tradicionais, cuja função
é organizar a consulta nas diferentes regiões
do país, ao longo dos próximos dois anos
(até o final de 2013).
Haverá uma primeira fase, de se disseminar a
Convenção 169 em todo o país, explicando
seus objetivos e conteúdos; uma segunda fase,
de se consultar as comunidades indígenas, quilombolas
e tradicionais a respeito de como elas pensam que devem
ser consultadas frente a iniciativas administrativas
e legislativas que as afetem e, finalmente, uma terceira
fase, na qual estas propostas serão consolidadas
e serão apresentadas para a aprovação
final pelas comunidades quando, só então,
estarão prontas para serem enviadas para a aprovação
e encaminhamento pela Presidente Dilma Roussef.
Ou seja, para se regulamentar a Convenção
169 da OIT, o governo brasileiro está planejando
realizar uma ampla "consulta da consulta",
para que o que for definido nessa matéria reflita
com fidelidade os consensos existentes entre o Governo
e as comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais,
que são sempre atingidas por ações
administrativas e legislativas que causam impactos negativos
em seus territórios, culturas e meios de sobrevivência.
Notícias do Congresso Nacional
A CPMI que investiga o contraventor Carlinhos Cachoeira
e o Conselho de Ética do Senado, que avalia quebra
de decoro parlamentar pelo Senador Demóstenes
Torres (sem partido-GO), têm preenchido fartamente
a pauta diária da mídia. No entanto, outros
temas importantes têm sido discutidos no Congresso.
Enumeram-se, abaixo, alguns deles.
1. Recursos contra a decisão do STF
Tramitam no Congresso Nacional três recursos visando
sustar a aplicação da decisão do
Supremo Tribunal Federal proferida na Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF 54),
que despenalizou o aborto de bebês diagnosticados
com anencefalia ou severa deformação cerebral
durante a gravidez.
O primeiro recurso é um Projeto de Decreto Legislativo
565/12 (PDC 565/2012, do deputado Marco Feliciano (PSC-SP).
O segundo também é um PDC, assinado conjuntamente
pelos deputados Roberto de Lucena (PV-SP), Salvador
Zimbaldi (PDT-SP) e João Campos (PSDB-GO). Já
a terceira iniciativa é do deputado federal Nazareno
Fonteles (PT-PI), que apresentou à Presidência
do
Congresso Nacional um requerimento pedindo a nulidade
da decisão do STF. Para o deputado, decisões
como essa do Supremo são ?claramente objeto de
decisão do poder legislativo?.
2. Código Penal
A Comissão Especial de Juristas que prepara um
anteprojeto de novo Código Penal adiou a entrega
dos trabalhos para o final do próximo mês
de junho. Durante o mês de maio, a Comissão
examina a parte geral do anteprojeto do novo código,
que inclui princípios gerais, interpretações
e regras de aplicação das normas penais.
Entre as propostas aprovadas pela Comissão está
a punição mais rigorosa para o crime de
corrupção de menores. Pela proposta, o
adulto que induzir menor a praticar um crime estará
sujeito à pena prevista para este delito aumentada
em dois terços; a penalização de
pessoas jurídicas de direito privado ou público,
nesse último caso aquelas que intervenham no
domínio econômico, por atos praticados
contra a administração publica, a ordem
econômica e financeira e a economia popular, bem
como pelas condutas consideradas lesivas ao meio ambiente;
a tipificação como crime específico
das ações de milícias, normalmente
integradas por policiais que se organizam para impor
domínio sobre áreas carentes das grandes
metrópoles, utilizando de seu poder para obter
vantagens ilícitas. A Comissão decidiu
também colocar no novo Código Penal um
artigo específico para índios. O texto
vai determinar que, quando um indígena for acusado
de crime, o julgamento terá o subsídio
de um laudo antropológico sobre costumes, crenças
e tradições do povo a que ele pertence.
Outro tema discutido pela Comissão de Juristas
foi a corrupção entre particulares, ou
corrupção no setor privado, que deverá
ser um novo tipo penal na legislação,
por sugestão de convenção da Organização
das Nações Unidas.
3. PEC do Trabalho Escravo
A Proposta de Emenda Constitucional 438/2001(PEC 438/01),
conhecida como a PEC do Trabalho Escravo, está
prevista para ser votada pela Câmara dos Deputados
na terça-feira, dia 22 de maio. O adiamento da
votação, marcada inicialmente para o dia
8, foi resultado de uma manobra dos ruralistas. Eles
insistem que a PEC não deixa claro o significado
de condição análoga à de
escravo e, por isso, querem mudança no texto.
Os defensores da PEC não aceitam a mudança
por considerarem que o conceito de trabalho escravo
já é reconhecido universalmente. Chega
a ser irônico pensar que a sociedade brasileira,
como sugere a bancada ruralista, não saiba distinguir
o que seja trabalho análogo à condição
de escravo.
A PEC está parada na Câmara desde 2004,
quando foi aprovada em primeiro turno com 326 votos
a favor e apenas dez contra. Houve grande mobilização
da sociedade por sua aprovação. As lideranças
dos partidos tentam fazer acordo para que a PEC seja
votada. Durante as negociações, ficou
acertado que uma comissão mista formada por cinco
deputados e cinco senadores seria constituída
para debater alterações. O governo diz
que a mudança seria apenas para incluir uma nova
menção sobre a regulamentação
da aplicação da lei.
A PEC do Trabalho Escravo determina que as propriedades
em que for flagrado trabalho escravo sejam confiscadas
e destinadas à reforma agrária ou uso
social. Com ou sem acordo, ela terá que voltar
ao Senado por ter sofrido alteração na
votação em primeiro turno na Câmara,
que aconteceu em 2004. Na ocasião, foram incluídos
no texto os casos de trabalho escravo urbano.
4. Estatuto da Diversidade Sexual
Está em andamento uma campanha de coleta de assinaturas
online para apresentação de um projeto
de lei de iniciativa popular pela aprovação
do Estatuto da Diversidade Sexual. O Estatuto foi elaborado
pela Comissão Especial da Diversidade Sexual
da OAB, presidida por Maria Berenice Dias. Em agosto
do ano passado, o Estatuto foi entregue ao presidente
do Senado, José Sarney.
Na mesma ocasião, a Comissão da OAB entregou
à senadora Marta Suplicy uma Proposta de Emenda
Constitucional para alterar os artigos 7º e 3º
da Constituição Federal. A senadora transformou
a matéria, respectivamente, nas PECs 110/2011
e 111/2011, que estão na Comissão de Constituição
e Justiça do Senado e aguardam designação
do relator.
A primeira PEC (110/11) modifica os incisos XVIII, XIX
e XXX do Artigo 7º para dispor sobre licença-natalidade,
licença após adoção e vedar
discriminação de trabalhador em virtude
de orientação sexual ou identidade de
gênero. A segunda (PEC 111/11) altera o inciso
IV do Artigo 3º para incluir entre os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil
a promoção do bem de todos, sem preconceitos
relativos a identidade de gênero ou orientação
sexual.
A senadora é também a relatora do PL 122/2006,
que criminaliza a homofobia. Ela manifestou sua intenção
de retomar o texto que havia sido proposto pela ex-senadora
Fátima Cleide, atendendo ao pedido feito por
representantes da comunidade LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros),
durante seminário realizado, no dia 15 deste
mês, em Brasília. No final do ano passado,
Marta Suplicy chegou a colocar para votação
na Comissão de Direitos Humanos do Senado um
substitutivo de sua autoria sobre a matéria,
mas acabou retirando a matéria de pauta.
5. Medida Provisória altera limite de
oito áreas ambientais
A Câmara aprovou, no dia 15 de maio, por 229 votos
a 47 e 3 abstenções, a Medida Provisória
558/12 que altera os limites de oito unidades federais
de conservação nas regiões Norte
e Centro-Oeste para resolver problemas agrários
e viabilizar legalmente usinas hidrelétricas
que inundarão partes das reservas. A MP será
votada ainda pelo Senado. As unidades envolvidas são
os parques nacionais dos Campos Amazônicos, da
Amazônia e Mapinguari; as florestas nacionais
de Itaituba 1, Itaituba 2, do Crepori e do Tapajós;
e também a Área de Proteção
Ambiental (APA) Tapajós
6. Aprovada validade nacional de Declaração
de Nascido Vivo
A Declaração de Nascido Vivo (DNV) poderá
passar a ter validade em todo o território nacional
enquanto o recém-nascido não tiver a certidão
de nascimento. A medida consta de Projeto de Lei da
Câmara (PLC 120/11) aprovado no dia 9 de maio
pelo Plenário do Senado.
O texto, que segue para a sanção presidencial,
é de iniciativa do Poder Executivo e altera a
Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) para
obrigar a emissão do DNV para todos os nascimentos
com vida ocorridos no País. A declaração
deverá ser emitida por profissional de saúde
responsável pelo acompanhamento da gestação,
do parto ou do recém-nascido, inscrito no Cadastro
Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)
ou no respectivo conselho profissional.
7. Erradicação do trabalho infantil
A Comissão Nacional de Erradicação
do Trabalho Infantil, coordenada pelo Ministério
do Trabalho, prepara um anteprojeto para adequar a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT, Decreto-Lei 5.452/43) à
legislação em vigor que proíbe
o trabalho infantil no País. O anúncio
foi feito no dia 8 de maio, em audiência pública
na Câmara, pela assessora do gabinete da Secretaria
Nacional de Promoção dos Direitos da Criança
e do Adolescente, Maria Izabel da Silva.
O debate foi promovido pela Comissão de Trabalho,
de Administração e Serviço Público
e teve a participação de representantes
da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), de associações de magistrados e
de entidades sindicais. A CNBB participou da audiência,
representada pelo padre Nelito Dornelas.
8. Prescrição de crime sexual
contra criança
O Projeto de Lei 6719/09, da Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI) do Senado sobre a Pedofilia,
foi aprovado pela Câmara no dia 8 de maio. O PL
determina a contagem da prescrição dos
crimes sexuais contra crianças e adolescentes
somente a partir de quando elas completarem 18 anos.
A proposta foi aprovada em Plenário e será
enviada para sanção da presidente Dilma
Rousseff.
O projeto altera o Código Penal (Decreto-Lei
2.848/40) com o objetivo de dar mais tempo à
vítima e ao Ministério Público
para iniciar a ação penal.
Responsáveis pela análise:
Pe. Antonio Abreu SJ, Pe. Bernard Lestiene SJ, Pe. Thierry
Linard SJ (Ibrades),
Pe. Ari Antonio Reis, Daniel Seidel, Pe. Geraldo Martins,
Gilberto Sousa,
Pe. José Ernanne Pinheiro, Paulo Maldos e Pedro
Gontijo
Anexo – Resultados
Gerais da Amostra do Censo 2010
Em dez anos, mortalidade infantil caiu 47,6% no país
De 2000 para 2010, a taxa de mortalidade infantil caiu
de 29,7‰ para 15,6‰, o que representou decréscimo
de 47,6% na última década. Com queda de
58,6%, o Nordeste liderou o declínio das taxas
de mortalidade infantil no país, passando de
44,7 para 18,5 óbitos de crianças menores
de um ano por mil nascidas vivas, apesar de ainda ser
a região com o maior indicador. O Sul manteve
os menores indicadores em 2000 (18,9‰) e 2010
(12,6‰).
Na última década, a diminuição
das desigualdades sociais e regionais contribuiu para
a formação do quadro atual de baixa na
mortalidade infantil e de maior convergência entre
as regiões. Todavia, ainda há um longo
caminho a percorrer para que o Brasil se aproxime dos
níveis das regiões mais desenvolvidas
do mundo, em torno de cinco óbitos de crianças
menores de um ano para cada mil nascidas vidas.
Em 2010, taxa de fecundidade era de 1,90 filho por mulher
A taxa de fecundidade no Brasil apresentou queda de
20,1% na última década, passando de 2,38
filhos por mulher, em 2000, para 1,90 em 2010, número
abaixo do chamado nível de reposição
(2,1 filhos por mulher) que garante a substituição
das gerações. O declínio ocorreu
em todas as regiões, observando-se as maiores
quedas no Nordeste (23,4%) e no Norte (21,8%), seguidas
pelo Sul e Sudeste (cerca de 20,0%, ambas) e pelo Centro-Oeste,
com a menor queda (14,5%).
As taxas de fecundidade variam bastante, inclusive dentro
da mesma região. Na região Norte, o Acre
teve a taxa mais alta do Brasil (2,82 filhos por mulher),
enquanto Rondônia estava bem perto do nível
de reposição (2,15 filhos por mulher);
Maranhão e Alagoas tiveram as taxas mais altas
do Nordeste (2,50 e 2,22, respectivamente). No Centro
Oeste, o Distrito Federal teve uma das taxas mais baixas
do país (1,74) e Mato Grosso, 2,11. Os indicadores
foram baixos no Sul e no Sudeste, entre 1,67 em São
Paulo e 1,85 no Paraná.
A tendência no Brasil até o ano 2000 era
de aumento da concentração da fecundidade
nos grupos entre 15 e 24 anos o que indicava um rejuvenescimento
do padrão da fecundidade. Porém, de 2000
para 2010, os grupos de 15 a 19 anos e de 20 a 24 anos
diminuíram suas participações de
18,8% para 17,7% e de 29,3% para 27,0% da fecundidade,
respectivamente. Apesar desse último grupo ainda
responder pela maior percentagem da fecundidade nacional,
o padrão em 2010 está mais dilatado, com
aumento da participação na faixa acima
de 30 anos. A idade média da fecundidade passou
de 26,3 anos em 2000 para 26,8 em 2010.
O comparativo regional mostra convergência entre
as taxas no grupo etário a partir dos 30 anos,
enquanto nos grupos mais jovens as diferenças
foram mais marcantes. A Região Norte, que apresenta
as maiores taxas nos grupos etários com até
29 anos, tem o padrão mais jovem, bastante concentrado
na faixa de 20 e 24 anos. Por outro lado, as Regiões
Sul e Sudeste apresentaram uma estrutura de fecundidade
mais envelhecida, concentrada nas idades finais dentro
do período fértil.
Uniões consensuais aumentaram de 28,6% para 36,4%
Segundo o Censo 2010, a proporção de pessoas
divorciadas passou de 1,8% em 2000 para 3,1% em 2010,
liderada por Mato Grosso, Rio de Janeiro e Distrito
Federal (4,1%, 4,1% e 4,3%, respectivamente), enquanto
o Maranhão teve o menor indicador (1,2%). A proporção
de dissoluções das uniões conjugais
passou de 11,9% para 14,6%, enquanto aumentaram as uniões
consensuais (casais vivendo juntos sem casamento civil
ou religioso, mas podendo ter contrato de união
estável registrado em cartório), de 28,6%
em 2000 para 36,4% em 2010. Já os casamentos
do tipo civil e religioso diminuíram de 49,2%
para 42,9%. A união consensual teve crescimento
mais significativo no Norte e Nordeste, com destaque
para o Amapá, cuja proporção chega
a 63,5. Houve também redução no
número de pessoas que declararam nunca ter vivido
em união de qualquer tipo (35,4%, em 2010, contra
38,6%, em 2000).
No Brasil, 11,4% dos trabalhadores levavam mais de uma
hora para chegar ao trabalho; no Rio de Janeiro, eram
23,1%
A análise do tempo de deslocamento entre a residência
e o trabalho revelou que, no Brasil, 32,2 milhões
de pessoas (52,2% do total de trabalhadores que trabalhavam
fora do domicílio) levavam de seis a 30 minutos
para chegar ao trabalho em 2010 e 7,0 milhões
(11,4%) levavam mais de uma hora. Já no estado
do Rio de Janeiro, 2,0 milhões (38,6%) levavam
entre seis minutos e meia hora, 1,6 milhão (30,7%)
levava entre meia e uma hora e 1,2 milhão (23,1%)
levava mais de uma hora. |
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Análise
de conjuntura eclesial – Assembleia da CNBB 2012
– Aparecida-SP – 18/04/12 |
A
Igreja a cinquenta anos da abertura do Concílio
Vaticano II
Introdução:
a) A atualidade da análise de conjuntura. As
costumeiras análises de conjuntura são
parte de um método de conhecimento em contexto
de um paradigma que sublinha a consciência histórica,
crítica e forte para o discernimento. Este
paradigma adquiriu grande força na Igreja em
torno do Concílio Vaticano II, mas agora está
debilitado por diversas razões: seja pela natural
fadiga do método, seja pela entrada da pós-modernidade
em nosso atual contexto cultural, que facilita mais
o fundamentalismo sem consciência histórica
e crítica. Além disso, a exacerbação
da subjetividade em questões de valores e avaliações
provoca fragmentação de análises.
Finalmente, a impossibilidade de neutralidade e os
interesses diversos guiam os juízos de valor
para direções diferentes. Evidentemente
a Igreja tem contexto e interesse explicitamente pastoral
e evangelizador, mas também em pastoral há
contextos e interesses diversos. A leitura da realidade
– em nosso caso, eclesial – nunca é
neutra ou totalmente objetiva. Por isso esta leitura
é apenas uma introdução para
um debate que pode dar conta de forma mais adequada
de nossa complexa realidade eclesial.
b) Globalização e catolicidade. Pode-se
constatar um paralelismo entre a globalização
e a catolicidade. A globalização derruba
as fronteiras nacionais, seja negativamente por uma
forma neoliberal devastadora de todo tipo de fronteiras,
seja positivamente pela percepção, facilitada
pela cultura de comunicação, de que
somos “uma grande família humana”.
No estado atual da Igreja, como das religiões
e dos povos há uma percepção
crescente de que estamos também todos juntos
numa “grande família”, todos no
mesmo barco, portanto um crescimento de “catolicidade”.
Por paradoxal que pareça, a globalização
do cristianismo e da catolicidade vem acompanhada
de uma “desterritorizalização”
do catolicismo e, mais amplamente, do cristianismo.
Por exemplo, uma superação de “países
católicos” através da entrada
da secularidade ou laicidade do Estado e da neutralidade
do espaço público em que diferentes
formas de religião tem liberdade de se expressar.
Por um lado, é como se a dimensão de
catolicidade desbordasse as paredes da Igreja denominada
“Católica”. E, por outro lado,
internamente à Igreja Católica, se redesenham
as tensões quase tão antigas como sua
história entre um governo centralizado e a
vida das Igrejas locais e regionais com sua diversidade
de culturas, sensibilidades, línguas, etc.,
diversidade que compõe a catolicidade e, hoje,
também a globalização. Em consequência,
é mais difícil distinguir, em nossos
dias, os níveis globais, nacionais e locais,
tal é a comunicação e a interdependência
intensificadas pela globalização. Por
isso, nesta análise não faremos propriamente
distinções, mas interrelações
dos planos.
1. A Igreja a cinquenta anos do Concílio Vaticano
II. A pluralidade de interpretações
O aniversário de meio século do início
do Concílio veio precedido de um conflito de
interpretação que teve seu foco na Itália,
e o próprio Bento XVI tomou a palavra inclusive
como um dos peritos do Concílio. Mas o conflito
de interpretações, como em ondas, chegou
até nós e as posições
vêm acompanhadas pelos interesses e preocupações
que tencionaram o pós-concílio. Acorre-se
ao Concílio da mesma forma com que se acorre
ao Novo Testamento para legitimar ou fundamentar reclamos
atuais. Teria se abusado na compreensão e abertura
conciliar? Ou se teria estancado ou inclusive boicotado
o dinamismo renovador do Concílio? O conflito
polarizado ganhou títulos: a hermenêutica
da ruptura e a hermenêutica da continuidade.
Sobre isso, convêm três palavras:
i. A ruptura cultural e a queda de paradigma. É
claramente equivocado, como fazem os tradicionalistas
radicais, acusar o Concílio de provocar ruptura
com a tradição da Igreja. O Concílio
não é a causa, mas a busca de resposta
às rupturas e, mais ainda, ao desmoronamento
de um paradigma cultural em que aconteceu a dissociação
entre fé e cultura, que Paulo VI colocou em
relevo como algo dramático na Evangelii Nuntiandi
- e que foi vivido e sentido pela grande maioria dos
bispos aqui presentes. O Concílio nos ajudou
a sairmos do gueto cultural já insustentável,
foi ponte e não ruptura.
A década de sessenta, de fato, testemunhou
uma queda de paradigma também na totalidade
da vida eclesial: ficamos órfãos de
livros para rezar, sem cantos para cantar, sem livros
para estudar, sem roupa adequada para vestir, sem
linguagem adequada para nossas homilias, sem referências
de autoridade canônica estável para obedecer.
Como em toda queda de paradigma, que não se
dá por partes, mas em sua totalidade, foi necessário
ser criativo até para sobreviver eclesialmente.
Isso foi vivido no marco da queda de um paradigma
mais amplo e dramático da cultura moderna para
a pós-moderna, cujo simbolismo é o ano
de 1968 e os que se seguiram.
Quando cai um paradigma, como analisam os especialistas,
tudo volta a zero, e todos necessitamos aprender novamente,
precisamos ser novamente alfabetizados. (Basta o exemplo
da passagem das máquinas para a informática:
os pais precisam reaprender ao lado dos filhos). A
geração pós-conciliar, da qual
faço parte, lutou desde jovem ao descampado
na esperança de uma primavera. E, como afirmou
o grande observador da Igreja Católica Antônio
Gramsci, as crises se produzem quando o velho mundo
demora a desaparecer e o mundo novo demora a nascer.
Neste claro-escuro, acrescentava ele, monstros podem
aparecer. Voltar ao paradigma anterior para se proteger
de ameaças e sombras é inviável
e patético. Atualmente, com o agravamento da
crise ambiental, monstros do passado recente se tornam
menores e monstros ainda maiores nos rondam.
ii. “Ruptura”, palavra non grata? Ela
foi cunhada na área da teoria do conhecimento
como “ruptura epistemológica”,
significando que contextos novos não podem
ser conhecidos por meio de categorias de conhecimento
tradicionais, e somente uma ruptura epistemológica
prepara uma nova compreensão com uma epistemologia
nova. Nesse sentido, ruptura não é uma
negação, mas uma colocação
em perspectiva histórica. Por exemplo, uma
liturgia barroca ou uma igreja barroca fazem parte
do tesouro histórico da Igreja, e paramentos
barrocos tecidos em fios dourados podem ser apreciados
em nossos museus para compreendermos uma época
de nossa história. Mas insistir numa missa
barroca é ir vivo para o museu. Assim também
certas categorias de linguagem, certas leis canônicas
que fizeram história, etc.
Mas como a palavra “ruptura” ganhou um
sentido diabólico em alguns segmentos da Igreja,
talvez seja mais sábio não utilizar
a palavra. A palavra adequada é “renovação”,
como enfatizou Bento XVI. Segundo ele, trata-se da
“reforma na continuidade do mesmo sujeito Igreja”.
Os que utilizam a hermenêutica da continuidade
dão ênfase à continuidade mais
do que à reforma. Mas a palavra chave para
entender um Concílio que quer introduzir uma
reforma é, de fato, “renovação”,
pois esta é a história do cristianismo
desde o evangelho: novidade, e, portanto, renovação.
Importa mais o futuro do que o passado, e a memória
só tem sentido enquanto reforça a esperança.
iii. A nova geração “não
conciliar”. Tanto no clero como entre os católicos
que estão inseridos em movimentos e organismos
eclesiais, a cinquenta anos do começo do Concílio,
temos uma geração naturalmente afastada
da experiência do Concílio e do seu contexto.
É uma geração que, em caso positivo,
escuta ou estuda um acontecimento do passado. Que
importância conseguem dar à recepção
do Concílio, por exemplo, no Pacto da Catacumba
ou em Medellín? Há uma dificuldade que
agrava a consciência da relevância do
Concílio e da sua recepção, já
mencionada na introdução: a menor importância
que se dá, hoje, na cultura, à consciência
histórica e crítica. Quando, por exemplo,
um grupo de jovens se organiza para reivindicar uma
liturgia anterior ao Concílio, fazendo a afirmação
equivocada de que se batem pela liturgia “que
sempre foi e sempre será!”, estamos diante
de um conflito por falta de interesse por informações
de ordem histórica.
A formação, tanto inicial como permanente,
e tanto do clero jovem e seminaristas como dos católicos
engajados em todo tipo de movimentos será absolutamente
importante, nesse caso. Podemos entender aqui a insistência
de Bento XVI no conhecimento da doutrina, na catequese.
Hoje não se pode estudar dogma, liturgia, direito,
ética, etc., sem a sua necessária dimensão
histórica e seus contextos culturais. Sem história
e sem contexto, a tendência é se tornar
absolutista. Absoluto é só Deus, e a
verdade absoluta se mantém na reserva escatológica,
quando veremos Deus e todas as coisas como são.
A historicidade ajuda a manter a humildade do caminho
e a evitar o absolutismo, próximo das ideologias
totalitárias e violentas. No entanto, os métodos
histórico-críticos se mostraram também
limitados, sobretudo por sua capacidade desconstrutiva
mas nem sempre reconstrutiva. Por isso pode ser precioso,
para a retomada do Concílio, o que Bento XVI
advoga para a interpretação bíblica:
a hermenêutica da fé. Que, em nossa experiência,
pode ser comparável à Leitura Orante
ou Palavra-Vida, a que pretendo voltar no item seguinte.
De qualquer forma, a imobilidade de quem não
ousa renovação revela falta de fé.
2. A Palavra de Deus como “volta às fontes”
e inspiração criativa (DV).
A Dei Verbum, atualizada na Verbum Domini, significa
um dos veios mais preciosos do Concílio, a
melhor forma de realizar a volta às fontes
e às raízes, ou, como diz a instrução
pós-sinodal, ao “coração”
da vida cristã. O tsunami do método
histórico crítico foi integrado de forma
equilibrada entre nós pelo método Palavra-Vida,
agora Leitura Orante. Os passos do método,
com espiritualidade e confrontação dos
contextos atual e bíblico, e finalizando com
um engajamento prático, além de ser
uma leitura comunitária, é uma hermenêutica
de fé viva e operante, compartilhada comunitariamente
e criadora de comunidade em torno da Palavra. A Leitura
Orante, de fato, é a nossa melhor commodity
de exportação, nossa obra mais genuína
após o Concílio como oferta para as
demais Igrejas de outras regiões do planeta!
Além da fonte bíblica, retomamos as
águas do comentário patrístico,
de tal forma que sabemos hoje por experiência
que não somente a Igreja é a casa da
Palavra, mas, antes mesmo, que a Palavra é
a casa da Igreja: a Igreja habita na Palavra de Deus,
é constituída por ela como é
constituída pela Eucaristia. A Escritura não
é somente alma da teologia, mas de toda a Igreja.
Os últimos cinquenta anos renovaram a atitude
da Igreja em relação às suas
fontes. Mesmo admitindo a tese de Pierre Legendre
(L’autre Bible de l’Occident) de que as
sociedades do Ocidente se constituíram fundadas
numa espécie de segunda bíblia, dogmático-canônica,
que atravessou séculos, e que se serviu da
Escritura mais como ilustração e verniz
legitimador - um edifício que agora estaria
se inclinando em ruínas - a sabedoria consiste
em voltar ao alicerce quando as paredes se mostram
seriamente atingidas. É importante sublinhar
o quanto a Igreja vem fazendo a sua lição
de casa. Não é mais estranho que católicos
andem com a Bíblia na mão.
O texto bíblico, evangélico, fonte da
qual nascem sempre águas novas e revigorantes,
desborda as paredes da Igreja, não somente
do magistério. Por um lado, e em primeiro lugar,
porque a Palavra de Deus é palavra dada à
humanidade. Um budista ou um guarani podem não
sentir necessidade de pedir licença à
Igreja para ler o evangelho. Assim, afirmar que a
Palavra foi confiada à Igreja e que esta tem
o dever ministerial de proclamá-la é
correto. Mas afirmar que só a Igreja tem poder
de interpretar corretamente a Palavra não tem
plausibilidade em nosso mundo rico de hermenêutica.
No entanto, como sabemos, a compreensão inadequada
leva às distorções de toda sorte
de fundamentalismo, inclusive científico. O
papel da Igreja é, segundo o modelo dos Atos,
o de Filipe no caminho do oficial da rainha Candace
(Cf Atos 8, 26-27): ajudar na interpretação
com o tesouro de seus recursos. Para este papel de
intérprete da relação Palavra
e Vida em termos de Escritura, nós encontramos
por toda parte, Brasil e mundo afora, uma multidão
exuberante de pregadores, televangelistas, líderes
de megachurchs, mensageiros, pessoas cuja autoestima
e missão estão colocadas nos Evangelhos.
Se eles, fora da Igreja Católica, também
realizam milagres e libertações, isso
deve alegrar a nós também. Se há
interpretação correta ou distorções,
discernidas pelos frutos, o trabalho decisivo a realizar
é o de preparar intensamente e de forma adequada,
bons intérpretes da Palavra de Deus. O clero
sozinho não dá conta, evidentemente,
da evangelização. Formação
bíblica para os católicos é uma
prioridade, uma urgência, uma esperança
essencial.
O método de Leitura Orante, outra denominação
do já experimentado e amadurecido Palavra-Vida,
inclui a busca de informações históricas
e contextuais, mas isso não é nem o
seu começo e nem o seu final. Os passos do
método engajam uma leitura em comunidade de
fé e de compromisso de vida. E dá garantia
de superar os diversos tipos de fundamentalismo e
de uso abusivo da Escritura. De qualquer forma, está
claro que a palavra de Deus na Escritura é
o coração da catequese, da ética,
do diálogo com as religiões e inclusive
com a ciência, além de ser a substancia
de fecundidade e renovação da própria
Igreja. Nunca é demais insistir nisso.
3. Colegiado e participação
na Igreja (LG)
a) O colegiado episcopal. Se o Vaticano I fortaleceu
o primado petrino do bispo de Roma, o Vaticano II
complementou o ensinamento sobre a hierarquia sublinhando
o papel do colegiado dos bispos e das Igrejas locais.
O colegiado exercido nas Conferências introduziu
o que Dom Boaventura Klopenburg chamou de “novo
gênero literário” do magistério.
Cinquenta anos depois se pode encontrar nos sites
das Conferências os resultados de tal exercício.
O CELAM e a CNBB tiveram momentos antológicos
que repercutiram no conjunto da Igreja. Recentemente
um fórum de católicos do Quebec se dirigiu
aos seus bispos pedindo que evitassem la peur de Rome,
para que fosse o debate com Roma e não a subserviência
a marca do exercício da colegialidade.
b) Colegiado em sentido lato. Ao lado do colegiado
episcopal multiplicaram-se as instâncias colegiadas
na área diocesana, presbiteral, paroquial,
com participação de leigos. As Comunidades
Eclesiais de Base foram e continuam sendo um excelente
laboratório de colegiado, distribuição
de responsabilidades e autoestima de pertença
à Igreja. Nelas os pobres não são
apenas socorridos e acolhidos, mas se tornam sujeitos
por suas formas de participação ativa
e colegiada, com assembleias e decisões conjuntas.
Sobretudo com o sentimento de dignidade por participar
e fazer algo na sua Igreja.
c) Mais democracia ou participação na
Igreja? Escuta-se com frequência discussões
em torno do exercício de democracia na Igreja.
A Igreja, sobretudo em suas origens, tomou palavras
da política e da sociedade em que ela se estruturou.
Inclusive a palavra mesma “Igreja”. A
palavra democracia diz respeito à participação
aberta a todos no governo. Por um lado, as democracias
reais, de modo geral, são mais formais do que
verdadeiras porque outros mecanismos manipulam a democracia.
Por outro lado, o debate público e transparente
é um dos exercícios mais interessantes
da democracia. É a ordem moderna de saída
do infantilismo e das diversas corrupções
que afetam a vida em sociedade. Este exercício
não ganhou cidadania suficiente na Igreja,
ainda que a palavra democracia possa não ser
tão adequada para usar sem mais na estruturação
do governo da Igreja.
No entanto, por diversos caminhos, a palavra “participação”
é decisiva na eclesiologia pós-conciliar.
Um dos elementos que deixam a situação
nervosa é a maior participação
das Igrejas locais na nomeação de seus
bispos. As consultas secretas sub grave tem suas razões,
mas sobram duas perguntas: Esta forma consegue evitar
a endogenia interna à hierarquia da Igreja?
Ela evita as pressões e eventuais corrupções
locais, mas não fere a sensibilidade de participação
também nas responsabilidades maiores da Igreja,
selando um abismo entre leigos e hierarquia, e às
vezes também entre clero e seus bispos? Tal
situação se replica também nas
comunidades paroquiais.
O verdadeiro poder, que evita tanto o caos como o
autoritarismo, é, conforme refinada conceituação
de Hannah Arendt, “capacidade de ação
em conjunto”, portanto tecido por consensos
desde a discussão até a decisão.
Ainda que se advoguem razões de revelação
e de direito divino para agir de modo diferente, o
poder e a autoridade arriscam ficar sem plausibilidade
e sem eficácia quando utiliza o mecanicismo
“exteriorista” de tipo “manda quem
tem o poder e obedece quem tem o dever”.
Examinando a realidade, há inúmeras
comunidades paroquiais levadas nos ombros de grupos
de leigos, frequentemente mais mulheres que homens,
mas há também o fato sintomático
de mulheres, inclusive da vida religiosa feminina
mais consciente, que se distanciam de uma Igreja governada
somente por homens. Não é o caso de
entrada de mulheres no sacerdócio ministerial,
mas de oportunidade de participação
nas instâncias de governo da Igreja.
d) A teologia entre as comunidades eclesiais, o magistério
e a academia. Um aspecto específico que terá
consequências nos próximos anos é
a produção teológica da Igreja.
Novamente, se voltarmos aos tempos do Concílio
e aos anos que o seguiram, houve um florescimento
teológico que foi um dom à Igreja. Tanto
para o sucesso do Concílio como de sua primeira
recepção, teólogos foram decisivos.
Não faltaram acalorados debates e divergências.
Paulo VI tem, entre seus méritos, o de ter
resistido a silenciar teólogos, permitindo
o debate sem receio. Na América Latina a grande
força dos teólogos veio de sua conexão
com as comunidades vivas de fé engajada tanto
eclesialmente como socialmente. O que temos hoje?
De modo geral, os teólogos que já foram
mais criativos estão absorvidos em programas
universitários e suas agendas, muito próximos
das ciências da religião. Certamente
os bispos não se sentem bem com os assim chamados,
desde os tempos de Eusébio de Cesaréia,
“teólogos de corte”. Mas o aspecto
crítico, eclesialmente autocrítico,
da teologia, e portanto sua missão profética,
pode perturbar o magistério pastoral. Ora,
o magistério científico exige o trabalho
árduo do estudo e a audácia como também
a paciência de elaboração, e o
diálogo com os segmentos científicos
da sociedade depende da assessoria deste trabalho.
Não se pode dialogar simplesmente apelando
para o princípio de autoridade, citando o magistério.
Como o magistério autêntico é
um ministério específico de autentificação,
ou seja, de oficialidade, é natural que seja
um pouco mais conservador do que os trabalhos e ensaios
dos teólogos, mas estes precisam de apoio e
confiança para suas pesquisas e sua audácia
criativa, sem que pese tacitamente a possibilidade
de perda de missio canônica e outros incômodos.
Francamente aqui fala um teólogo para os senhores
bispos: há um clima de conformismo exagerado
e temeroso. Embora tal clima não corresponda
tanto ao Brasil como a outros países.
No entanto, quando a Soter (Associação
de Teologia e Ciências da Religião) foi
fundada no horizonte da teologia engajada com as comunidades
eclesiais, com a opção preferencial
pelos pobres e com o princípio evangélico
de libertação, José Comblin chamava
a atenção dos teólogos para a
necessidade de nível acadêmico da teologia.
Nos últimos tempos ele via os mesmos teólogos
se refugiando na academia e sublinhava a urgência
de voltar às raízes eclesiais de então,
em meio às comunidades de fé, para voltar
à energia criativa que já foi nossa.
4. A fé cristã como “religião”.
A distinção entre fé cristã
e “religião cristã” é
operacional, inclusive levando em conta a memória
de Jesus, que viveu o sistema religioso judaico. A
distinção não deveria levar a
uma ruptura, mas a uma relação fecunda:
a fé se expressa como sistema religioso coerente
e se transmite como tradição religiosa.
Pode-se falar em religião cristã, mas
a distinção deveria nos ajudar a não
reduzirmos a fé cristã a uma antropologia
religiosa que, sob o verniz de cristianismo, na verdade
alimenta substância religiosa pré-cristã
e pré-bíblica, que nos reconduz a formas
arcaicas e até violentas do sagrado.
a) Retorno ao sacro pré-cristão e ao
dualismo entre religião e mundo?
O clima de pós-modernidade permite a volta
ao irracional, ou a uma racionalidade arcaica própria
do sacro pré-bíblico, por exemplo formas
religiosas de xamanismo, detectáveis em práticas
de curandeirismo e palavras visionárias. Pode-se
imputar este retorno à incapacidade da racionalidade
científica de dar conta da realidade experimentada.
O sacro antropológico não pode ser desprezado,
mas não é o essencial da fé cristã
e, às vezes, pode encobrir e perverter o essencial
da fé cristã. Nas Igrejas, tais sintomas
estão em culto à personalidade e rituais
desfocados. Permitam-me três exemplos, sintomas
que causam ruído em nossa liturgia: em alguns
casos, o neo-sacerdote, depois da unção
das mãos, foi convidado a percorrer a igreja
com as mãos levantadas sob o aplauso dos fiéis,
reforçando assim a percepção
de sua sacralidade e diferença. Ora, o óleo,
que é do crisma, é o mesmo no qual são
ungidos todos os cristãos para assumirem seus
ministérios de vida cristã adulta. O
testemunho da sacralidade dessas mãos será
o seu próprio serviço, não o
culto às mãos. O segundo exemplo é
o costume recente, já corrigido com fadiga
em algumas dioceses, de conduzir o Santíssimo
exposto em ostensório para que o povo o toque
com suas mãos ou outras manifestações
de fervor, o que os liturgistas alertam como perda
de foco da celebração eucarística,
onde há comunhão, mais importante do
que o toque fervoroso. É também incompreensão
da reserva eucarística, sempre subordinada
à participação na eucaristia.
O que eu queria sublinhar é que esta exuberância
típica do barroco leva a supervalorizar, por
exemplo, o toque ou a adoração mais
do que a comunhão, o que nos conduz diretamente
para o sacro arcaico. Finalmente, o acento unilateral
que, na celebração eucarística,
ganhou ultimamente, tanto em termos de linguagem como
na disposição do espaço e objetos
litúrgicos, o aspecto de sacrifício
centrado na cruz ou nos altares de queima da vítima
animal. Ora, o memorial eucarístico abrange
toda a vida, a morte e a ressurreição
de Jesus, e a melhor forma da mesa é a ceia
da comunidade em torno à mesa da comida. Novamente
retorna a pergunta: é contaminação
da volta do sacro arcaico também na Igreja?
Conjuntamente com este acento no sacro, ressurge também
entre nós o risco de dualismo entre religião
e mundo, sacro e profano, contrário à
economia da encarnação e da transfiguração
pascal cristã. Tais sintomas aparecem em movimentos
eclesiais e em homilias catastróficas a respeito
do mundo em seus diversos aspectos e onde a religião
parece pairar acima do mundo degradado. O que leva
a um docetismo eclesial que encobre um narcisismo
e um gnosticismo elitista, um dos primeiros problemas
internos da Igreja. Seguindo de perto a queixa recente
do arcebispo de Berlim, o que deixa interrogação
nas celebrações eucarísticas
do Caminho Neocatecumenal não é tanto
o fato de que põem um altar enorme no centro
da comunidade, com comunhão sob duas espécies
ou a ressonância dos participantes após
a meditação da palavra de Deus. Tudo
isso pode estar dentro do espírito da renovação
litúrgica querida pelo Concílio e tal
estilo de celebração ocorre sem traumas
em inúmeras paróquias comuns dos Estados
Unidos ou mesmo em pequenas comunidades de nossas
periferias. O que perturba, segundo a queixa que vem
de Berlim, é sua segregação,
seu caráter gnóstico de elite, a sensação
de serem católicos melhores que os outros católicos.
b) Igreja, transparência e sociedade do espetáculo
e do consumo.
Mais do que a pós-modernidade com seu obscurecimento
da razão crítica, é a “hipermodernidade”
que, transformando a tecnologia de meio em ambiente
onde respiramos, nos alimentamos, nos relacionamos,
nos comunicamos, torna tudo mais transparente apesar
de nós mesmos. As massas são o nosso
Big Brother, um Big Brother que George Orwell sequer
tinha imaginado, já que para ele se tratava
de um controle global do Estado totalitário.
O que está acontecendo é que até
os segredos de nossos arquivos mais secretos vão
pararna vitrine da Internet, diante de todos, a sociedade
inteira, as massas. Isso está deixando todas
as instituições mais transparentes,
e saudamos como um meio democrático de baixar
a corrupção na política. Mas
temos também os nossos “vazamentos”,
a Igreja vai se tornando mais transparente ainda que
seja “apesar dela mesma” inclusive nos
aspectos em que, por diversas razões, pensamos
ser adequado o segredo.
A cultura que não se importa mais com segredo
afeta até a confissão auricular: o recurso
à terapia, à psicanálise inclusive
em grupos, abre com grande facilidade as comportas
da consciência diante de solteiros ou casados,
de homens ou mulheres terapeutas, na expectativa de
acolhimento e cura. O nosso ambiente é globalmente
sem fronteiras para a comunicação e
não há muros ou arquivos que resistam.
A transparência se tornou uma exigência,
mais do que uma virtude ou uma escolha, e o contrário
soa a corrupção e crime.
Mas isso nos leva a um segundo fenômeno: se
a sensação de que estamos sob o foco
da luz incessantemente, não tanto do olho do
Deus que me vê, mas dos olhares da plateia,
então a vida se torna palco iluminado, show,
passarela. Essa cultura é fascinante, e o mundo
fashion pode passar rápido para a Igreja, que
também no passado era às vezes o lugar
do desfile de roupas sob os olhares dos outros. A
liturgia como espetáculo, como epifania arrebatadora,
que também tem uma história na Igreja,
remete ao aspecto antropológico do arcaico
tremendo e fascinante. Evidentemente, o Concílio
reclamou para a liturgia o retorno aos três
aspectos da genialidade romana: a simplicidade, a
sobriedade e a funcionalidade. Estes três princípios
permitem uma boa transparência, sólida
e séria. Juntamente com a participação
ativa e os ministérios, isso nos dá
critério suficiente para discernirmos os eventuais
excessos de entusiasmo pagão e a transformação
da liturgia em performances de passarela e culto à
personalidade.
c) Tempos pentecostais e patologias pentecostalistas.
Algumas estatísticas mais conservadoras apontam
para meio bilhão de cristãos de coloração
carismática e pentecostal. Esse sinal dos tempos
pode ter outros nomes, porque tem um caráter
transversal, com ventos carismáticos que atravessam
as paredes das confissões e denominações,
e inclusive das religiões: há sinais
carismáticos inclusive entre judeus e muçulmanos.
É, portanto, um sinal “ecumênico”
no sentido mais amplo. Mas pode apresentar diversas
patologias.
- Uma delas é a perda do peso da encarnação
para voar nas asas leves do Espírito. Depois
do esquecimento do Espírito, em tempos de “cristomonismo”,
teríamos agora um “pneumatomonismo”
com a liquidificação da carga de compromisso
com a encarnação histórica que
nos toca em nosso tempo.
- Outra anomalia é sua conjunção
com a exacerbação da subjetividade:
a experiência voltada para dentro do indivíduo,
que se traduz na linguagem singularizada: “tu
que estás sofrendo... põe a mão
no teu coração... tu tens um problema...mas
eu tenho a solução!” Aqui não
há “nós”, e corresponde
à experiência dos indivíduos urbanos,
já 80% da população no Brasil
ou nos EUA e crescente em todas as partes do mundo,
onde os indivíduos flutuam em massas e em conexões
temporárias ou casuais, mesmo em concentrações
de culto e de liturgia. Seria pastoralmente equivocado
desvalorizar as experiências profundamente singulares
e individuais do mistério e da mística.
Mas também seria pastoralmente imprudente desconsiderar
os seus limites. Esta energia clama por um processo
pedagógico de introdução e aprofundamento
na comunidade.
Há novos estilos de comunidades, no Brasil
bem pesquisadas pelo grupo da antropóloga Brenda
Carranza da Puc de Campinas. Há dois perfis
nessas novas comunidades, algumas de estilo soft,
pertença leve e pouca institucionalidade, mais
de acordo com os ares pentecostais que respiramos.
Mas as mais notáveis são as de pertença
hard, dura e total, buscando uma plataforma firme
num mundo movediço e meteorológico.
Esses grupos tendem a ser restauracionistas, e em
seus sites, sobretudo em blogs com comentários,
seguem um tom bastante agressivo em relação
aos que são católicos de outra forma.
Sem adequada formação podem terminar
em fanatismo e violência verbal. Algumas ocorrências
de excesso de basismo nas comunidades de base, em
décadas passadas, parecem quase inócuas
diante da crescente agressividade de grupos tradicionalistas
que se pode detectar na Internet a nível internacional
e nacional.
Embora o clima pentecostal favoreça uma sensibilidade
mais ecumênica, a mídia de algumas denominações
pentecostais tem contrastado o nome de católicos
com o nome de cristãos, que, nesse caso, substitui
a palavra “crente” e suas conotações
pejorativas vindas dos católicos. Ficamos assim
reclassificados por eles: os cristãos são
os que seguem Jesus, e os católicos são
os que seguem o Papa. Como estamos em tempos de desapropriação
de símbolos e especialmente da linguagem, fica
muito difícil desfazer este sofisma. O único
instrumento sem retaliações indignas
é o de utilizarmos também com abundância
o nome de cristãos. (Embora seja verdade que
inúmeros grupos católicos utilizem as
assim chamadas “três brancuras”
– a hóstia, Maria e o Papa – para
caracterizar a identidade católica que, de
resto, usa muita linguagem comum desses tempos pentecostais.
Se por hóstia entendemos os sacramentos, por
Papa entendemos magistério e clero, e por Maria
toda uma forma de devoção e fervor,
é certo que dizem muito do que é a identidade
católica que de fato é percebida. Mas
se desenvolvermos as formas indicadas pelo Concílio
Vaticano II, tudo ganha maturidade).
Em última análise, os tempos pentecostais,
carismáticos e místicos, que estamos
testemunhando são um sinal bastante importante
de esperança, mesmo que deem trabalho para
os pastores que devem orientar o discernimento.
d) Percepção de Igreja “falível”
e novo testemunho: opção pelos pobres
e que sofrem.
Ainda é sentida a dolorosa situação
de crime infame nos abusos por pedofilia, conjugados
ao abuso de poder sacro e de traição
da confiança, que teve como consequência
a percepção de falibilidade da Igreja
e a diminuição de autoridade pública
como perita em humanidade. Em termos eclesiológicos
já se confessava antes disso sermos Igreja
santa e pecadora, mas o cultivo da sacralidade do
clero e a repugnância pelo tipo de crime foram
um choque incomparável a outros casos de pedofilia:
corruptio optima péssima. (A falta de verbo
nos faz traduzir frequentemente pelo lado da consequência:
a corrupção do melhor o torna o pior.
Mas pode ser traduzido de forma mais contundente ao
se referir à sacralidade: a corrupção
do melhor engendra o pior. É o “anticristo”
que se pode surgir em meio cristão, quando
se perverte, segundo João.) Ou seja, foi a
própria sacralidade do poder, considerado inatingível
exatamente por sua sacralidade, que gerou o pior tipo
de pedofilia, justamente aquela vinda de pessoas consideradas
sacras. Nesse caso, além de tudo o que se aprendeu
e se providenciou com muita dor e vergonha, não
há como fazer apologia diante dos que se aproveitam
para fazer disso um trunfo contra a Igreja Católica,
(como faz sistematicamente a Igreja Universal do Reino
de Deus). Não há outra maneira de ir
curando a ferida senão a de mostrar um testemunho
diferente de sacralidade e de uso do poder: o de serviço
aos que sofrem, aos pobres e aos indefesos e inocentes.
É tempo de buscar esta cura, que não
é algo marginal para a Igreja.
As estatísticas dão esperança,
uma vez que a concentração de casos
de abuso está em clérigos cuja formação
se situou exatamente no paradigma pré-conciliar
que já não se sustentava mais. Não
voltar para as condições de formação
daquele tempo já é um ganho. Mas este
é só o lado negativo. O lado positivo
da cura é, insisto, o testemunho do contrário
do escândalo: o socorro aos pequeninos, a opção
preferencial pelos pobres e pelos que sofrem, seguindo
o começo da Gaudium et Spes e a grande tradição
latino-americana.
5. Os “sinais dos tempos” (GS/NA/DH)
Com o Concílio retomamos a atenção
ao contexto histórico e aos sinais dos tempos
para discernir por onde passa o Espírito e
o apelo de fidelidade à evangelização.
Os sinais se apresentam normalmente em meio a ambiguidades
que exigem discernimento, mas que devem em primeiro
lugar ser acolhidos para ser bem compreendidos.
a. A Igreja no espaço secular e em meio ao
pluralismo religioso.
A efervescência das religiões e a sua
recolocação na atual globalização
continua e afeta também a Igreja Católica.
A volta do religioso recalcado em algumas regiões
do planeta levanta a dúvida sobre a relação
entre modernidade, democracia e secularidade. Essa
tese de que quanto mais moderno e democrático
mais secular seria um povo nunca foi bem o caso dos
Estados Unidos. Lá ocorreu justamente o contrário:
quanto mais democracia e modernidade, mais religião.
A condição de free religion que está
nas origens do espaço americano fez com que
não houvesse confissões territoriais
como na Europa, onde se misturavam intrigas políticas
com intrigas religiosas. Nos EUA, ao invés
das confissões territoriais se impuseram as
denominações: cada indivíduo
e cada comunidade se autodenominava o que era religiosamente,
e isso permitiu manter a desterritorialização.
Esta forma criou uma autoestima de pertença
por livre adesão, e por isso a pertença
religiosa aumentou com o exercício da democracia
e com a modernização. Hoje é
uma tendência mundial, inclusive no Brasil antes
territorialmente católico. No Brasil, se somos
ainda a denominação majoritária,
não podemos mais dizer simplesmente “Brasil
católico” como os americanos não
dizem “América protestante”. Sociólogos
da religião como José Casanova, da Universidade
Georgetown de Washington, veem nisso nova fase da
secularização se pensarmos o processo
de secularização na Europa. A secularização
tem uma história que está chegando a
um ponto “neutro” em muitos lugares, e
nesse sentido também Bento XVI manifestou que
o espaço secular é o melhor espaço
para a convivência das religiões e para
a organização política. Mas vemos
ainda estertores de secularização em
conflito com a religião justamente nos territórios
considerados mais católicos da Europa, como
Espanha, Bélgica, Irlanda, Polônia, algo
também em Portugal, Itália e Áustria.
É a última fronteira da desterritorialização,
o desaparecimento de países de confissão
religiosa. Na área muçulmana há
sinais em países de maioria muçulmana
que se tornaram democráticos, como a Turquia,
a Indonésia, o Senegal, e hoje é a tendência
da primavera árabe.
A França foi pioneira em expulsar a religião
do espaço político por considerar a
religião um estorvo e não uma contribuição
para o progresso. As elites políticas e intelectuais
brasileiras imitaram a França, e hoje é
uma postura conservadora, incapaz de perceber que
as tradições religiosas são uma
energia atômica na organização
das sociedades. Isso não dispensa a vigilância
no uso desta energia atômica, pois o fundamentalismo
se torna energia desagregadora. Mas as religiões,
por seu caráter de transcendência, dão
energia para os sacrifícios necessários
à vida em sociedade, inspiram generosidade
e sabedoria para a boa convivência, portanto
para a formação ética, segundo
a expressão de Habermas no diálogo com
o então Cardeal Ratzinger. Ele era completado
pela posição do Cardeal: a relação
de religião e política no espaço
secular requer uma analogia com o diálogo de
fé e razão. A mesma postura de diálogo
franco é requerida para a convivência
das religiões no mesmo território.
b. Igreja e autonomia dos sujeitos.
A lenta conquista do valor do indivíduo, da
singularidade de cada pessoa, da sacralidade da consciência,
fundamento da liberdade responsável e instância
última da moral, deve muito à fermentação
do evangelho. A autonomia do sujeito tem a última
palavra inclusive quando aceita obedecer a autoridade
e reconhece o ensinamento como vindo de revelação
divina. Uma das maneiras de saber o que se passa em
meio aos católicos, nesse tempo de medidas
científicas, é a estatística.
Ou, como dizia um empresário ao seu bispo nos
EUA, se há sintoma de um problema como a diminuição
da participação, ele faria uma enquete
para saber, assim como faria em sua empresa se seu
produto não está tendo grande aceitação.
Ou ainda, preventivamente, faria uma enquete para
saber a melhor forma de colocar o seu produto. Este
é um pensamento muito americano, muito prático
e com sabor de mercado onde o cliente é majestade.
Mas é revelador de uma questão que nos
afeta como Igreja diante do leigo adulto: ele tem
a última palavra desde a sua consciência.
Assim como tivemos uma ruptura entre fé e cultura,
estamos tendo um distanciamento entre magistério,
sobretudo em questões morais, e recepção
dos católicos enquanto sujeitos de sua consciência.
Evidentemente, é necessário formar a
consciência, uma complexidade que não
depende somente da Igreja, e o processo de aproximação,
sobretudo de reaproximação entre magistério
e consciência dos fiéis, começa
pelo diálogo franco sem invocação
ao princípio de autoridade sacra. O princípio
de autoridade não pode ser imposto, a autoridade
deve ser ganha, conquistada, e isso através
do testemunho e da palavra. Isso nos leva ao ponto
seguinte.
c. Igreja, ciência e moral. Entre ética
de valores e ética de benefícios.
Questões delicadas de ordem moral como a recente
votação do STF sobre anencefálicos
e sua argumentação nos remetem para
questões de fundo que viemos enfrentando e
continuaremos enfrentando: o uso da ciência
para a constituição e o aperfeiçoamento
da ética, e os diferentes modelos de argumentação
que guiam a moral.
- Por um lado, Bento XVI é um exemplo do exercício
do diálogo entre fé e razão e
do apoio na razoabilidade dos elementos da fé
para apresentá-la no espaço secular
e pluralista da sociedade em que se pode contar com
um entendimento comum no bom uso da razão.
De fato, toda a história da Igreja Católica
testemunha a busca de boas relações
entre fé e razão, censurando os extremismos
de ambos os lados. Por isso também descartamos
a teoria das “verdades paralelas”, como
se fosse possível ser verdade numa ordem de
conhecimento o que não seria verdade em outra
ordem de conhecimento, o que positivamente diz o preâmbulo
da Fides et Ratio: a fé e a razão são
como duas asas para nos elevarmos à contemplação
da verdade – no singular.
- Por outro lado, em tempos modernos tal relação
de fé e razão se converteu em fé
e ciência, com novos desafios. As ciências
modernas tem uma metodologia indutiva, que passa pela
experiência e pela verificação.
A verdade se dá sempre em construção,
provisória, um estágio. É inegável
que as ciências ajudam a progredir no discernimento
moral. Basta pensarmos no progresso da qualidade de
nossos juízos sobre violência, suicídio,
sexualidade, corporeidade, etc. depois dos conhecimentos
acumulados pela psicologia e pelas ciências
humanas em geral. Nesse sentido, a Igreja pode ser
agradecida à ciência pela ajuda no progresso
da consciência, um dos pilares da moral. Foi
a ciência que, em meados do século XIX,
permitiu à Igreja uma clara definição
do começo da vida de um ser humano em sua concepção.
Mas a mentalidade positivista assume ainda que a ciência
é o único caminho para a verdade, e
quando se trata de um espaço laico, secular,
como único instrumento político válido
para decisões de ordem moral. A sua provisoriedade
e a seus instrumentos tecnológicos aperfeiçoados
mas também limitados, como os exames para diagnóstico
e prognóstico na área da medicina, inclinam
para o modelo ético que muitos chamam de “ética
prática”, ou também “consequencialista”,
de resultados, quando é necessário assumir
riscos. Ela se presta para ir diretamente à
questão do melhor benefício, ou seja,
ao uso do princípio ético do benefício.
E, negativamente, a evitar o maior mal, ou seja, o
princípio ético do mal menor. Este último
não é absolutamente de fácil
aplicação, mas diante da inevitabilidade
de algum mal, e diante de urgências, que os
agentes da área de saúde enfrentam com
maior frequência, torna-se um princípio
prático guiado pelas consequências. Claro
que a Igreja também aceita estes princípios,
que tendem para uma ética teleológica,
de fins e de consequências. Mas a Igreja parte
de outro modelo, digamos “clássico”:
a ética deontológica, que deriva de
princípios estabelecidos previamente pela natureza
mesma dos valores, da antropologia, e, no nosso caso,
da criação divina, da revelação.
Na área da filosofia, ela está próxima
da ética de Aristóteles e de Kant, em
que está suposto o conhecimento da natureza
a ser realizada. A virtude e os processos tem em vista
o que previamente está designado pela natureza
ou pelo princípio, o que chamamos de lei natural.
Diante de novos conhecimentos, este modelo costuma
acionar o princípio de precaução
e opta por uma postura mais conservadora. Tudo isso
soa estranho, um idealismo inviável, para o
positivismo científico, que, como vimos, é
fascinante especialmente em meios acadêmicos.
A ética de maior benefício e menor mal
é útil para os que se guiam pela urgência
e precisam assumir risco, como vimos na mídia,
pois há uma economia de raciocínios,
de tempo, e, pensa-se, de sofrimentos.
Muitos cientistas já desistiram de procurar
onde está o começo de um ser humano
no ventre materno, pois reconhecem que isso é
de caráter filosófico e antropológico
que escapa ao alcance da ciência. E a filosofia
contemporânea já desistiu de uma natureza
ou de um desígnio prévio sobre a realidade.
Na ética das relações humanas
– pense-se, por exemplo, no casamento e na família,
nas questões em torno da sexualidade, de gênero,
no debate sobre adoção de filhos por
homossexuais em união estável –
a ética do maior benefício ou do mal
menor são os princípios mais vigentes.
E isso contrasta com as tradições éticas
que provém não só do ensinamento
da Igreja, mas também de algumas outras tradições
religiosas. Portanto, é uma questão
crucial em que não basta manifestar nossa posição
pontual cada vez, mas esclarecer o mais possível
nossos pressupostos e os contrastes e conflitos assumidos.
É notável como o princípio de
precaução vem perigosamente diminuindo
juntamente com o de uma natureza das coisas em que
não somos os fabricantes da moral.
Na área da ecologia e da ética ambiental,
no entanto, encontramos ambientalistas que voltam,
ainda que através de um paradigma novo, à
natureza das coisas e ao princípio de precaução.
Basta pensar em transgênicos, sementes, transposição
de rio e gigantescas hidrelétricas, etc.
d. Igreja e aquecimento global.
Importar-se por este grave sinal dos tempos que está
aumentando também a temperatura de nossos medos
com seus monstros e esfriando a temperatura da esperança,
é crucial para testemunharmos de que, junto
com toda a humanidade e agora também com todas
as formas de vida na terra, somos “uma grande
família”. O engajamento mais explícito
da Igreja, como já vem ensaiando, por exemplo,
nas Campanhas da Fraternidade ao menos em quatro ocasiões,
é também um fator de diálogo
e de credibilidade no espaço da sociedade secular
e plural.
Nesse sentido, o Conselho Mundial das Igrejas tem
um acúmulo de vinte anos de experiência
com projetos de justiça ecológica e
para com as vítimas climáticas, com
migrantes climáticos, etc. Em nosso tempo,
a justiça ecológica, a justiça
social e a migração precisam ser tratadas
juntas. A Cúpula da ONU sobre o ambiente, de
junho próximo, chamada Rio+20, e a Cúpula
dos Povos junto com a Rio+20, pode ser uma oportunidade,
embora seja um momento de cúpula, mas há
entidades da Igreja, como a Caritas de diferentes
países, que tem experiências e que podem
ser potencializadas para parcerias com um apoio mais
oficial e explícito.
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Prof.
Fr. Luiz Carlos Susin OFMCap
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