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Análise de Conjuntura – Maio de 2012
Apresentação
Em nível internacional, os impactos da eleição de um socialista na França nos rumos econômicos da União Europeia e a permanência no poder de Assad na Síria mereceram aprofundamento na Análise ora apresentada. Conclui-se esse âmbito com breve comentário sobre as eleições presidenciais norte-americanas.
Na análise da América Latina destacam-se aspectos conjunturais da política no Peru e Colômbia, a situação eleitoral na Venezuela e no México, as estatizações na Bolívia e Argentina, e três questões diferentes sobre direitos humanos no continente: defesa da vida; revelados documentos secretos da operação Condor; e situação de pobreza, marginalização social e política em que se encontram as populações indígenas em vários países da América Latina.
A análise do significado da redução dos juros realizados pelo Governo Federal e suas implicações para as relações de poder e com a inflação abre a Conjuntura Nacional. Em seguida, o desenrolar dos fatos alusivos à CPMI sobre as operações perpetradas por Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, e o envolvimento do Senador Demóstenes Torres. Este plano de análise é encerrado com a abordagem do movimento ?Veta, Dilma?, após a aprovação pela Câmara Federal de proposta para o novo Código Florestal e com a explicitação de alguns dados iniciais do Resultado da Amostra do Censo 2010 que revelam mudanças importantes na realidade brasileira.
No âmbito dos Movimentos Sociais, aborda-se o resultado positivo das votações no STF acerca de terras indígenas do território Pataxó Hã Hã Hãe na Bahia e da política de cotas para negros nas Universidades Federais, criando expectativa para outras votações emblemáticas. Segue-se, o debate sobre como aplicar no país a convenção 169 da OIT que preconiza que os povos indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais deverão ser consultados sobre iniciativas governamentais e legislativas que impactem seus territórios ou suas culturas e modos de ser.
Sobre as Notícias do Congresso foram destacados os temas: recursos contra a aprovação da ADPF 54 (despenaliza aborto de fetos anencefálicos); reforma do Código Penal; PEC do Trabalho Escravo; Estatuto da Diversidade Sexual; MP que altera limites de oito áreas ambientais; validade nacional da Declaração de Nascido Vivo; Erradicação do Trabalho Infantil; e Prescrição de crime sexual contra criança.
Excepcionalmente, o texto traz também um anexo que sintetiza alguns dados do Resultado da Amostra do Censo 20120.

Internacional
A Europa imobilizada

Duas visões se confrontam: austeridade versus relançamento econômico. A origem da crise: num contexto global de crise (2008) mal resolvida, a Grécia, com enormes déficits públicos, se declara insolvente, incapaz de pagar suas dívidas. Essa situação afetava os 16 outros países da União Europeia. Ocorreu um efeito-dominó: a crise se estendeu aos países com uma situação financeira frágil: Espanha, Portugal, Itália e Irlanda. Bilhões de euros, virtuais, especulativos, fugiram, com medo de ver o euro desvalorizado e os bancos fechados.
A reação dos países da zona do euro foi solidária e interessada. Não se podia abandonar um país membro afundando. Seria negar a utilidade da zona do euro e aumentar os riscos para todos. A dívida da Grécia foi ?perdoada e, no total, Atenas recebeu 100 bilhões de euros. No ápice da crise, ministros das finanças e chefes de Estado passaram horas e dias buscando a melhor ?saída?. Em maio (5/5/2012), 25 países assinam o ?Pacto Orçamental?, que tolera um déficit mínimo de apenas de 0,5% das receitas. O Pacto foi elaborado, sob a pressão do tandem Merkel/Sarkosy (?Merkosy?). Em muitos pontos, o Tratado parece com o (fracassado) ?Acordo de Washington? (1989). As medidas do pacto se assemelham em muitos pontos aos que o FMI impôs aos países latino-americanos nos anos 1980 e 90: exaltação da austeridade, privatizações, redução dos gastos públicos, redução dos Estados, reformas do trabalho, para voltar ao equilíbrio. São medidas neoliberais que irão aumentar ainda mais a recessão.
O novo presidente francês, François Hollande, criticou muito esse acordo quando foi adotado em Bruxelas, dizendo que pedirá uma revisão do Tratado. O neoliberalismo não pode resolver os numerosos desafios em todos os níveis. O presidente Hollande considera que para superar a crise é necessário um relançamento econômico, com investimentos públicos, dando um toque de keynesianismo a uma União Europeia cansada do rigor excessivo e sufocante.
Ângela Merkel repetiu que o Tratado não é renegociável, que tinha sido aprovado por 25 países (dos 27 da União Europeia) e que devia agora ser aplicado. A Alemanha não quer um crescimento pelos déficits, mas sim pelas reformas estruturais.
Para a Grécia, Ângela Merkel considera que o plano de ajuda europeu se configurava no melhor caminho para enfrentar a crise. ?Essa política expressa uma grande solidariedade européia por uma parte e exige enormes esforços do lado dos gregos, disse Merkel.
O dia seguinte à vitória de Hollande, Paul Krugman, prêmio Nobel 2008, escreveu no editorial do New York Times: ?Os Franceses se revoltam e os Gregos também. Enfim, já era tempo! Berlim pode não gostar desta conclusão: ?parece que os Alemães não têm mais o apoio indefectível do Elysée. E isso, podem crer ou não, significa que o euro e o projeto europeu têm, agora, melhores chances de sobrevivência?.

Por que Assad se mantem no poder na Síria?

No contexto da primavera árabe, onde regimes e chefes criminosos foram presos ou mortos, como explicar que o tirano Assad ainda se mantenha no poder em Damas? Já se fala de 12 mil mortos e de mais de 150 mil presos. Apesar dos conselhos amigos lhe sugerindo deter a repressão sanguinária para atenuar a sua imagem de ?carrasco?, em nível internacional, apesar da força da oposição armada (sustentada pelos sunitas iraquianos e pelo Qatar), ou apesar das condenações da ONU ou da Liga Árabe, apesar da destruição progressiva do país, Assad desafia os seus adversários internos e externos, manifestando a todos que não tem a menor intenção de deixar o poder.
O presidente e seus principais aliados são alauítas, minoritários na população. Eles temem o que poderia acontecer se os sunitas, majoritários na oposição, tomassem o poder. A metade da população, o exército e outras forças ainda são leais ao presidente. Neste contexto a economia vai mal. Poderia acontecer que os pequenos produtores e comerciantes se afastassem do presidente. Para muitos, Assad representa um fator de estabilidade política.
Os países denunciam de forma unânime o ditador, todavia não querem que Assad renuncie!
A Arábia Saudita descarta uma intervenção militar. É que ela teme o que pode acontecer se Assad for derrubado. Para Israel, Assad tem sido um vizinho tranquilo que, mesmo tendo fornecido armas ao Hizbollah durante alguns conflitos, não deixa os Palestinos entrarem no seu país. Assad representa uma segurança na fronteira norte.
Washington fala duro, mas ?não tem apetite para uma intervenção militar. Foi um alívio para a Casa Branca quando a Rússia vetou uma resolução da ONU que propunha intervenção para superação da crise. O ministro das relações exteriores francês, lembrando o passado da França na Síria, gritou e gesticulou, denunciando o massacre, mas não mencionou um eventual enviou de soldados.
Na Turquia, que procura melhorar suas relações na região, o ministro do Exterior declarou: ?A Turquia não provê armas, nem apóia os desertores do exército?. Não quer uma guerra civil em sua porta.
Ainda que as palavras sejam duras, ninguém quer, de fato, que Assad vá.

Eleições nos Estados Unidos

As prévias do Partido Republicano definiram o adversário de Barack Obama nas eleições dos Estados Unidos. Uma opção mais conservadora, próxima ao fundamentalismo, já presente no pleito passado e viabilizada pelo ?Partido do Chá não se efetivou. Definiu-se pela candidatura de Mitt Romney, ex-governador de Massachusetts de tendência mais moderada.
Pelo lado do Partido Democrata a candidatura de Obama deixará de ser novidade como no passado. Obama terá que defender seu governo e apresentar uma proposta consistente para os próximos anos. Seu governo se conduziu na estrutura demarcada no Governo Bush sem operar transformações profundas na forma administrativa do Estado. Isso o inibirá em possíveis críticas do candidato do Partido Republicano à estrutura administrativa. Seus pilares são oriundos do Governo Bush.
Nestas eleições estarão em debate os caminhos para a superação da fragilidade econômica dos Estados Unidos que gerou o aumento do desemprego e da população na linha da pobreza agravadas pela crise financeira mundial em suas diferentes ondas. Quanto à crise financeira, vê-se alguma melhora nos Estados Unidos, contudo a situação ainda é preocupante.
No que se refere à política externa, Obama capitalizou o fato da morte de Osama Bin Laden, contudo não assumiu um posicionamento decidido em relação aos conflitos no Oriente.
Um possível exercício de acompanhamento nos debates entre Obama e Romney poderia ser orientado pela pergunta sobre a proposta dos candidatos em relação à América Latina, países do Oriente, política ambiental e enfrentamento da crescente pobreza da população norte americana.

América Latina e Caribe
Conflito e Paz no Peru e na Colômbia influenciando a política

No Peru se instalou uma crise momentaneamente no governo de Ollanta Humala com a renúncia dos Ministros do Interior Daniel Lozada e da Defesa Alberto Otárola. Tais quedas se deram em função das mal sucedidas ações do governo para conter o avanço do grupo Sendero Luminoso, que conseguiu sequestrar 36 trabalhadores da indústria petrolífera no início de Maio. Os trabalhadores foram libertados cinco dias depois em uma ação militar. O grupo Sendero Luminoso não executava uma ação desta envergadura há quase uma década.
Na Colômbia onde historicamente ocorrem confrontos entre os governo e resistência armada como as FARC, o governo de Juan Manuel Santos apresentou uma queda de popularidade em pesquisa recente passando de uma aprovação de 64% em novembro para 58% agora em maio. A pesquisa apontou desemprego, segurança e custo de vida como razões para a queda de popularidade. Há que se destacar também nessa pesquisa de opinião a manifestação da maioria dos entrevistados (53%) sugerindo que o governo deve buscar o diálogo e a paz na interação com as FARC. Em novembro esse percentual era de 47%.
Eleições presidenciais na Venezuela e no México eleitorais, na Venezuela, têm sido divulgadas com resultados muito diferentes. Há, por exemplo, uma pesquisa em que Chávez aparece 30 pontos percentuais na frente do opositor Henrique Capriles e, em outra, aparece em segundo com uma pequena diferença de intenção de votos. As pesquisas têm sido usadas como instrumento de campanha e na maioria indica ampla vantagem de Chávez.
As eleições no México que ocorrerão em julho continuam despertando atenção. A candidata da coalização governista Josefina Vázquez Mota do PAN (Partido Ação Nacional) está em segundo lugar, tecnicamente empatada com López Obrador, candidato de esquerda. Em primeiro lugar está o Candidato Peña Neto do PRI (Partido da Revolução Institucional). Se os resultados eleitorais seguirem as atuais pesquisas, o PRI, que governou o México por sete décadas (1929 – 2000), poderá retornar ao poder. Economia e segurança são os grandes temas da campanha. A economia, pelo fato de o México ter registrado diminuição significativa em seu crescimento de 2010 (5,5%) para 2011 (3,9%) e estar fortemente dependente da economia norte-americana. A segurança, em função das dificuldades do atual governo (Calderón) em lutar contra os cartéis do narcotráfico.

Nacionalização de empresas na Bolívia e Argentina

Chamaram atenção internacionalmente os processos de estatização que ocorreram tanto na Bolívia como na Argentina. Na Bolívia, houve a estatização da Transportadora de Eletricidade S.A. (TDE) – sob o argumento de que a empresa investiu muito pouco no país nos últimos anos e pela sua importância estratégica para o desenvolvimento econômico do país, sendo que atende 85% do mercado nacional e possui 73% das linhas de transmissão na Bolívia. Na Argentina, ocorreu a reestatização da Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF). Considerada como ação populista por uns, foi justificada pela presidente Cristina Kirchner como sendo de interesse público. Ambas eram empresas estatais no passado e foram privatizadas. Agora, os governos retomam o controle sobre o patrimônio e serviços dessas empresas.
Esses processos de nacionalização de empresas são continuidade a uma série de outras ocorridas ou em processo tanto na Bolívia e na Argentina, como também na Venezuela e Equador. Na Bolívia ocorreram em 2010 expropriações de quatro empresas geradoras de energia e, antes, expropriações nas áreas de gás, petróleo e mineração. O temor em alguns mercados é desse processo dar forças a movimentos que lutam pela reestatização de outras empresas na América Latina, privatizadas durante a onda neoliberal que imperou em governos passados em diversos países, inclusive no Brasil. Aqui há movimentos sociais que reivindicam a reestatização de empresas como a Companhia Vale do Rio Doce.
Direitos Humanos na América Latina
Família, aborto e o direito de interromper a vida de pacientes terminais estão entre os primeiros temas sobre direitos humanos debatidos na Argentina. Analistas avaliam que o governo de Kristina Kirchner tem dado sinalizações contraditórias sobre estes temas. Recentes deliberações da Corte Suprema de Justiça a respeito do aborto também têm provocado reações de diversos setores, inclusive, acusando-a de usurpar a função legislativa do congresso. Em 9 de maio, o Senado Argentino aprovou a Lei da ?Morte digna?, que prevê a possibilidade de suspender a hidratação e alimentação de doentes terminais.
Em segundo lugar, a divulgação pela imprensa de documentos secretos da Polícia Federal Argentina sobre a Operação Condor (aliança político-militar entre regimes militares da América do Sul — Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai montada nos anos 60 e atuante nas décadas de 70 e 80) revela aspectos de como crimes foram cometidos pelas forças repressivas da Argentina, Uruguai e Chile contra militantes de algumas organizações políticas desses países. Essa divulgação é mais um passo na história desses países para se resgatar a memória das atrocidades cometidas em nome do Estado e a possibilidade de que seus responsáveis sejam julgados.
Por último e, de altíssima relevância para toda a América Latina, temos o pronunciamento no mês de abril, de Alícia Bárcena, Secretária Executiva da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina), que denunciou a situação de pobreza, marginalização social e política em que se encontram as
populações indígenas em vários países da América Latina. Segundo ela, tal situação não é resultado de um momento, mas de uma discriminação estrutural. São mais de 30 milhões de indígenas em situação de discriminação. Pode-se dizer que tal situação configura-se como discriminação étnica e racismo estrutural.

Nacional
Juros, inflação e poder.

As iniciativas e pronunciamentos da presidente Dilma nas últimas semanas (marcantemente, o discurso de 30 de abril) denotam uma inflexão na política econômica, em termos de ênfase e de prioridades entre objetivos complementares; parece querer iniciar um tempo (em parte) novo, se comparado com a razoável continuidade dos governos Collor, Itamar, FHC, Lula – e o primeiro ano de Dilma.
Até agora, a política econômica se baseava em juros altos e austeridade fiscal. A tenacidade destes dois instrumentos macroeconômicos devia garantir uma inflação baixa e a confiança dos mercados internacionais na economia brasileira.
Os juros altos (por muito tempo, os mais altos do mundo) se destinavam a atrair capital externo. Arguia-se que a propensão média para poupar é baixa no Brasil. Um dos papéis fundamentais dos juros altos seria atrair a poupança externa, para investimento no Brasil. De fato na prática o sucesso deste intento foi modesto. O capital atraído era, sobretudo, especulativo e voltado para o setor financeiro da economia. E mais, não raro, poupança interna seguia o mesmo caminho: empresários nacionais preferiam colocar suas reservas no mercado financeiro, em aplicações mais seguras e mais rendosas que na produção (real) de bens e serviços.
Como os juros altos pesavam no serviço da dívida pública, agiam de novo como tenazes junto com a austeridade fiscal, para comprimir a capacidade do governo de gastar em necessidades sociais, como educação e saúde.
Estes juros altos e o conjunto da política econômica (a ?confiabilidade do Brasil para os mercados externos) garantiam um fluxo de aplicação externa. No que os investidores externos cambiavam seus dólares para os aplicarem em reais no Brasil, geravam no mercado cambial um ?excesso? de dólares (em comparação com o que ocorreria pelo jogo de mercado de importação e exportação). Quer dizer, o preço do dólar era ?pressionado para baixo? em relação a seu valor em reais correspondente à força das duas moedas em termos de bens e serviços. O preço ?de mercado? do dólar em reais no Brasil forçava para cima os preços de nossas exportações e para baixo os custos das importações gerando tensão constante na balança de pagamentos. O pior disto é que torna nossa indústria menos competitiva do que poderia ser diante das importações.
Por outro lado, os juros altos eram dificuldade para nossa indústria: o do custo do dinheiro. As indústrias estrangeiras, com que as nossas competiam, tinham acesso a recursos financeiros mais baratos (a juros mais baixos, prazos mais longos, custos mais reduzidos de operação financeira). Não era sem razão que empresários nacionais não associados diretamente com capital externo (como o falecido ex-vice-presidente José de Alencar) pleiteassem a guinada que se está tentando dar na política econômica.
Dilma quer criar condições para um crescimento um pouco mais voltado para dentro e daí a pressão sobre os bancos para reduzir os juros e os custos do dinheiro (taxas de administração, entre outros).
A nova forma de cálculo do rendimento da caderneta de poupança para novas cadernetas ou novas aplicações, faz parte da estratégia de redução geral dos juros. Tradicionalmente os detentores das cadernetas são em maioria pequenos poupadores, mas não deixam de ser parte do mercado (interligado) de oferta de poupanças para investimento.
Este processo almejado é um fato econômico, de importantes aspectos políticos. Melhor examinado se constata que é mais exato falar-se de um fato político com aspectos econômicos decisivos. O que Dilma está querendo fazer supõe deslocamento de poder de fora do país para dentro, do setor financeiro da economia para o setor produtivo real. Em parte supõe, em parte induz este deslocamento de poder – para ser bem sucedido.
Além da resistência de interesses atingidos, o processo enfrenta dificuldades do momento econômico, que ele encontra ou que induz.
Entre as dificuldades que encontra, pode-se citar a queda do preço internacional dos produtos agrários e minerais que o Brasil exporta – e que torna mais complicada a evolução do câmbio.
Entre as dificuldades trazidas pela mudança mesma, há o efeito colateral do aumento dos preços das importações, pela redução do fluxo de dólares e subida do valor deste em termos de real. No médio prazo, este aumento faz parte da correção que se visa, ao reorientar demandas de bens importados para aqueles nacionais. Mas no curto prazo, ao encarecer inevitavelmente parcela do consumo e do investimento físico nacional, contribui para inflação.

Caso Carlinhos Cachoeira-Senador Demóstenes Torres e outros

Mais uma vez a sociedade brasileira se depara diante de mais um caso de corrupção no País. Um caso complexo e ainda em desvelamento. Cada dia novos elementos surgem para escândalo dos que sonham com critérios éticos na democracia.
Não é pretensão dessa Análise apresentar um quadro completo da situação Demóstenes-Cachoeira. Tudo partiu da empreitada da Polícia Federal em coleta de dados, através da Operação Vegas, em 2009, e completada pela mais recente Operação Monte Carlo com muitos desdobramentos.
A primeira operação detectou desvios envolvendo o denominado ?Carlinhos Cachoeira, pseudônimo de Carlos Augusto de Almeida Ramos, empresário de jogos de azar, com uma relação espúria com instituições variadas. As informações colhidas pelas citadas Operações o relacionam com o Parlamento Federal, via o Senador Demóstenes, e com alguns deputados federais. Igualmente empresas de alto porte estão implicadas; a título de exemplo cita-se a empresa Delta, com atuação em todo o país, com contratos bilionários com o próprio Governo Federal através do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) com projetos em andamento. E mais. As informações fiscais, encaminhadas pelo STF e pela Fazenda à CPMI, revelam um ?universo de empresas coligadas?, nas quais Cachoeira tem participação acionária; isto leva a crer que a evasão de divisas é outro dos crimes praticados por ele.
A novela começou a ser revelada por meio de inúmeros telefonemas do Senador Demóstenes com Carlos Cachoeira, comprometendo o senador em sua imagem até então considerada ilibada. Demóstenes vai ao plenário do Senado para se explicar sobre a acusação da imprensa de que teria mantido quase 300 contatos telefônicos com Cachoeira. No início, recebeu apoio dos seus pares, mas foram tão fortes os indícios que levaram os colegas senadores a mudarem de ideia, classificando-o mesmo de personagem de ?dupla personalidade?.
A Comissão de Ética do Senado aceitou uma representação do PSOL pedindo a abertura de um processo administrativo-disciplinar contra o referido Senador. No mesmo dia, o ministro do STF Ricardo Lewandowski autoriza a quebra de sigilo bancário de Demóstenes. A Comissão de Ética, tendo como relator o senador Humberto Costa, ouvida a defesa, aprovou a abertura do processo por 16 votos a 0. O processo continua correndo, devendo chegar ao plenário do Senado antes do recesso do Congresso, de julho; há expectativa de que o Senador Demóstenes Torres seja julgado indigno de ser representante do povo por quebra de decoro parlamentar.
Ele renunciará ao mandato antes do julgamento? Não parece claro embora já tenha declinado da filiação do seu partido político – o DEM.
No entanto, novos passos ainda mais profundos vão sendo dados. A instauração de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) tem trazido à tona muitas informações já registradas, com acesso aos membros da CPMI e aos advogados de defesa dos acusados. Estão andamento os interrogatórios e a coleta de mais provas por meio de testemunhos pessoais de acusação e de defesa.
Mesmo os depoimentos sendo secretos, a grande imprensa tem transmitido informações a serviço da sociedade com sede de acompanhamento dos fatos vividos em aparatos institucionais que a atingem de cheio.
O quadro vem se tornando cada dia mais complexo e com riscos de perda de foco pela ampliação demasiada. Tenha-se como exemplo a insistência de parlamentares de que o Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, seja escutado na CPMI, como inquirição sobre um possível abafamento do caso Demóstenes-Cachoeira, já presente na operação Vegas, em 2009, quando ele já teria conhecimento dos fatos. Há quem veja nessa insistência uma estratégia para desgastar o Procurador, considerando ser ele o responsável pela apresentação no Supremo Tribunal Federal (STF) da denúncia do ?Mensalão?, que envolve um grande número de parlamentares. Verdade ou exacerbação de outros acontecimentos igualmente conflitivos no atual momento histórico?
Nesse contexto, disputas jurídicas e partidárias têm circulado nos bastidores dos poderes da República. Conforme decisão da CPMI, o Procurador Roberto Gurgel deve responder às devidas interpelações por escrito e não oralmente como tinha sido proposto.
Ainda outros entraves têm causado conflitos em torno dessa questão que envolve partidos políticos, exige definições de pessoas dos três poderes, com forte cobertura dos meios de comunicação social.
Muitas ambiguidades estão em jogo. Não por acaso, um Ministro do STF aceitou a solicitação do advogado de Cachoeira para que seu depoimento seja adiado, alegando falta de conhecimento das provas. Táticas jurídicas? O seu advogado é o renomado Márcio Tomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, contratado por 15 milhões de reais, conforme afirmou a imprensa.
Por enquanto, há mais perguntas do que respostas para se saber onde chegará toda esta enroscada. Poderá ser um momento privilegiado de consolidação da democracia ou poderá ser também momento de frustração. As instituições têm batalhado, num agir insano, na busca de maior transparência, condição para um passo adiante na maturidade democrática no Brasil. A sociedade acompanha a novela com esperança de novos ares.

Movimento “Veta, Dilma” e o Código Florestal

A aprovação na Câmara dos Deputados da proposta de mudança do Código Florestal representa o maior retrocesso na legislação ambiental na história do País. Se o texto aprovado pelo Senado - embora contasse com avanços residuais - já significava anistia aos desmatamentos ilegais e incentivava novos desmatamentos, os deputados conseguiram o que parecia impossível: torná-lo ainda pior.
O texto da Câmara dos Deputados, além de ferir os princípios constitucionais da isonomia, da função social da propriedade e da proibição de retrocessos em matéria de direitos fundamentais, feriu o interesse nacional. O resultado decorre da ação dos deputados vinculados aos ruralistas, que com eficiência e habilidade instrumentalizaram o discurso de defesa dos pequenos proprietários e da agricultura familiar, retirando as poucas melhorias que o Senado efetivou.
O texto aprovado na Câmara, além de consolidar estragos ambientais já perpetrados, trará imensos ganhos patrimoniais aos detentores de domínios no Centro-Oeste e no Norte nos quais as áreas de preservação permanente (APP) foram derrubadas, queimadas e maquiadas com capim.
A vitória ruralista remete ao paradoxo de um país majoritariamente urbano em que a maior representação na Câmara dos Deputados é rural. Revela também o descolamento entre o legislativo e a maioria da sociedade brasileira que, mediante pesquisa de opinião, é contrária à anistia a quem desmatou e a redução das áreas de proteção permanente.
A Câmara nesse episódio se manteve distante das expectativas da sociedade brasileira, deixando-se capturar por um grupo econômico e político poderoso em detrimento da necessária mediação dos interesses envolvidos.
Essa disfunção gerou forte reação na sociedade expresso em editoriais de importantes jornais e revistas de grande circulação nacional sugerindo que a Presidente Dilma corrigisse o acinte feito pelos deputados.
Nesse contexto as redes sociais, muitos artistas e intelectuais formaram o coro ?Veta, Dilma!?. É interessante notar que o movimento ?Veta, Dilma!? seja anterior à aprovação do texto de reforma do Código Florestal na Câmara dos Deputados, denotando que os organizadores do movimento já percebiam como seria difícil vencer a cultura de produção a todo custo que está incrustada na mentalidade da bancada ruralista e de seus aliados.
Dada às dificuldades, o caminho do movimento ?Veta, Dilma!? foi o de centrar energia no debate com a sociedade brasileira, espaço onde os ruralistas mostraram-se frágeis e sem capilaridade social. A estratégia mostrou-se acertada, pois em poucos dias uma discussão supostamente árida, técnica e que gera dúvidas até entre aqueles que já acompanham profundamente o assunto, ganhou audiência nas redes sociais por meio do ?clic ativismo?.
O movimento ?Veta, Dilma!? se caracteriza por focar no apoio à presidente Dilma para que ela saiba que terá o respaldo da sociedade para cumprir seu compromisso de campanha presidencial de impedir retrocessos no Código Florestal.
O que se debate agora é o alcance e a profundidade do veto, pois há os que defendem que Dilma vete os ?excessos? cometidos na Câmara e retorne ao texto acordado no Senado, visto como equilibrado e do consenso possível. E de outra parte, cresce a opinião de que as mudanças efetivadas na Câmara, ao anular os avanços feitos no Senado, tornam inócua a tentativa do veto ?cirúrgico? a pontos específicos. Desse modo, o mais adequado nessa ótica seria o veto integral ao texto do Código Florestal, sintetizada na insígnia ?Veta tudo Dilma?.
Independente do resultado e do alcance do veto, a sociedade brasileira sairá mais fortalecida, uma vez que em tempo algum se discutiu tanto a questão florestal e ambiental como agora e expressou sua insatisfação a grupos específicos que operam no legislativo. Quem sabe os ?indignados? que povoam a Europa estejam chegando por aqui.

Alguns dados do censo demográfico de 2010

O IBGE divulgou os Resultados Gerais da Amostra do Censo 2010, que apresentam uma série de mudanças ocorridas no país de 2000 para 2010. A pesquisa inclui informações sobre características de migração, nupcialidade, fecundidade, educação, trabalho e rendimento, pessoas com deficiência, domicílios e deslocamento para trabalho e estudo, e tempo de deslocamento para trabalho.
No período de dez anos, o número de óbitos de crianças menores de um ano caiu de 29,7 para 15,6 para cada mil nascidas vivas, um decréscimo de 47,6% na taxa brasileira de mortalidade infantil. Entre as regiões, a maior queda foi no Nordeste, de 44,7 para 18,5 óbitos, apesar de ainda ser a região com o maior indicador.
Por outro lado, a taxa de fecundidade no Brasil também caiu, de 2,38 filhos por mulher em 2000 para 1,90 em 2010, número abaixo do chamado nível de reposição (2,1 filhos por mulher) que garante a substituição das gerações.
O nível de instrução da população aumentou: na população de 10 anos ou mais de idade por nível de instrução, de 2000 para 2010, o percentual de pessoas sem instrução ou com o fundamental incompleto caiu de 65,1% para 50,2%; já o de pessoas com pelo menos o curso superior completo aumentou de 4,4% para 7,9%.
De 2000 para 2010, o percentual de jovens que não frequentavam escola na faixa de 7 a 14 anos de idade caiu de 5,5% para 3,1%. As maiores quedas ocorreram nas Regiões Norte (de 11,2% para 5,6%, que ainda é o maior percentual entre as regiões) e Nordeste (de 7,1% para 3,2%).
Em 2010, o rendimento médio mensal de todos os trabalhos das pessoas ocupadas com rendimento de trabalho foi de R$ 1.345, contra R$ 1.275 em 2000, um ganho real de 5,5%. Enquanto o rendimento médio real dos homens passou de R$ 1.450 para R$ 1.510, de 2000 para 2010, o das mulheres foi de R$ 982 para R$ 1.115. O ganho real foi de 13,5% para as mulheres e 4,1% para os homens. A mulher passou a ganhar 73,8% do rendimento médio de trabalho do homem; em 2000, esse percentual era 67,7%.
As pessoas que ganhavam mais de 20 salários mínimos de rendimento mensal de todos os trabalhos representaram 0,9% da população ocupada do país, em 2010, enquanto a parcela das sem rendimento foi de 6,6% e a das com remuneração até um salário mínimo, 32,7%.
No Brasil, 32,2 milhões de pessoas (52,2% do total de trabalhadores que trabalhavam fora do domicílio) levavam de seis a 30 minutos para chegar ao trabalho em 2010 e 7,0 milhões (11,4%) levavam mais de uma hora. Já no Rio de Janeiro, 2,0 milhões (38,6%) levavam entre seis minutos e meia hora, 1,6 milhão (30,7%) levava entre meia e uma hora e 1,2 milhão (23,1%) levava mais de uma hora.
Em 2010, o país recebeu 268,5 mil imigrantes internacionais, 86,7% a mais do que em 2000 (143,6 mil). Os principais países de origem dos imigrantes foram os Estados Unidos (51,9 mil) e Japão (41,4 mil). Do total de imigrantes internacionais, 174,6 mil (65,0%) eram brasileiros e estavam retornando; já em 2000, foram 87,9 mil imigrantes internacionais de retorno, 61,2% do total dos imigrantes.
A migração de retorno dentro do país, referente às pessoas que nasceram no estado em que residiam na data de referência do Censo e que moravam em outra unidade da Federação cinco anos antes, passou de 22,0% do total de migrantes (1,1 milhão de pessoas) para 24,5% dos migrantes (1,2 milhão de pessoas).
A proporção de uniões consensuais passou de 28,6% em 2000 para 36,4% em 2010 e diminuíram os casamentos do tipo civil e religioso, de 49,2% para 42,9%. No Amapá, as uniões consensuais chegaram a 63,5%.

Movimentos Sociais
O STF e as questões sociais

Nas últimas semanas, o Supremo Tribunal Federal tomou duas decisões importantes para os setores populares: considerou nulos os títulos de terra particular incidentes sobre o território Pataxó Hã Hã Hãe na Bahia e considerou válidas as políticas de ações afirmativas, como as que envolvem cotas raciais para entrada nas universidades federais.
Tais decisões, de extrema relevância para os movimentos sociais e excluídos em nosso país, colocam fortes expectativas naquela Corte, no sentido de dar continuidade a decisões dessa mesma natureza e importância. Citem-se aqui os casos do povo Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul, semelhante ao caso Pataxó, a ser decidido também no STF, e o julgamento ali em curso, a respeito da constitucionalidade da política federal de reconhecimento dos territórios quilombolas.
Segundo Oscar Vilhena, Diretor da Escola de Direito da FGV de São Paulo, "ao expressar publicamente a constitucionalidade de políticas e extrair sentido concreto do texto constitucional, o Supremo favorece o enraizamento de nosso pacto constitucional, estabiliza o sistema político e permite que as mudanças que a sociedade brasileira exige sejam realizadas sem maiores conflitos. Ao proferir o último voto no caso das ações afirmativas, o novo presidente da corte, ministro Carlos Ayres Britto, reivindicou que o STF estaria dando sua contribuição ao processo de construção de uma verdadeira nação, que a todos reconhece como sujeitos de direito e obrigações".
Se assim for, os movimentos sociais precisam muito que o STF continue coerente em suas decisões, reconhecendo nos casos a serem decididos nos próximos dias, tanto com relação ao povo Kadiwéu, como em relação às comunidades quilombolas, serem estes sujeitos de direito, e terem seus direitos constitucionais corretamente preservados pelo Supremo.
Convenção 169 da OIT
O Estado brasileiro é signatário da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, a qual afirma que "povos indígenas e tribais" devem ser consultados a respeito de medidas administrativas ou legislativas que afetem seus territórios ou suas culturas e modos de ser.
Embora tenha assinado esta Convenção, o Estado brasileiro não havia ainda tomado providências no sentido de regulamentar e definir como esta consulta deve ser feita. A Convenção 169 é autoaplicável, ou seja, está em plena vigência, mas a sua regulamentação é importante para se construir parâmetros claros a respeito de como ela deve ser implementada.
A partir de um questionamento da OIT a este respeito, o Governo brasileiro resolveu desencadear um processo de regulamentação da Convenção 169, criando, para tanto, um diálogo com povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais. O objetivo é de se regulamentar a Convenção dentro de seu próprio espírito, ou seja, a partir da consulta prévia e informada destes povos. Para levar à frente este processo foi criado um Grupo de Trabalho Interministerial e grupos facilitadores formados com representantes das comunidades tradicionais, cuja função é organizar a consulta nas diferentes regiões do país, ao longo dos próximos dois anos (até o final de 2013).
Haverá uma primeira fase, de se disseminar a Convenção 169 em todo o país, explicando seus objetivos e conteúdos; uma segunda fase, de se consultar as comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais a respeito de como elas pensam que devem ser consultadas frente a iniciativas administrativas e legislativas que as afetem e, finalmente, uma terceira fase, na qual estas propostas serão consolidadas e serão apresentadas para a aprovação final pelas comunidades quando, só então, estarão prontas para serem enviadas para a aprovação e encaminhamento pela Presidente Dilma Roussef.
Ou seja, para se regulamentar a Convenção 169 da OIT, o governo brasileiro está planejando realizar uma ampla "consulta da consulta", para que o que for definido nessa matéria reflita com fidelidade os consensos existentes entre o Governo e as comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, que são sempre atingidas por ações administrativas e legislativas que causam impactos negativos em seus territórios, culturas e meios de sobrevivência.

Notícias do Congresso Nacional

A CPMI que investiga o contraventor Carlinhos Cachoeira e o Conselho de Ética do Senado, que avalia quebra de decoro parlamentar pelo Senador Demóstenes Torres (sem partido-GO), têm preenchido fartamente a pauta diária da mídia. No entanto, outros temas importantes têm sido discutidos no Congresso. Enumeram-se, abaixo, alguns deles.
1. Recursos contra a decisão do STF
Tramitam no Congresso Nacional três recursos visando sustar a aplicação da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF 54), que despenalizou o aborto de bebês diagnosticados com anencefalia ou severa deformação cerebral durante a gravidez.
O primeiro recurso é um Projeto de Decreto Legislativo 565/12 (PDC 565/2012, do deputado Marco Feliciano (PSC-SP). O segundo também é um PDC, assinado conjuntamente pelos deputados Roberto de Lucena (PV-SP), Salvador Zimbaldi (PDT-SP) e João Campos (PSDB-GO). Já a terceira iniciativa é do deputado federal Nazareno Fonteles (PT-PI), que apresentou à Presidência do
Congresso Nacional um requerimento pedindo a nulidade da decisão do STF. Para o deputado, decisões como essa do Supremo são ?claramente objeto de decisão do poder legislativo?.
2. Código Penal
A Comissão Especial de Juristas que prepara um anteprojeto de novo Código Penal adiou a entrega dos trabalhos para o final do próximo mês de junho. Durante o mês de maio, a Comissão examina a parte geral do anteprojeto do novo código, que inclui princípios gerais, interpretações e regras de aplicação das normas penais. Entre as propostas aprovadas pela Comissão está a punição mais rigorosa para o crime de corrupção de menores. Pela proposta, o adulto que induzir menor a praticar um crime estará sujeito à pena prevista para este delito aumentada em dois terços; a penalização de pessoas jurídicas de direito privado ou público, nesse último caso aquelas que intervenham no domínio econômico, por atos praticados contra a administração publica, a ordem econômica e financeira e a economia popular, bem como pelas condutas consideradas lesivas ao meio ambiente; a tipificação como crime específico das ações de milícias, normalmente integradas por policiais que se organizam para impor domínio sobre áreas carentes das grandes metrópoles, utilizando de seu poder para obter vantagens ilícitas. A Comissão decidiu também colocar no novo Código Penal um artigo específico para índios. O texto vai determinar que, quando um indígena for acusado de crime, o julgamento terá o subsídio de um laudo antropológico sobre costumes, crenças e tradições do povo a que ele pertence. Outro tema discutido pela Comissão de Juristas foi a corrupção entre particulares, ou corrupção no setor privado, que deverá ser um novo tipo penal na legislação, por sugestão de convenção da Organização das Nações Unidas.
3. PEC do Trabalho Escravo
A Proposta de Emenda Constitucional 438/2001(PEC 438/01), conhecida como a PEC do Trabalho Escravo, está prevista para ser votada pela Câmara dos Deputados na terça-feira, dia 22 de maio. O adiamento da votação, marcada inicialmente para o dia 8, foi resultado de uma manobra dos ruralistas. Eles insistem que a PEC não deixa claro o significado de condição análoga à de escravo e, por isso, querem mudança no texto. Os defensores da PEC não aceitam a mudança por considerarem que o conceito de trabalho escravo já é reconhecido universalmente. Chega a ser irônico pensar que a sociedade brasileira, como sugere a bancada ruralista, não saiba distinguir o que seja trabalho análogo à condição de escravo.
A PEC está parada na Câmara desde 2004, quando foi aprovada em primeiro turno com 326 votos a favor e apenas dez contra. Houve grande mobilização da sociedade por sua aprovação. As lideranças dos partidos tentam fazer acordo para que a PEC seja votada. Durante as negociações, ficou acertado que uma comissão mista formada por cinco deputados e cinco senadores seria constituída para debater alterações. O governo diz que a mudança seria apenas para incluir uma nova menção sobre a regulamentação da aplicação da lei.
A PEC do Trabalho Escravo determina que as propriedades em que for flagrado trabalho escravo sejam confiscadas e destinadas à reforma agrária ou uso social. Com ou sem acordo, ela terá que voltar ao Senado por ter sofrido alteração na votação em primeiro turno na Câmara, que aconteceu em 2004. Na ocasião, foram incluídos no texto os casos de trabalho escravo urbano.
4. Estatuto da Diversidade Sexual
Está em andamento uma campanha de coleta de assinaturas online para apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular pela aprovação do Estatuto da Diversidade Sexual. O Estatuto foi elaborado pela Comissão Especial da Diversidade Sexual da OAB, presidida por Maria Berenice Dias. Em agosto do ano passado, o Estatuto foi entregue ao presidente do Senado, José Sarney.
Na mesma ocasião, a Comissão da OAB entregou à senadora Marta Suplicy uma Proposta de Emenda Constitucional para alterar os artigos 7º e 3º da Constituição Federal. A senadora transformou
a matéria, respectivamente, nas PECs 110/2011 e 111/2011, que estão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e aguardam designação do relator.
A primeira PEC (110/11) modifica os incisos XVIII, XIX e XXX do Artigo 7º para dispor sobre licença-natalidade, licença após adoção e vedar discriminação de trabalhador em virtude de orientação sexual ou identidade de gênero. A segunda (PEC 111/11) altera o inciso IV do Artigo 3º para incluir entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos relativos a identidade de gênero ou orientação sexual.
A senadora é também a relatora do PL 122/2006, que criminaliza a homofobia. Ela manifestou sua intenção de retomar o texto que havia sido proposto pela ex-senadora Fátima Cleide, atendendo ao pedido feito por representantes da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), durante seminário realizado, no dia 15 deste mês, em Brasília. No final do ano passado, Marta Suplicy chegou a colocar para votação na Comissão de Direitos Humanos do Senado um substitutivo de sua autoria sobre a matéria, mas acabou retirando a matéria de pauta.
5. Medida Provisória altera limite de oito áreas ambientais
A Câmara aprovou, no dia 15 de maio, por 229 votos a 47 e 3 abstenções, a Medida Provisória 558/12 que altera os limites de oito unidades federais de conservação nas regiões Norte e Centro-Oeste para resolver problemas agrários e viabilizar legalmente usinas hidrelétricas que inundarão partes das reservas. A MP será votada ainda pelo Senado. As unidades envolvidas são os parques nacionais dos Campos Amazônicos, da Amazônia e Mapinguari; as florestas nacionais de Itaituba 1, Itaituba 2, do Crepori e do Tapajós; e também a Área de Proteção Ambiental (APA) Tapajós
6. Aprovada validade nacional de Declaração de Nascido Vivo
A Declaração de Nascido Vivo (DNV) poderá passar a ter validade em todo o território nacional enquanto o recém-nascido não tiver a certidão de nascimento. A medida consta de Projeto de Lei da Câmara (PLC 120/11) aprovado no dia 9 de maio pelo Plenário do Senado.
O texto, que segue para a sanção presidencial, é de iniciativa do Poder Executivo e altera a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) para obrigar a emissão do DNV para todos os nascimentos com vida ocorridos no País. A declaração deverá ser emitida por profissional de saúde responsável pelo acompanhamento da gestação, do parto ou do recém-nascido, inscrito no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) ou no respectivo conselho profissional.
7. Erradicação do trabalho infantil
A Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, coordenada pelo Ministério do Trabalho, prepara um anteprojeto para adequar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, Decreto-Lei 5.452/43) à legislação em vigor que proíbe o trabalho infantil no País. O anúncio foi feito no dia 8 de maio, em audiência pública na Câmara, pela assessora do gabinete da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, Maria Izabel da Silva.
O debate foi promovido pela Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público e teve a participação de representantes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de associações de magistrados e de entidades sindicais. A CNBB participou da audiência, representada pelo padre Nelito Dornelas.
8. Prescrição de crime sexual contra criança
O Projeto de Lei 6719/09, da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado sobre a Pedofilia, foi aprovado pela Câmara no dia 8 de maio. O PL determina a contagem da prescrição dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes somente a partir de quando elas completarem 18 anos. A proposta foi aprovada em Plenário e será enviada para sanção da presidente Dilma Rousseff.
O projeto altera o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) com o objetivo de dar mais tempo à vítima e ao Ministério Público para iniciar a ação penal.
Responsáveis pela análise:
Pe. Antonio Abreu SJ, Pe. Bernard Lestiene SJ, Pe. Thierry Linard SJ (Ibrades),
Pe. Ari Antonio Reis, Daniel Seidel, Pe. Geraldo Martins, Gilberto Sousa,
Pe. José Ernanne Pinheiro, Paulo Maldos e Pedro Gontijo

Anexo – Resultados Gerais da Amostra do Censo 2010
Em dez anos, mortalidade infantil caiu 47,6% no país

De 2000 para 2010, a taxa de mortalidade infantil caiu de 29,7‰ para 15,6‰, o que representou decréscimo de 47,6% na última década. Com queda de 58,6%, o Nordeste liderou o declínio das taxas de mortalidade infantil no país, passando de 44,7 para 18,5 óbitos de crianças menores de um ano por mil nascidas vivas, apesar de ainda ser a região com o maior indicador. O Sul manteve os menores indicadores em 2000 (18,9‰) e 2010 (12,6‰).
Na última década, a diminuição das desigualdades sociais e regionais contribuiu para a formação do quadro atual de baixa na mortalidade infantil e de maior convergência entre as regiões. Todavia, ainda há um longo caminho a percorrer para que o Brasil se aproxime dos níveis das regiões mais desenvolvidas do mundo, em torno de cinco óbitos de crianças menores de um ano para cada mil nascidas vidas.

Em 2010, taxa de fecundidade era de 1,90 filho por mulher

A taxa de fecundidade no Brasil apresentou queda de 20,1% na última década, passando de 2,38 filhos por mulher, em 2000, para 1,90 em 2010, número abaixo do chamado nível de reposição (2,1 filhos por mulher) que garante a substituição das gerações. O declínio ocorreu em todas as regiões, observando-se as maiores quedas no Nordeste (23,4%) e no Norte (21,8%), seguidas pelo Sul e Sudeste (cerca de 20,0%, ambas) e pelo Centro-Oeste, com a menor queda (14,5%).
As taxas de fecundidade variam bastante, inclusive dentro da mesma região. Na região Norte, o Acre teve a taxa mais alta do Brasil (2,82 filhos por mulher), enquanto Rondônia estava bem perto do nível de reposição (2,15 filhos por mulher); Maranhão e Alagoas tiveram as taxas mais altas do Nordeste (2,50 e 2,22, respectivamente). No Centro Oeste, o Distrito Federal teve uma das taxas mais baixas do país (1,74) e Mato Grosso, 2,11. Os indicadores foram baixos no Sul e no Sudeste, entre 1,67 em São Paulo e 1,85 no Paraná.
A tendência no Brasil até o ano 2000 era de aumento da concentração da fecundidade nos grupos entre 15 e 24 anos o que indicava um rejuvenescimento do padrão da fecundidade. Porém, de 2000 para 2010, os grupos de 15 a 19 anos e de 20 a 24 anos diminuíram suas participações de 18,8% para 17,7% e de 29,3% para 27,0% da fecundidade, respectivamente. Apesar desse último grupo ainda responder pela maior percentagem da fecundidade nacional, o padrão em 2010 está mais dilatado, com aumento da participação na faixa acima de 30 anos. A idade média da fecundidade passou de 26,3 anos em 2000 para 26,8 em 2010.
O comparativo regional mostra convergência entre as taxas no grupo etário a partir dos 30 anos, enquanto nos grupos mais jovens as diferenças foram mais marcantes. A Região Norte, que apresenta as maiores taxas nos grupos etários com até 29 anos, tem o padrão mais jovem, bastante concentrado na faixa de 20 e 24 anos. Por outro lado, as Regiões Sul e Sudeste apresentaram uma estrutura de fecundidade mais envelhecida, concentrada nas idades finais dentro do período fértil.

Uniões consensuais aumentaram de 28,6% para 36,4%

Segundo o Censo 2010, a proporção de pessoas divorciadas passou de 1,8% em 2000 para 3,1% em 2010, liderada por Mato Grosso, Rio de Janeiro e Distrito Federal (4,1%, 4,1% e 4,3%, respectivamente), enquanto o Maranhão teve o menor indicador (1,2%). A proporção de dissoluções das uniões conjugais passou de 11,9% para 14,6%, enquanto aumentaram as uniões consensuais (casais vivendo juntos sem casamento civil ou religioso, mas podendo ter contrato de união estável registrado em cartório), de 28,6% em 2000 para 36,4% em 2010. Já os casamentos do tipo civil e religioso diminuíram de 49,2% para 42,9%. A união consensual teve crescimento mais significativo no Norte e Nordeste, com destaque para o Amapá, cuja proporção chega a 63,5. Houve também redução no número de pessoas que declararam nunca ter vivido em união de qualquer tipo (35,4%, em 2010, contra 38,6%, em 2000).
No Brasil, 11,4% dos trabalhadores levavam mais de uma hora para chegar ao trabalho; no Rio de Janeiro, eram 23,1%
A análise do tempo de deslocamento entre a residência e o trabalho revelou que, no Brasil, 32,2 milhões de pessoas (52,2% do total de trabalhadores que trabalhavam fora do domicílio) levavam de seis a 30 minutos para chegar ao trabalho em 2010 e 7,0 milhões (11,4%) levavam mais de uma hora. Já no estado do Rio de Janeiro, 2,0 milhões (38,6%) levavam entre seis minutos e meia hora, 1,6 milhão (30,7%) levava entre meia e uma hora e 1,2 milhão (23,1%) levava mais de uma hora.
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Análise de conjuntura eclesial – Assembleia da CNBB 2012 – Aparecida-SP – 18/04/12

A Igreja a cinquenta anos da abertura do Concílio Vaticano II

Introdução:
a) A atualidade da análise de conjuntura. As costumeiras análises de conjuntura são parte de um método de conhecimento em contexto de um paradigma que sublinha a consciência histórica, crítica e forte para o discernimento. Este paradigma adquiriu grande força na Igreja em torno do Concílio Vaticano II, mas agora está debilitado por diversas razões: seja pela natural fadiga do método, seja pela entrada da pós-modernidade em nosso atual contexto cultural, que facilita mais o fundamentalismo sem consciência histórica e crítica. Além disso, a exacerbação da subjetividade em questões de valores e avaliações provoca fragmentação de análises. Finalmente, a impossibilidade de neutralidade e os interesses diversos guiam os juízos de valor para direções diferentes. Evidentemente a Igreja tem contexto e interesse explicitamente pastoral e evangelizador, mas também em pastoral há contextos e interesses diversos. A leitura da realidade – em nosso caso, eclesial – nunca é neutra ou totalmente objetiva. Por isso esta leitura é apenas uma introdução para um debate que pode dar conta de forma mais adequada de nossa complexa realidade eclesial.
b) Globalização e catolicidade. Pode-se constatar um paralelismo entre a globalização e a catolicidade. A globalização derruba as fronteiras nacionais, seja negativamente por uma forma neoliberal devastadora de todo tipo de fronteiras, seja positivamente pela percepção, facilitada pela cultura de comunicação, de que somos “uma grande família humana”. No estado atual da Igreja, como das religiões e dos povos há uma percepção crescente de que estamos também todos juntos numa “grande família”, todos no mesmo barco, portanto um crescimento de “catolicidade”. Por paradoxal que pareça, a globalização do cristianismo e da catolicidade vem acompanhada de uma “desterritorizalização” do catolicismo e, mais amplamente, do cristianismo. Por exemplo, uma superação de “países católicos” através da entrada da secularidade ou laicidade do Estado e da neutralidade do espaço público em que diferentes formas de religião tem liberdade de se expressar. Por um lado, é como se a dimensão de catolicidade desbordasse as paredes da Igreja denominada “Católica”. E, por outro lado, internamente à Igreja Católica, se redesenham as tensões quase tão antigas como sua história entre um governo centralizado e a vida das Igrejas locais e regionais com sua diversidade de culturas, sensibilidades, línguas, etc., diversidade que compõe a catolicidade e, hoje, também a globalização. Em consequência, é mais difícil distinguir, em nossos dias, os níveis globais, nacionais e locais, tal é a comunicação e a interdependência intensificadas pela globalização. Por isso, nesta análise não faremos propriamente distinções, mas interrelações dos planos.

1. A Igreja a cinquenta anos do Concílio Vaticano II. A pluralidade de interpretações

O aniversário de meio século do início do Concílio veio precedido de um conflito de interpretação que teve seu foco na Itália, e o próprio Bento XVI tomou a palavra inclusive como um dos peritos do Concílio. Mas o conflito de interpretações, como em ondas, chegou até nós e as posições vêm acompanhadas pelos interesses e preocupações que tencionaram o pós-concílio. Acorre-se ao Concílio da mesma forma com que se acorre ao Novo Testamento para legitimar ou fundamentar reclamos atuais. Teria se abusado na compreensão e abertura conciliar? Ou se teria estancado ou inclusive boicotado o dinamismo renovador do Concílio? O conflito polarizado ganhou títulos: a hermenêutica da ruptura e a hermenêutica da continuidade. Sobre isso, convêm três palavras:
i. A ruptura cultural e a queda de paradigma. É claramente equivocado, como fazem os tradicionalistas radicais, acusar o Concílio de provocar ruptura com a tradição da Igreja. O Concílio não é a causa, mas a busca de resposta às rupturas e, mais ainda, ao desmoronamento de um paradigma cultural em que aconteceu a dissociação entre fé e cultura, que Paulo VI colocou em relevo como algo dramático na Evangelii Nuntiandi - e que foi vivido e sentido pela grande maioria dos bispos aqui presentes. O Concílio nos ajudou a sairmos do gueto cultural já insustentável, foi ponte e não ruptura.
A década de sessenta, de fato, testemunhou uma queda de paradigma também na totalidade da vida eclesial: ficamos órfãos de livros para rezar, sem cantos para cantar, sem livros para estudar, sem roupa adequada para vestir, sem linguagem adequada para nossas homilias, sem referências de autoridade canônica estável para obedecer. Como em toda queda de paradigma, que não se dá por partes, mas em sua totalidade, foi necessário ser criativo até para sobreviver eclesialmente. Isso foi vivido no marco da queda de um paradigma mais amplo e dramático da cultura moderna para a pós-moderna, cujo simbolismo é o ano de 1968 e os que se seguiram.
Quando cai um paradigma, como analisam os especialistas, tudo volta a zero, e todos necessitamos aprender novamente, precisamos ser novamente alfabetizados. (Basta o exemplo da passagem das máquinas para a informática: os pais precisam reaprender ao lado dos filhos). A geração pós-conciliar, da qual faço parte, lutou desde jovem ao descampado na esperança de uma primavera. E, como afirmou o grande observador da Igreja Católica Antônio Gramsci, as crises se produzem quando o velho mundo demora a desaparecer e o mundo novo demora a nascer. Neste claro-escuro, acrescentava ele, monstros podem aparecer. Voltar ao paradigma anterior para se proteger de ameaças e sombras é inviável e patético. Atualmente, com o agravamento da crise ambiental, monstros do passado recente se tornam menores e monstros ainda maiores nos rondam.
ii. “Ruptura”, palavra non grata? Ela foi cunhada na área da teoria do conhecimento como “ruptura epistemológica”, significando que contextos novos não podem ser conhecidos por meio de categorias de conhecimento tradicionais, e somente uma ruptura epistemológica prepara uma nova compreensão com uma epistemologia nova. Nesse sentido, ruptura não é uma negação, mas uma colocação em perspectiva histórica. Por exemplo, uma liturgia barroca ou uma igreja barroca fazem parte do tesouro histórico da Igreja, e paramentos barrocos tecidos em fios dourados podem ser apreciados em nossos museus para compreendermos uma época de nossa história. Mas insistir numa missa barroca é ir vivo para o museu. Assim também certas categorias de linguagem, certas leis canônicas que fizeram história, etc.
Mas como a palavra “ruptura” ganhou um sentido diabólico em alguns segmentos da Igreja, talvez seja mais sábio não utilizar a palavra. A palavra adequada é “renovação”, como enfatizou Bento XVI. Segundo ele, trata-se da “reforma na continuidade do mesmo sujeito Igreja”. Os que utilizam a hermenêutica da continuidade dão ênfase à continuidade mais do que à reforma. Mas a palavra chave para entender um Concílio que quer introduzir uma reforma é, de fato, “renovação”, pois esta é a história do cristianismo desde o evangelho: novidade, e, portanto, renovação. Importa mais o futuro do que o passado, e a memória só tem sentido enquanto reforça a esperança.
iii. A nova geração “não conciliar”. Tanto no clero como entre os católicos que estão inseridos em movimentos e organismos eclesiais, a cinquenta anos do começo do Concílio, temos uma geração naturalmente afastada da experiência do Concílio e do seu contexto. É uma geração que, em caso positivo, escuta ou estuda um acontecimento do passado. Que importância conseguem dar à recepção do Concílio, por exemplo, no Pacto da Catacumba ou em Medellín? Há uma dificuldade que agrava a consciência da relevância do Concílio e da sua recepção, já mencionada na introdução: a menor importância que se dá, hoje, na cultura, à consciência histórica e crítica. Quando, por exemplo, um grupo de jovens se organiza para reivindicar uma liturgia anterior ao Concílio, fazendo a afirmação equivocada de que se batem pela liturgia “que sempre foi e sempre será!”, estamos diante de um conflito por falta de interesse por informações de ordem histórica.
A formação, tanto inicial como permanente, e tanto do clero jovem e seminaristas como dos católicos engajados em todo tipo de movimentos será absolutamente importante, nesse caso. Podemos entender aqui a insistência de Bento XVI no conhecimento da doutrina, na catequese. Hoje não se pode estudar dogma, liturgia, direito, ética, etc., sem a sua necessária dimensão histórica e seus contextos culturais. Sem história e sem contexto, a tendência é se tornar absolutista. Absoluto é só Deus, e a verdade absoluta se mantém na reserva escatológica, quando veremos Deus e todas as coisas como são. A historicidade ajuda a manter a humildade do caminho e a evitar o absolutismo, próximo das ideologias totalitárias e violentas. No entanto, os métodos histórico-críticos se mostraram também limitados, sobretudo por sua capacidade desconstrutiva mas nem sempre reconstrutiva. Por isso pode ser precioso, para a retomada do Concílio, o que Bento XVI advoga para a interpretação bíblica: a hermenêutica da fé. Que, em nossa experiência, pode ser comparável à Leitura Orante ou Palavra-Vida, a que pretendo voltar no item seguinte. De qualquer forma, a imobilidade de quem não ousa renovação revela falta de fé.

2. A Palavra de Deus como “volta às fontes” e inspiração criativa (DV).

A Dei Verbum, atualizada na Verbum Domini, significa um dos veios mais preciosos do Concílio, a melhor forma de realizar a volta às fontes e às raízes, ou, como diz a instrução pós-sinodal, ao “coração” da vida cristã. O tsunami do método histórico crítico foi integrado de forma equilibrada entre nós pelo método Palavra-Vida, agora Leitura Orante. Os passos do método, com espiritualidade e confrontação dos contextos atual e bíblico, e finalizando com um engajamento prático, além de ser uma leitura comunitária, é uma hermenêutica de fé viva e operante, compartilhada comunitariamente e criadora de comunidade em torno da Palavra. A Leitura Orante, de fato, é a nossa melhor commodity de exportação, nossa obra mais genuína após o Concílio como oferta para as demais Igrejas de outras regiões do planeta!
Além da fonte bíblica, retomamos as águas do comentário patrístico, de tal forma que sabemos hoje por experiência que não somente a Igreja é a casa da Palavra, mas, antes mesmo, que a Palavra é a casa da Igreja: a Igreja habita na Palavra de Deus, é constituída por ela como é constituída pela Eucaristia. A Escritura não é somente alma da teologia, mas de toda a Igreja. Os últimos cinquenta anos renovaram a atitude da Igreja em relação às suas fontes. Mesmo admitindo a tese de Pierre Legendre (L’autre Bible de l’Occident) de que as sociedades do Ocidente se constituíram fundadas numa espécie de segunda bíblia, dogmático-canônica, que atravessou séculos, e que se serviu da Escritura mais como ilustração e verniz legitimador - um edifício que agora estaria se inclinando em ruínas - a sabedoria consiste em voltar ao alicerce quando as paredes se mostram seriamente atingidas. É importante sublinhar o quanto a Igreja vem fazendo a sua lição de casa. Não é mais estranho que católicos andem com a Bíblia na mão.
O texto bíblico, evangélico, fonte da qual nascem sempre águas novas e revigorantes, desborda as paredes da Igreja, não somente do magistério. Por um lado, e em primeiro lugar, porque a Palavra de Deus é palavra dada à humanidade. Um budista ou um guarani podem não sentir necessidade de pedir licença à Igreja para ler o evangelho. Assim, afirmar que a Palavra foi confiada à Igreja e que esta tem o dever ministerial de proclamá-la é correto. Mas afirmar que só a Igreja tem poder de interpretar corretamente a Palavra não tem plausibilidade em nosso mundo rico de hermenêutica.
No entanto, como sabemos, a compreensão inadequada leva às distorções de toda sorte de fundamentalismo, inclusive científico. O papel da Igreja é, segundo o modelo dos Atos, o de Filipe no caminho do oficial da rainha Candace (Cf Atos 8, 26-27): ajudar na interpretação com o tesouro de seus recursos. Para este papel de intérprete da relação Palavra e Vida em termos de Escritura, nós encontramos por toda parte, Brasil e mundo afora, uma multidão exuberante de pregadores, televangelistas, líderes de megachurchs, mensageiros, pessoas cuja autoestima e missão estão colocadas nos Evangelhos. Se eles, fora da Igreja Católica, também realizam milagres e libertações, isso deve alegrar a nós também. Se há interpretação correta ou distorções, discernidas pelos frutos, o trabalho decisivo a realizar é o de preparar intensamente e de forma adequada, bons intérpretes da Palavra de Deus. O clero sozinho não dá conta, evidentemente, da evangelização. Formação bíblica para os católicos é uma prioridade, uma urgência, uma esperança essencial.
O método de Leitura Orante, outra denominação do já experimentado e amadurecido Palavra-Vida, inclui a busca de informações históricas e contextuais, mas isso não é nem o seu começo e nem o seu final. Os passos do método engajam uma leitura em comunidade de fé e de compromisso de vida. E dá garantia de superar os diversos tipos de fundamentalismo e de uso abusivo da Escritura. De qualquer forma, está claro que a palavra de Deus na Escritura é o coração da catequese, da ética, do diálogo com as religiões e inclusive com a ciência, além de ser a substancia de fecundidade e renovação da própria Igreja. Nunca é demais insistir nisso.

3. Colegiado e participação na Igreja (LG)
a) O colegiado episcopal. Se o Vaticano I fortaleceu o primado petrino do bispo de Roma, o Vaticano II complementou o ensinamento sobre a hierarquia sublinhando o papel do colegiado dos bispos e das Igrejas locais. O colegiado exercido nas Conferências introduziu o que Dom Boaventura Klopenburg chamou de “novo gênero literário” do magistério. Cinquenta anos depois se pode encontrar nos sites das Conferências os resultados de tal exercício. O CELAM e a CNBB tiveram momentos antológicos que repercutiram no conjunto da Igreja. Recentemente um fórum de católicos do Quebec se dirigiu aos seus bispos pedindo que evitassem la peur de Rome, para que fosse o debate com Roma e não a subserviência a marca do exercício da colegialidade.
b) Colegiado em sentido lato. Ao lado do colegiado episcopal multiplicaram-se as instâncias colegiadas na área diocesana, presbiteral, paroquial, com participação de leigos. As Comunidades Eclesiais de Base foram e continuam sendo um excelente laboratório de colegiado, distribuição de responsabilidades e autoestima de pertença à Igreja. Nelas os pobres não são apenas socorridos e acolhidos, mas se tornam sujeitos por suas formas de participação ativa e colegiada, com assembleias e decisões conjuntas. Sobretudo com o sentimento de dignidade por participar e fazer algo na sua Igreja.
c) Mais democracia ou participação na Igreja? Escuta-se com frequência discussões em torno do exercício de democracia na Igreja. A Igreja, sobretudo em suas origens, tomou palavras da política e da sociedade em que ela se estruturou. Inclusive a palavra mesma “Igreja”. A palavra democracia diz respeito à participação aberta a todos no governo. Por um lado, as democracias reais, de modo geral, são mais formais do que verdadeiras porque outros mecanismos manipulam a democracia. Por outro lado, o debate público e transparente é um dos exercícios mais interessantes da democracia. É a ordem moderna de saída do infantilismo e das diversas corrupções que afetam a vida em sociedade. Este exercício não ganhou cidadania suficiente na Igreja, ainda que a palavra democracia possa não ser tão adequada para usar sem mais na estruturação do governo da Igreja.
No entanto, por diversos caminhos, a palavra “participação” é decisiva na eclesiologia pós-conciliar. Um dos elementos que deixam a situação nervosa é a maior participação das Igrejas locais na nomeação de seus bispos. As consultas secretas sub grave tem suas razões, mas sobram duas perguntas: Esta forma consegue evitar a endogenia interna à hierarquia da Igreja? Ela evita as pressões e eventuais corrupções locais, mas não fere a sensibilidade de participação também nas responsabilidades maiores da Igreja, selando um abismo entre leigos e hierarquia, e às vezes também entre clero e seus bispos? Tal situação se replica também nas comunidades paroquiais.
O verdadeiro poder, que evita tanto o caos como o autoritarismo, é, conforme refinada conceituação de Hannah Arendt, “capacidade de ação em conjunto”, portanto tecido por consensos desde a discussão até a decisão. Ainda que se advoguem razões de revelação e de direito divino para agir de modo diferente, o poder e a autoridade arriscam ficar sem plausibilidade e sem eficácia quando utiliza o mecanicismo “exteriorista” de tipo “manda quem tem o poder e obedece quem tem o dever”.
Examinando a realidade, há inúmeras comunidades paroquiais levadas nos ombros de grupos de leigos, frequentemente mais mulheres que homens, mas há também o fato sintomático de mulheres, inclusive da vida religiosa feminina mais consciente, que se distanciam de uma Igreja governada somente por homens. Não é o caso de entrada de mulheres no sacerdócio ministerial, mas de oportunidade de participação nas instâncias de governo da Igreja.
d) A teologia entre as comunidades eclesiais, o magistério e a academia. Um aspecto específico que terá consequências nos próximos anos é a produção teológica da Igreja. Novamente, se voltarmos aos tempos do Concílio e aos anos que o seguiram, houve um florescimento teológico que foi um dom à Igreja. Tanto para o sucesso do Concílio como de sua primeira recepção, teólogos foram decisivos. Não faltaram acalorados debates e divergências. Paulo VI tem, entre seus méritos, o de ter resistido a silenciar teólogos, permitindo o debate sem receio. Na América Latina a grande força dos teólogos veio de sua conexão com as comunidades vivas de fé engajada tanto eclesialmente como socialmente. O que temos hoje? De modo geral, os teólogos que já foram mais criativos estão absorvidos em programas universitários e suas agendas, muito próximos das ciências da religião. Certamente os bispos não se sentem bem com os assim chamados, desde os tempos de Eusébio de Cesaréia, “teólogos de corte”. Mas o aspecto crítico, eclesialmente autocrítico, da teologia, e portanto sua missão profética, pode perturbar o magistério pastoral. Ora, o magistério científico exige o trabalho árduo do estudo e a audácia como também a paciência de elaboração, e o diálogo com os segmentos científicos da sociedade depende da assessoria deste trabalho. Não se pode dialogar simplesmente apelando para o princípio de autoridade, citando o magistério. Como o magistério autêntico é um ministério específico de autentificação, ou seja, de oficialidade, é natural que seja um pouco mais conservador do que os trabalhos e ensaios dos teólogos, mas estes precisam de apoio e confiança para suas pesquisas e sua audácia criativa, sem que pese tacitamente a possibilidade de perda de missio canônica e outros incômodos. Francamente aqui fala um teólogo para os senhores bispos: há um clima de conformismo exagerado e temeroso. Embora tal clima não corresponda tanto ao Brasil como a outros países.
No entanto, quando a Soter (Associação de Teologia e Ciências da Religião) foi fundada no horizonte da teologia engajada com as comunidades eclesiais, com a opção preferencial pelos pobres e com o princípio evangélico de libertação, José Comblin chamava a atenção dos teólogos para a necessidade de nível acadêmico da teologia. Nos últimos tempos ele via os mesmos teólogos se refugiando na academia e sublinhava a urgência de voltar às raízes eclesiais de então, em meio às comunidades de fé, para voltar à energia criativa que já foi nossa.

4. A fé cristã como “religião”.

A distinção entre fé cristã e “religião cristã” é operacional, inclusive levando em conta a memória de Jesus, que viveu o sistema religioso judaico. A distinção não deveria levar a uma ruptura, mas a uma relação fecunda: a fé se expressa como sistema religioso coerente e se transmite como tradição religiosa. Pode-se falar em religião cristã, mas a distinção deveria nos ajudar a não reduzirmos a fé cristã a uma antropologia religiosa que, sob o verniz de cristianismo, na verdade alimenta substância religiosa pré-cristã e pré-bíblica, que nos reconduz a formas arcaicas e até violentas do sagrado.
a) Retorno ao sacro pré-cristão e ao dualismo entre religião e mundo?
O clima de pós-modernidade permite a volta ao irracional, ou a uma racionalidade arcaica própria do sacro pré-bíblico, por exemplo formas religiosas de xamanismo, detectáveis em práticas de curandeirismo e palavras visionárias. Pode-se imputar este retorno à incapacidade da racionalidade científica de dar conta da realidade experimentada. O sacro antropológico não pode ser desprezado, mas não é o essencial da fé cristã e, às vezes, pode encobrir e perverter o essencial da fé cristã. Nas Igrejas, tais sintomas estão em culto à personalidade e rituais desfocados. Permitam-me três exemplos, sintomas que causam ruído em nossa liturgia: em alguns casos, o neo-sacerdote, depois da unção das mãos, foi convidado a percorrer a igreja com as mãos levantadas sob o aplauso dos fiéis, reforçando assim a percepção de sua sacralidade e diferença. Ora, o óleo, que é do crisma, é o mesmo no qual são ungidos todos os cristãos para assumirem seus ministérios de vida cristã adulta. O testemunho da sacralidade dessas mãos será o seu próprio serviço, não o culto às mãos. O segundo exemplo é o costume recente, já corrigido com fadiga em algumas dioceses, de conduzir o Santíssimo exposto em ostensório para que o povo o toque com suas mãos ou outras manifestações de fervor, o que os liturgistas alertam como perda de foco da celebração eucarística, onde há comunhão, mais importante do que o toque fervoroso. É também incompreensão da reserva eucarística, sempre subordinada à participação na eucaristia. O que eu queria sublinhar é que esta exuberância típica do barroco leva a supervalorizar, por exemplo, o toque ou a adoração mais do que a comunhão, o que nos conduz diretamente para o sacro arcaico. Finalmente, o acento unilateral que, na celebração eucarística, ganhou ultimamente, tanto em termos de linguagem como na disposição do espaço e objetos litúrgicos, o aspecto de sacrifício centrado na cruz ou nos altares de queima da vítima animal. Ora, o memorial eucarístico abrange toda a vida, a morte e a ressurreição de Jesus, e a melhor forma da mesa é a ceia da comunidade em torno à mesa da comida. Novamente retorna a pergunta: é contaminação da volta do sacro arcaico também na Igreja?
Conjuntamente com este acento no sacro, ressurge também entre nós o risco de dualismo entre religião e mundo, sacro e profano, contrário à economia da encarnação e da transfiguração pascal cristã. Tais sintomas aparecem em movimentos eclesiais e em homilias catastróficas a respeito do mundo em seus diversos aspectos e onde a religião parece pairar acima do mundo degradado. O que leva a um docetismo eclesial que encobre um narcisismo e um gnosticismo elitista, um dos primeiros problemas internos da Igreja. Seguindo de perto a queixa recente do arcebispo de Berlim, o que deixa interrogação nas celebrações eucarísticas do Caminho Neocatecumenal não é tanto o fato de que põem um altar enorme no centro da comunidade, com comunhão sob duas espécies ou a ressonância dos participantes após a meditação da palavra de Deus. Tudo isso pode estar dentro do espírito da renovação litúrgica querida pelo Concílio e tal estilo de celebração ocorre sem traumas em inúmeras paróquias comuns dos Estados Unidos ou mesmo em pequenas comunidades de nossas periferias. O que perturba, segundo a queixa que vem de Berlim, é sua segregação, seu caráter gnóstico de elite, a sensação de serem católicos melhores que os outros católicos.
b) Igreja, transparência e sociedade do espetáculo e do consumo.
Mais do que a pós-modernidade com seu obscurecimento da razão crítica, é a “hipermodernidade” que, transformando a tecnologia de meio em ambiente onde respiramos, nos alimentamos, nos relacionamos, nos comunicamos, torna tudo mais transparente apesar de nós mesmos. As massas são o nosso Big Brother, um Big Brother que George Orwell sequer tinha imaginado, já que para ele se tratava de um controle global do Estado totalitário. O que está acontecendo é que até os segredos de nossos arquivos mais secretos vão pararna vitrine da Internet, diante de todos, a sociedade inteira, as massas. Isso está deixando todas as instituições mais transparentes, e saudamos como um meio democrático de baixar a corrupção na política. Mas temos também os nossos “vazamentos”, a Igreja vai se tornando mais transparente ainda que seja “apesar dela mesma” inclusive nos aspectos em que, por diversas razões, pensamos ser adequado o segredo.
A cultura que não se importa mais com segredo afeta até a confissão auricular: o recurso à terapia, à psicanálise inclusive em grupos, abre com grande facilidade as comportas da consciência diante de solteiros ou casados, de homens ou mulheres terapeutas, na expectativa de acolhimento e cura. O nosso ambiente é globalmente sem fronteiras para a comunicação e não há muros ou arquivos que resistam. A transparência se tornou uma exigência, mais do que uma virtude ou uma escolha, e o contrário soa a corrupção e crime.
Mas isso nos leva a um segundo fenômeno: se a sensação de que estamos sob o foco da luz incessantemente, não tanto do olho do Deus que me vê, mas dos olhares da plateia, então a vida se torna palco iluminado, show, passarela. Essa cultura é fascinante, e o mundo fashion pode passar rápido para a Igreja, que também no passado era às vezes o lugar do desfile de roupas sob os olhares dos outros. A liturgia como espetáculo, como epifania arrebatadora, que também tem uma história na Igreja, remete ao aspecto antropológico do arcaico tremendo e fascinante. Evidentemente, o Concílio reclamou para a liturgia o retorno aos três aspectos da genialidade romana: a simplicidade, a sobriedade e a funcionalidade. Estes três princípios permitem uma boa transparência, sólida e séria. Juntamente com a participação ativa e os ministérios, isso nos dá critério suficiente para discernirmos os eventuais excessos de entusiasmo pagão e a transformação da liturgia em performances de passarela e culto à personalidade.
c) Tempos pentecostais e patologias pentecostalistas.
Algumas estatísticas mais conservadoras apontam para meio bilhão de cristãos de coloração carismática e pentecostal. Esse sinal dos tempos pode ter outros nomes, porque tem um caráter transversal, com ventos carismáticos que atravessam as paredes das confissões e denominações, e inclusive das religiões: há sinais carismáticos inclusive entre judeus e muçulmanos. É, portanto, um sinal “ecumênico” no sentido mais amplo. Mas pode apresentar diversas patologias.
- Uma delas é a perda do peso da encarnação para voar nas asas leves do Espírito. Depois do esquecimento do Espírito, em tempos de “cristomonismo”, teríamos agora um “pneumatomonismo” com a liquidificação da carga de compromisso com a encarnação histórica que nos toca em nosso tempo.
- Outra anomalia é sua conjunção com a exacerbação da subjetividade: a experiência voltada para dentro do indivíduo, que se traduz na linguagem singularizada: “tu que estás sofrendo... põe a mão no teu coração... tu tens um problema...mas eu tenho a solução!” Aqui não há “nós”, e corresponde à experiência dos indivíduos urbanos, já 80% da população no Brasil ou nos EUA e crescente em todas as partes do mundo, onde os indivíduos flutuam em massas e em conexões temporárias ou casuais, mesmo em concentrações de culto e de liturgia. Seria pastoralmente equivocado desvalorizar as experiências profundamente singulares e individuais do mistério e da mística. Mas também seria pastoralmente imprudente desconsiderar os seus limites. Esta energia clama por um processo pedagógico de introdução e aprofundamento na comunidade.
Há novos estilos de comunidades, no Brasil bem pesquisadas pelo grupo da antropóloga Brenda Carranza da Puc de Campinas. Há dois perfis nessas novas comunidades, algumas de estilo soft, pertença leve e pouca institucionalidade, mais de acordo com os ares pentecostais que respiramos. Mas as mais notáveis são as de pertença hard, dura e total, buscando uma plataforma firme num mundo movediço e meteorológico. Esses grupos tendem a ser restauracionistas, e em seus sites, sobretudo em blogs com comentários, seguem um tom bastante agressivo em relação aos que são católicos de outra forma. Sem adequada formação podem terminar em fanatismo e violência verbal. Algumas ocorrências de excesso de basismo nas comunidades de base, em décadas passadas, parecem quase inócuas diante da crescente agressividade de grupos tradicionalistas que se pode detectar na Internet a nível internacional e nacional.
Embora o clima pentecostal favoreça uma sensibilidade mais ecumênica, a mídia de algumas denominações pentecostais tem contrastado o nome de católicos com o nome de cristãos, que, nesse caso, substitui a palavra “crente” e suas conotações pejorativas vindas dos católicos. Ficamos assim reclassificados por eles: os cristãos são os que seguem Jesus, e os católicos são os que seguem o Papa. Como estamos em tempos de desapropriação de símbolos e especialmente da linguagem, fica muito difícil desfazer este sofisma. O único instrumento sem retaliações indignas é o de utilizarmos também com abundância o nome de cristãos. (Embora seja verdade que inúmeros grupos católicos utilizem as assim chamadas “três brancuras” – a hóstia, Maria e o Papa – para caracterizar a identidade católica que, de resto, usa muita linguagem comum desses tempos pentecostais. Se por hóstia entendemos os sacramentos, por Papa entendemos magistério e clero, e por Maria toda uma forma de devoção e fervor, é certo que dizem muito do que é a identidade católica que de fato é percebida. Mas se desenvolvermos as formas indicadas pelo Concílio Vaticano II, tudo ganha maturidade).
Em última análise, os tempos pentecostais, carismáticos e místicos, que estamos testemunhando são um sinal bastante importante de esperança, mesmo que deem trabalho para os pastores que devem orientar o discernimento.
d) Percepção de Igreja “falível” e novo testemunho: opção pelos pobres e que sofrem.
Ainda é sentida a dolorosa situação de crime infame nos abusos por pedofilia, conjugados ao abuso de poder sacro e de traição da confiança, que teve como consequência a percepção de falibilidade da Igreja e a diminuição de autoridade pública como perita em humanidade. Em termos eclesiológicos já se confessava antes disso sermos Igreja santa e pecadora, mas o cultivo da sacralidade do clero e a repugnância pelo tipo de crime foram um choque incomparável a outros casos de pedofilia: corruptio optima péssima. (A falta de verbo nos faz traduzir frequentemente pelo lado da consequência: a corrupção do melhor o torna o pior. Mas pode ser traduzido de forma mais contundente ao se referir à sacralidade: a corrupção do melhor engendra o pior. É o “anticristo” que se pode surgir em meio cristão, quando se perverte, segundo João.) Ou seja, foi a própria sacralidade do poder, considerado inatingível exatamente por sua sacralidade, que gerou o pior tipo de pedofilia, justamente aquela vinda de pessoas consideradas sacras. Nesse caso, além de tudo o que se aprendeu e se providenciou com muita dor e vergonha, não há como fazer apologia diante dos que se aproveitam para fazer disso um trunfo contra a Igreja Católica, (como faz sistematicamente a Igreja Universal do Reino de Deus). Não há outra maneira de ir curando a ferida senão a de mostrar um testemunho diferente de sacralidade e de uso do poder: o de serviço aos que sofrem, aos pobres e aos indefesos e inocentes. É tempo de buscar esta cura, que não é algo marginal para a Igreja.
As estatísticas dão esperança, uma vez que a concentração de casos de abuso está em clérigos cuja formação se situou exatamente no paradigma pré-conciliar que já não se sustentava mais. Não voltar para as condições de formação daquele tempo já é um ganho. Mas este é só o lado negativo. O lado positivo da cura é, insisto, o testemunho do contrário do escândalo: o socorro aos pequeninos, a opção preferencial pelos pobres e pelos que sofrem, seguindo o começo da Gaudium et Spes e a grande tradição latino-americana.

5. Os “sinais dos tempos” (GS/NA/DH)

Com o Concílio retomamos a atenção ao contexto histórico e aos sinais dos tempos para discernir por onde passa o Espírito e o apelo de fidelidade à evangelização. Os sinais se apresentam normalmente em meio a ambiguidades que exigem discernimento, mas que devem em primeiro lugar ser acolhidos para ser bem compreendidos.
a. A Igreja no espaço secular e em meio ao pluralismo religioso.
A efervescência das religiões e a sua recolocação na atual globalização continua e afeta também a Igreja Católica. A volta do religioso recalcado em algumas regiões do planeta levanta a dúvida sobre a relação entre modernidade, democracia e secularidade. Essa tese de que quanto mais moderno e democrático mais secular seria um povo nunca foi bem o caso dos Estados Unidos. Lá ocorreu justamente o contrário: quanto mais democracia e modernidade, mais religião. A condição de free religion que está nas origens do espaço americano fez com que não houvesse confissões territoriais como na Europa, onde se misturavam intrigas políticas com intrigas religiosas. Nos EUA, ao invés das confissões territoriais se impuseram as denominações: cada indivíduo e cada comunidade se autodenominava o que era religiosamente, e isso permitiu manter a desterritorialização. Esta forma criou uma autoestima de pertença por livre adesão, e por isso a pertença religiosa aumentou com o exercício da democracia e com a modernização. Hoje é uma tendência mundial, inclusive no Brasil antes territorialmente católico. No Brasil, se somos ainda a denominação majoritária, não podemos mais dizer simplesmente “Brasil católico” como os americanos não dizem “América protestante”. Sociólogos da religião como José Casanova, da Universidade Georgetown de Washington, veem nisso nova fase da secularização se pensarmos o processo de secularização na Europa. A secularização tem uma história que está chegando a um ponto “neutro” em muitos lugares, e nesse sentido também Bento XVI manifestou que o espaço secular é o melhor espaço para a convivência das religiões e para a organização política. Mas vemos ainda estertores de secularização em conflito com a religião justamente nos territórios considerados mais católicos da Europa, como Espanha, Bélgica, Irlanda, Polônia, algo também em Portugal, Itália e Áustria. É a última fronteira da desterritorialização, o desaparecimento de países de confissão religiosa. Na área muçulmana há sinais em países de maioria muçulmana que se tornaram democráticos, como a Turquia, a Indonésia, o Senegal, e hoje é a tendência da primavera árabe.
A França foi pioneira em expulsar a religião do espaço político por considerar a religião um estorvo e não uma contribuição para o progresso. As elites políticas e intelectuais brasileiras imitaram a França, e hoje é uma postura conservadora, incapaz de perceber que as tradições religiosas são uma energia atômica na organização das sociedades. Isso não dispensa a vigilância no uso desta energia atômica, pois o fundamentalismo se torna energia desagregadora. Mas as religiões, por seu caráter de transcendência, dão energia para os sacrifícios necessários à vida em sociedade, inspiram generosidade e sabedoria para a boa convivência, portanto para a formação ética, segundo a expressão de Habermas no diálogo com o então Cardeal Ratzinger. Ele era completado pela posição do Cardeal: a relação de religião e política no espaço secular requer uma analogia com o diálogo de fé e razão. A mesma postura de diálogo franco é requerida para a convivência das religiões no mesmo território.
b. Igreja e autonomia dos sujeitos.
A lenta conquista do valor do indivíduo, da singularidade de cada pessoa, da sacralidade da consciência, fundamento da liberdade responsável e instância última da moral, deve muito à fermentação do evangelho. A autonomia do sujeito tem a última palavra inclusive quando aceita obedecer a autoridade e reconhece o ensinamento como vindo de revelação divina. Uma das maneiras de saber o que se passa em meio aos católicos, nesse tempo de medidas científicas, é a estatística. Ou, como dizia um empresário ao seu bispo nos EUA, se há sintoma de um problema como a diminuição da participação, ele faria uma enquete para saber, assim como faria em sua empresa se seu produto não está tendo grande aceitação. Ou ainda, preventivamente, faria uma enquete para saber a melhor forma de colocar o seu produto. Este é um pensamento muito americano, muito prático e com sabor de mercado onde o cliente é majestade. Mas é revelador de uma questão que nos afeta como Igreja diante do leigo adulto: ele tem a última palavra desde a sua consciência. Assim como tivemos uma ruptura entre fé e cultura, estamos tendo um distanciamento entre magistério, sobretudo em questões morais, e recepção dos católicos enquanto sujeitos de sua consciência. Evidentemente, é necessário formar a consciência, uma complexidade que não depende somente da Igreja, e o processo de aproximação, sobretudo de reaproximação entre magistério e consciência dos fiéis, começa pelo diálogo franco sem invocação ao princípio de autoridade sacra. O princípio de autoridade não pode ser imposto, a autoridade deve ser ganha, conquistada, e isso através do testemunho e da palavra. Isso nos leva ao ponto seguinte.
c. Igreja, ciência e moral. Entre ética de valores e ética de benefícios.
Questões delicadas de ordem moral como a recente votação do STF sobre anencefálicos e sua argumentação nos remetem para questões de fundo que viemos enfrentando e continuaremos enfrentando: o uso da ciência para a constituição e o aperfeiçoamento da ética, e os diferentes modelos de argumentação que guiam a moral.
- Por um lado, Bento XVI é um exemplo do exercício do diálogo entre fé e razão e do apoio na razoabilidade dos elementos da fé para apresentá-la no espaço secular e pluralista da sociedade em que se pode contar com um entendimento comum no bom uso da razão. De fato, toda a história da Igreja Católica testemunha a busca de boas relações entre fé e razão, censurando os extremismos de ambos os lados. Por isso também descartamos a teoria das “verdades paralelas”, como se fosse possível ser verdade numa ordem de conhecimento o que não seria verdade em outra ordem de conhecimento, o que positivamente diz o preâmbulo da Fides et Ratio: a fé e a razão são como duas asas para nos elevarmos à contemplação da verdade – no singular.
- Por outro lado, em tempos modernos tal relação de fé e razão se converteu em fé e ciência, com novos desafios. As ciências modernas tem uma metodologia indutiva, que passa pela experiência e pela verificação. A verdade se dá sempre em construção, provisória, um estágio. É inegável que as ciências ajudam a progredir no discernimento moral. Basta pensarmos no progresso da qualidade de nossos juízos sobre violência, suicídio, sexualidade, corporeidade, etc. depois dos conhecimentos acumulados pela psicologia e pelas ciências humanas em geral. Nesse sentido, a Igreja pode ser agradecida à ciência pela ajuda no progresso da consciência, um dos pilares da moral. Foi a ciência que, em meados do século XIX, permitiu à Igreja uma clara definição do começo da vida de um ser humano em sua concepção.
Mas a mentalidade positivista assume ainda que a ciência é o único caminho para a verdade, e quando se trata de um espaço laico, secular, como único instrumento político válido para decisões de ordem moral. A sua provisoriedade e a seus instrumentos tecnológicos aperfeiçoados mas também limitados, como os exames para diagnóstico e prognóstico na área da medicina, inclinam para o modelo ético que muitos chamam de “ética prática”, ou também “consequencialista”, de resultados, quando é necessário assumir riscos. Ela se presta para ir diretamente à questão do melhor benefício, ou seja, ao uso do princípio ético do benefício. E, negativamente, a evitar o maior mal, ou seja, o princípio ético do mal menor. Este último não é absolutamente de fácil aplicação, mas diante da inevitabilidade de algum mal, e diante de urgências, que os agentes da área de saúde enfrentam com maior frequência, torna-se um princípio prático guiado pelas consequências. Claro que a Igreja também aceita estes princípios, que tendem para uma ética teleológica, de fins e de consequências. Mas a Igreja parte de outro modelo, digamos “clássico”: a ética deontológica, que deriva de princípios estabelecidos previamente pela natureza mesma dos valores, da antropologia, e, no nosso caso, da criação divina, da revelação. Na área da filosofia, ela está próxima da ética de Aristóteles e de Kant, em que está suposto o conhecimento da natureza a ser realizada. A virtude e os processos tem em vista o que previamente está designado pela natureza ou pelo princípio, o que chamamos de lei natural. Diante de novos conhecimentos, este modelo costuma acionar o princípio de precaução e opta por uma postura mais conservadora. Tudo isso soa estranho, um idealismo inviável, para o positivismo científico, que, como vimos, é fascinante especialmente em meios acadêmicos. A ética de maior benefício e menor mal é útil para os que se guiam pela urgência e precisam assumir risco, como vimos na mídia, pois há uma economia de raciocínios, de tempo, e, pensa-se, de sofrimentos.
Muitos cientistas já desistiram de procurar onde está o começo de um ser humano no ventre materno, pois reconhecem que isso é de caráter filosófico e antropológico que escapa ao alcance da ciência. E a filosofia contemporânea já desistiu de uma natureza ou de um desígnio prévio sobre a realidade. Na ética das relações humanas – pense-se, por exemplo, no casamento e na família, nas questões em torno da sexualidade, de gênero, no debate sobre adoção de filhos por homossexuais em união estável – a ética do maior benefício ou do mal menor são os princípios mais vigentes. E isso contrasta com as tradições éticas que provém não só do ensinamento da Igreja, mas também de algumas outras tradições religiosas. Portanto, é uma questão crucial em que não basta manifestar nossa posição pontual cada vez, mas esclarecer o mais possível nossos pressupostos e os contrastes e conflitos assumidos. É notável como o princípio de precaução vem perigosamente diminuindo juntamente com o de uma natureza das coisas em que não somos os fabricantes da moral.
Na área da ecologia e da ética ambiental, no entanto, encontramos ambientalistas que voltam, ainda que através de um paradigma novo, à natureza das coisas e ao princípio de precaução. Basta pensar em transgênicos, sementes, transposição de rio e gigantescas hidrelétricas, etc.
d. Igreja e aquecimento global.
Importar-se por este grave sinal dos tempos que está aumentando também a temperatura de nossos medos com seus monstros e esfriando a temperatura da esperança, é crucial para testemunharmos de que, junto com toda a humanidade e agora também com todas as formas de vida na terra, somos “uma grande família”. O engajamento mais explícito da Igreja, como já vem ensaiando, por exemplo, nas Campanhas da Fraternidade ao menos em quatro ocasiões, é também um fator de diálogo e de credibilidade no espaço da sociedade secular e plural.
Nesse sentido, o Conselho Mundial das Igrejas tem um acúmulo de vinte anos de experiência com projetos de justiça ecológica e para com as vítimas climáticas, com migrantes climáticos, etc. Em nosso tempo, a justiça ecológica, a justiça social e a migração precisam ser tratadas juntas. A Cúpula da ONU sobre o ambiente, de junho próximo, chamada Rio+20, e a Cúpula dos Povos junto com a Rio+20, pode ser uma oportunidade, embora seja um momento de cúpula, mas há entidades da Igreja, como a Caritas de diferentes países, que tem experiências e que podem ser potencializadas para parcerias com um apoio mais oficial e explícito.

Prof. Fr. Luiz Carlos Susin OFMCap
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