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V+J
Primeira
Exortação
Apostólica do Papa Francisco
AO EPISCOPADO, AO CLERO, ÀS
PESSOAS CONSAGRADAS E AOS FIÉIS LEIGOS SOBRE
O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO ATUAL
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1.
A ALEGRIA DO EVANGELHO enche o coração
e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus.
Quantos se deixam salvar por Ele são libertados
do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento.
Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. Quero,
com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis
cristãos a fim de os convidar para uma nova etapa
evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos
para o percurso da Igreja nos próximos anos. |
1.
Alegria que se renova e comunica
2.
O grande risco do mundo actual, com sua múltipla
e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza
individualista que brota do coração comodista
e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais,
da consciência isolada. Quando a vida interior
se fecha nos próprios interesses, deixa de haver
espaço para os outros, já não entram
os pobres, já não se ouve a voz de Deus,
já não se goza da doce alegria do seu
amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este
é um risco, certo e permanente, que correm também
os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas
ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é
a escolha duma vida digna e plena, este não é
o desígnio que Deus tem para nós, esta
não é a vida no Espírito que jorra
do coração de Cristo ressuscitado.
3.
Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação
que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro
pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão
de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a
dia sem cessar. Não há motivo para alguém
poder pensar que este convite não lhe diz respeito,
já que «da alegria trazida pelo Senhor
ninguém é excluído». Quem
arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando alguém
dá um pequeno passo em direcção
a Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços
abertos a sua chegada. Este é o momento para
dizer a Jesus Cristo: «Senhor, deixei-me enganar,
de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente
para renovar a minha aliança convosco. Preciso
de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me
mais uma vez nos vossos braços redentores».
Como nos faz bem voltar para Ele, quando nos perdemos!
Insisto uma vez mais: Deus nunca Se cansa de perdoar,
somos nós que nos cansamos de pedir a sua misericórdia.
Aquele que nos convidou a perdoar «setenta vezes
sete» (Mt 18, 22) dá-nos o exemplo: Ele
perdoa setenta vezes sete. Volta uma vez e outra a carregar-nos
aos seus ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade
que este amor infinito e inabalável nos confere.
Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar,
com uma ternura que nunca nos defrauda e sempre nos
pode restituir a alegria. Não fujamos da ressurreição
de Jesus; nunca nos demos por mortos, suceda o que suceder.
Que nada possa mais do que a sua vida que nos impele
para diante!
4.
Os livros do Antigo Testamento preanunciaram a alegria
da salvação, que havia de tornar-se superabundante
nos tempos messiânicos. O profeta Isaías
dirige-se ao Messias esperado, saudando-O com regozijo:
«Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo»
(9, 2). E anima os habitantes de Sião a recebê-Lo
com cânticos: «Exultai de alegria!»
(12, 6). A quem já O avistara no horizonte, o
profeta convida-o a tornar-se mensageiro para os outros:
«Sobe a um alto monte, arauto de Sião!
Grita com voz forte, arauto de Jerusalém»
(40, 9). A criação inteira participa nesta
alegria da salvação: «Cantai, ó
céus! Exulta de alegria, ó terra! Rompei
em exclamações, ó montes! Na verdade,
o Senhor consola o seu povo e se compadece dos desamparados»
(49, 13).
Zacarias, vendo o dia do Senhor, convida a vitoriar
o Rei que chega «humilde, montado num jumento»:
«Exulta de alegria, filha de Sião! Solta
gritos de júbilo, filha de Jerusalém!
Eis que o teu rei vem a ti. Ele é justo e vitorioso»
(9, 9). Mas o convite mais tocante talvez seja o do
profeta Sofonias, que nos mostra o próprio Deus
como um centro irradiante de festa e de alegria, que
quer comunicar ao seu povo este júbilo salvífico.
Enche-me de vida reler este texto: «O Senhor,
teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador!
Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te
renovará. Ele dança e grita de alegria
por tua causa» (3, 17).
É a alegria que se vive no meio das pequenas
coisas da vida quotidiana, como resposta ao amoroso
convite de Deus nosso Pai: «Meu filho, se tens
com quê, trata-te bem (...). Não te prives
da felicidade presente» (Sir 14, 11.14). Quanta
ternura paterna se vislumbra por detrás destas
palavras!
5. O Evangelho, onde resplandece gloriosa a Cruz de
Cristo, convida insistentemente à alegria. Apenas
alguns exemplos: «Alegra-te» é a
saudação do anjo a Maria (Lc 1, 28). A
visita de Maria a Isabel faz com que João salte
de alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc 1, 41).
No seu cântico, Maria proclama: «O meu espírito
se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 47). E,
quando Jesus começa o seu ministério,
João exclama: «Esta é a minha alegria!
E tornou-se completa!» (Jo 3, 29). O próprio
Jesus «estremeceu de alegria sob a acção
do Espírito Santo» (Lc 10, 21). A sua mensagem
é fonte de alegria: «Manifestei-vos estas
coisas, para que esteja em vós a minha alegria,
e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11).
A nossa alegria cristã brota da fonte do seu
coração transbordante. Ele promete aos
seus discípulos: «Vós haveis de
estar tristes, mas a vossa tristeza há-de converter-se
em alegria» (Jo 16, 20). E insiste: «Eu
hei-de ver-vos de novo! Então, o vosso coração
há-de alegrar-se e ninguém vos poderá
tirar a vossa alegria» (Jo 16, 22). Depois, ao
verem-No ressuscitado, «encheram-se de alegria»
(Jo 20, 20). O livro dos Actos dos Apóstolos
conta que, na primitiva comunidade, «tomavam o
alimento com alegria» (2, 46). Por onde passaram
os discípulos, «houve grande alegria»
(8, 8); e eles, no meio da perseguição,
«estavam cheios de alegria» (13, 52). Um
eunuco, recém-baptizado, «seguiu o seu
caminho cheio de alegria» (8, 39); e o carcereiro
«entregou-se, com a família, à alegria
de ter acreditado em Deus» (16, 34). Porque não
havemos de entrar, também nós, nesta torrente
de alegria?
6. Há cristãos que parecem ter escolhido
viver uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço,
porém, que a alegria não se vive da mesma
maneira em todas as etapas e circunstâncias da
vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se,
mas sempre permanece pelo menos como um feixe de luz
que nasce da certeza pessoal de, não obstante
o contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo
as pessoas que se vergam à tristeza por causa
das graves dificuldades que têm de suportar, mas
aos poucos é preciso permitir que a alegria da
fé comece a despertar, como uma secreta mas firme
confiança, mesmo no meio das piores angústias:
«A paz foi desterrada da minha alma, já
nem sei o que é a felicidade (…). Isto,
porém, guardo no meu coração; por
isso, mantenho a esperança. É que a misericórdia
do Senhor não acaba, não se esgota a sua
compaixão. Cada manhã ela se renova; é
grande a tua fidelidade. (...) Bom é esperar
em silêncio a salvação do Senhor»
(Lm 3, 17.21-23.26).
7. A tentação apresenta-se, frequentemente,
sob forma de desculpas e queixas, como se tivesse de
haver inúmeras condições para ser
possível a alegria. Habitualmente isto acontece,
porque «a sociedade técnica teve a possibilidade
de multiplicar as ocasiões de prazer; no entanto
ela encontra dificuldades grandes no engendrar também
a alegria». Posso dizer que as alegrias mais belas
e espontâneas, que vi ao longo da minha vida,
são as alegrias de pessoas muito pobres que têm
pouco a que se agarrar. Recordo também a alegria
genuína daqueles que, mesmo no meio de grandes
compromissos profissionais, souberam conservar um coração
crente, generoso e simples. De várias maneiras,
estas alegrias bebem na fonte do amor maior, que é
o de Deus, a nós manifestado em Jesus Cristo.
Não me cansarei de repetir estas palavras de
Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao
início do ser cristão, não há
uma decisão ética ou uma grande ideia,
mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa
que dá à vida um novo horizonte e, desta
forma, o rumo decisivo».
8. Somente graças a este encontro – ou
reencontro – com o amor de Deus, que se converte
em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa
consciência isolada e da auto-referencialidade.
Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais
do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza
para além de nós mesmos a fim de alcançarmos
o nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a fonte
da acção evangelizadora. Porque, se alguém
acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida,
como é que pode conter o desejo de o comunicar
aos outros?
2. A doce e reconfortante alegria de evangelizar
9. O bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência
autêntica de verdade e de beleza procura, por
si mesma, a sua expansão; e qualquer pessoa que
viva uma libertação profunda adquire maior
sensibilidade face às necessidades dos outros.
E, uma vez comunicado, o bem radica-se e desenvolve-se.
Por isso, quem deseja viver com dignidade e em plenitude,
não tem outro caminho senão reconhecer
o outro e buscar o seu bem. Assim, não nos deveriam
surpreender frases de São Paulo como estas: «O
amor de Cristo nos absorve completamente» (2 Cor
5, 14); «ai de mim, se eu não evangelizar!»
(1 Cor 9, 16).
10. A proposta é viver a um nível superior,
mas não com menor intensidade: «Na doação,
a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e
no isolamento. De facto, os que mais desfrutam da vida
são os que deixam a segurança da margem
e se apaixonam pela missão de comunicar a vida
aos demais». Quando a Igreja faz apelo ao compromisso
evangelizador, não faz mais do que indicar aos
cristãos o verdadeiro dinamismo da realização
pessoal: «Aqui descobrimos outra profunda lei
da realidade: “A vida se alcança e amadurece
à medida que é entregue para dar vida
aos outros”. Isto é, definitivamente, a
missão». Consequentemente, um evangelizador
não deveria ter constantemente uma cara de funeral.
Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito,
«a suave e reconfortante alegria de evangelizar,
mesmo quando for preciso semear com lágrimas!
(...) E que o mundo do nosso tempo, que procura ora
na angústia ora com esperança, possa receber
a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores
tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos,
mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie
fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria
de Cristo».
Uma
eterna novidade
11. Um anúncio renovado proporciona aos crentes,
mesmo tíbios ou não praticantes, uma nova
alegria na fé e uma fecundidade evangelizadora.
Na realidade, o seu centro e a sua essência são
sempre o mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso
em Cristo morto e ressuscitado. Ele torna os seus fiéis
sempre novos; ainda que sejam idosos, «renovam
as suas forças. Têm asas como a águia,
correm sem se cansar, marcham sem desfalecer»
(Is 40, 31). Cristo é a «Boa-Nova de valor
eterno» (Ap 14, 6), sendo «o mesmo ontem,
hoje e pelos séculos» (Heb 13, 8), mas
a sua riqueza e a sua beleza são inesgotáveis.
Ele é sempre jovem, e fonte de constante novidade.
A Igreja não cessa de se maravilhar com a «profundidade
de riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus»
(Rm 11, 33). São João da Cruz dizia: «Esta
espessura de sabedoria e ciência de Deus é
tão profunda e imensa, que, por mais que a alma
saiba dela, sempre pode penetrá-la mais profundamente».
Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: «Na sua
vinda, [Cristo] trouxe consigo toda a novidade».
Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa
vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã,
ainda que atravesse períodos obscuros e fraquezas
eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode romper
também os esquemas enfadonhos em que pretendemos
aprisioná-Lo, e surpreende-nos com a sua constante
criatividade divina. Sempre que procuramos voltar à
fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam
novas estradas, métodos criativos, outras formas
de expressão, sinais mais eloquentes, palavras
cheias de renovado significado para o mundo actual.
Na realidade, toda a acção evangelizadora
autêntica é sempre «nova».
12.
Embora esta missão nos exija uma entrega generosa,
seria um erro considerá-la como uma heróica
tarefa pessoal, dado que ela é, primariamente
e acima de tudo o que possamos sondar e compreender,
obra de Deus. Jesus é «o primeiro e o maior
evangelizador». Em qualquer forma de evangelização,
o primado é sempre de Deus, que quis chamar-nos
para cooperar com Ele e impelir-nos com a força
do seu Espírito. A verdadeira novidade é
aquela que o próprio Deus misteriosamente quer
produzir, aquela que Ele inspira, aquela que Ele provoca,
aquela que Ele orienta e acompanha de mil e uma maneiras.
Em toda a vida da Igreja, deve-se sempre manifestar
que a iniciativa pertence a Deus, «porque Ele
nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19) e é «só
Deus que faz crescer» (1 Cor 3, 7). Esta convicção
permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa tão
exigente e desafiadora que ocupa inteiramente a nossa
vida. Pede-nos tudo, mas ao mesmo tempo dá-nos
tudo.
13.
E também não deveremos entender a novidade
desta missão como um desenraizamento, como um
esquecimento da história viva que nos acolhe
e impele para diante. A memória é uma
dimensão da nossa fé, que, por analogia
com a memória de Israel, poderíamos chamar
«deuteronómica». Jesus deixa-nos
a Eucaristia como memória quotidiana da Igreja,
que nos introduz cada vez mais na Páscoa (cf.
Lc 22, 19). A alegria evangelizadora refulge sempre
sobre o horizonte da memória agradecida: é
uma graça que precisamos de pedir. Os Apóstolos
nunca mais esqueceram o momento em que Jesus lhes tocou
o coração: «Eram as quatro horas
da tarde» (Jo 1, 39). A memória faz-nos
presente, juntamente com Jesus, uma verdadeira «nuvem
de testemunhas» (Heb 12, 1). De entre elas, distinguem-se
algumas pessoas que incidiram de maneira especial para
fazer germinar a nossa alegria crente: «Recordai-vos
dos vossos guias, que vos pregaram a palavra de Deus»
(Heb 13, 7). Às vezes, trata-se de pessoas simples
e próximas de nós, que nos iniciaram na
vida da fé: «Trago à memória
a tua fé sem fingimento, que se encontrava já
na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice»
(2 Tm 1, 5). O crente é, fundamentalmente, «uma
pessoa que faz memória».
3.
A nova evangelização para a transmissão
da fé
14.
À escuta do Espírito, que nos ajuda a
reconhecer comunitariamente os sinais dos tempos, celebrou-se
de 7 a 28 de Outubro de 2012 a XIII Assembleia Geral
Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre
o tema A nova evangelização para a transmissão
da fé cristã. Lá foi recordado
que a nova evangelização interpela a todos,
realizando-se fundamentalmente em três âmbitos.
Em primeiro lugar, mencionamos o âmbito da pastoral
ordinária, «animada pelo fogo do Espírito
a fim de incendiar os corações dos fiéis
que frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se
no dia do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra
e do Pão de vida eterna». Devem ser incluídos
também neste âmbito os fiéis que
conservam uma fé católica intensa e sincera,
exprimindo-a de diversos modos, embora não participem
frequentemente no culto. Esta pastoral está orientada
para o crescimento dos crentes, a fim de corresponderem
cada vez melhor e com toda a sua vida ao amor de Deus.
Em segundo lugar, lembramos o âmbito das «pessoas
baptizadas que, porém, não vivem as exigências
do Baptismo», não sentem uma pertença
cordial à Igreja e já não experimentam
a consolação da fé. Mãe
sempre solícita, a Igreja esforça-se para
que elas vivam uma conversão que lhes restitua
a alegria da fé e o desejo de se comprometerem
com o Evangelho.
Por fim, frisamos que a evangelização
está essencialmente relacionada com a proclamação
do Evangelho àqueles que não conhecem
Jesus Cristo ou que sempre O recusaram. Muitos deles
buscam secretamente a Deus, movidos pela nostalgia do
seu rosto, mesmo em países de antiga tradição
cristã. Todos têm o direito de receber
o Evangelho. Os cristãos têm o dever de
o anunciar, sem excluir ninguém, e não
como quem impõe uma nova obrigação,
mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte
estupendo, oferece um banquete apetecível. A
Igreja não cresce por proselitismo, mas «por
atracção».
15.
João Paulo II convidou-nos a reconhecer que «não
se pode perder a tensão para o anúncio»
àqueles que estão longe de Cristo, «porque
esta é a tarefa primária da Igreja».
A actividade missionária «ainda hoje representa
o máximo desafio para a Igreja» e «a
causa missionária deve ser (…) a primeira
de todas as causas». Que sucederia se tomássemos
realmente a sério estas palavras? Simplesmente
reconheceríamos que a acção missionária
é o paradigma de toda a obra da Igreja. Nesta
linha, os Bispos latino-americanos afirmaram que «não
podemos ficar tranquilos, em espera passiva, em nossos
templos», sendo necessário passar «de
uma pastoral de mera conservação para
uma pastoral decididamente missionária».
Esta tarefa continua a ser a fonte das maiores alegrias
para a Igreja: «Haverá mais alegria no
Céu por um só pecador que se converte,
do que por noventa e nove justos que não necessitam
de conversão» (Lc 15, 7).
A
proposta desta Exortação e seus contornos
16. Com prazer, aceitei o convite dos Padres sinodais
para redigir esta Exortação. Para o efeito,
recolho a riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei
também várias pessoas e pretendo, além
disso, exprimir as preocupações que me
movem neste momento concreto da obra evangelizadora
da Igreja. Os temas relacionados com a evangelização
no mundo actual, que se poderiam desenvolver aqui, são
inumeráveis. Mas renunciei a tratar detalhadamente
esta multiplicidade de questões que devem ser
objecto de estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso,
aliás, que não se deve esperar do magistério
papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas
as questões que dizem respeito à Igreja
e ao mundo. Não convém que o Papa substitua
os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas
que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido,
sinto a necessidade de proceder a uma salutar «descentralização».
17.
Aqui escolhi propor algumas directrizes que possam encorajar
e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora,
cheia de ardor e dinamismo. Neste quadro e com base
na doutrina da Constituição dogmática
Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de me deter
amplamente sobre as seguintes questões:
a) A reforma da Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus
que evangeliza.
d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.
f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais para o compromisso
missionário.
18.
Demorei-me nestes temas, desenvolvendo-os dum modo que
talvez possa parecer excessivo. Mas não o fiz
com a intenção de oferecer um tratado,
mas só para mostrar a relevante incidência
prática destes assuntos na missão actual
da Igreja. De facto, todos eles ajudam a delinear um
preciso estilo evangelizador, que convido a assumir
em qualquer actividade que se realize. E, desta forma,
podemos assumir, no meio do nosso trabalho diário,
esta exortação da Palavra de Deus: «Alegrai-vos
sempre no Senhor! De novo vos digo: alegrai-vos!»
(Fl 4, 4).
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Capítulo
I
A TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA
IGREJA
19.
A evangelização obedece ao mandato missionário
de Jesus: «Ide, pois, fazei discípulos
de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir
tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28, 19-20).
Nestes versículos, aparece o momento em que o
Ressuscitado envia os seus a pregar o Evangelho em todos
os tempos e lugares, para que a fé n’Ele
se estenda a todos os cantos da terra.
1. Uma Igreja «em saída»
20. Na Palavra de Deus, aparece constantemente este
dinamismo de «saída», que Deus quer
provocar nos crentes. Abraão aceitou a chamada
para partir rumo a uma nova terra (cf. Gn 12, 1-3).
Moisés ouviu a chamada de Deus: «Vai; Eu
te envio» (Ex 3, 10), e fez sair o povo para a
terra prometida (cf. Ex 3, 17). A Jeremias disse: «Irás
aonde Eu te enviar» (Jr 1, 7). Naquele «ide»
de Jesus, estão presentes os cenários
e os desafios sempre novos da missão evangelizadora
da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova «saída»
missionária. Cada cristão e cada comunidade
há-de discernir qual é o caminho que o
Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar
esta chamada: sair da própria comodidade e ter
a coragem de alcançar todas as periferias que
precisam da luz do Evangelho.
21. A alegria do Evangelho, que enche a vida da comunidade
dos discípulos, é uma alegria missionária.
Experimentam-na os setenta e dois discípulos,
que voltam da missão cheios de alegria (cf. Lc
10, 17). Vive-a Jesus, que exulta de alegria no Espírito
Santo e louva o Pai, porque a sua revelação
chega aos pobres e aos pequeninos (cf. Lc 10, 21). Sentem-na,
cheios de admiração, os primeiros que
se convertem no Pentecostes, ao ouvir «cada um
na sua própria língua» (Act 2, 6)
a pregação dos Apóstolos. Esta
alegria é um sinal de que o Evangelho foi anunciado
e está a frutificar. Mas contém sempre
a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de
si mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo, sempre
mais além. O Senhor diz: «Vamos para outra
parte, para as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí,
pois foi para isso que Eu vim» (Mc 1, 38). Ele,
depois de lançar a semente num lugar, não
se demora lá a explicar melhor ou a cumprir novos
sinais, mas o Espírito leva-O a partir para outras
aldeias.
22. A Palavra possui, em si mesma, uma tal potencialidade,
que não a podemos prever. O Evangelho fala da
semente que, uma vez lançada à terra,
cresce por si mesma, inclusive quando o agricultor dorme
(cf. Mc 4, 26-29). A Igreja deve aceitar esta liberdade
incontrolável da Palavra, que é eficaz
a seu modo e sob formas tão variadas que muitas
vezes nos escapam, superando as nossas previsões
e quebrando os nossos esquemas.
23. A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade
itinerante, e a comunhão «reveste essencialmente
a forma de comunhão missionária».
Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a
Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos
os lugares, em todas as ocasiões, sem demora,
sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho
é para todo o povo, não se pode excluir
ninguém; assim foi anunciada pelo anjo aos pastores
de Belém: «Não temais, pois anuncio-vos
uma grande alegria, que o será para todo o povo»
(Lc 2, 10). O Apocalipse fala de «uma Boa-Nova
de valor eterno para anunciar aos habitantes da terra:
a todas as nações, tribos, línguas
e povos» (Ap 14, 6).
«Primeirear», envolver-se, acompanhar,
frutificar e festejar
24. A Igreja «em saída» é
a comunidade de discípulos missionários
que «primeireiam», que se envolvem, que
acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam –
desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa!
A comunidade missionária experimenta que o Senhor
tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4,
10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe
tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar
os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos
para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível
de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado
a misericórdia infinita do Pai e a sua força
difusiva. Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa!
Como consequência, a Igreja sabe «envolver-se».
Jesus lavou os pés aos seus discípulos.
O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos
diante dos outros para os lavar; mas, logo a seguir,
diz aos discípulos: «Sereis felizes se
o puserdes em prática» (Jo 13, 17). Com
obras e gestos, a comunidade missionária entra
na vida diária dos outros, encurta as distâncias,
abaixa-se – se for necessário – até
à humilhação e assume a vida humana,
tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os evangelizadores
contraem assim o «cheiro de ovelha», e estas
escutam a sua voz. Em seguida, a comunidade evangelizadora
dispõe-se a «acompanhar». Acompanha
a humanidade em todos os seus processos, por mais duros
e demorados que sejam. Conhece as longas esperas e a
suportação apostólica. A evangelização
patenteia muita paciência, e evita deter-se a
considerar as limitações. Fiel ao dom
do Senhor, sabe também «frutificar».
A comunidade evangelizadora mantém-se atenta
aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do
trigo e não perde a paz por causa do joio. O
semeador, quando vê surgir o joio no meio do trigo,
não tem reacções lastimosas ou
alarmistas. Encontra o modo para fazer com que a Palavra
se encarne numa situação concreta e dê
frutos de vida nova, apesar de serem aparentemente imperfeitos
ou defeituosos. O discípulo sabe oferecer a vida
inteira e jogá-la até ao martírio
como testemunho de Jesus Cristo, mas o seu sonho não
é estar cheio de inimigos, mas antes que a Palavra
seja acolhida e manifeste a sua força libertadora
e renovadora. Por fim, a comunidade evangelizadora jubilosa
sabe sempre «festejar»: celebra e festeja
cada pequena vitória, cada passo em frente na
evangelização. No meio desta exigência
diária de fazer avançar o bem, a evangelização
jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza
e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é
também celebração da actividade
evangelizadora e fonte dum renovado impulso para se
dar.
2. Pastoral em conversão
25. Não ignoro que hoje os documentos não
suscitam o mesmo interesse que noutras épocas,
acabando rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho
que, aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui
um significado programático e tem consequências
importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem
por actuar os meios necessários para avançar
no caminho duma conversão pastoral e missionária,
que não pode deixar as coisas como estão.
Neste momento, não nos serve uma «simples
administração». Constituamo-nos
em «estado permanente de missão»,
em todas as regiões da terra.
26. Paulo VI convidou a alargar o apelo à renovação
de modo que ressalte, com força, que não
se dirige apenas aos indivíduos, mas à
Igreja inteira. Lembremos este texto memorável,
que não perdeu a sua força interpeladora:
«A Igreja deve aprofundar a consciência
de si mesma, meditar sobre o seu próprio mistério
(...). Desta consciência esclarecida e operante
deriva espontaneamente um desejo de comparar a imagem
ideal da Igreja, tal como Cristo a viu, quis e amou,
ou seja, como sua Esposa santa e imaculada (Ef 5, 27),
com o rosto real que a Igreja apresenta hoje. (…)
Em consequência disso, surge uma necessidade generosa
e quase impaciente de renovação, isto
é, de emenda dos defeitos, que aquela consciência
denuncia e rejeita, como se fosse um exame interior
ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo».
O Concílio Vaticano II apresentou a conversão
eclesial como a abertura a uma reforma permanente de
si mesma por fidelidade a Jesus Cristo: «Toda
a renovação da Igreja consiste essencialmente
numa maior fidelidade à própria vocação.
(…) A Igreja peregrina é chamada por Cristo
a esta reforma perene. Como instituição
humana e terrena, a Igreja necessita perpetuamente desta
reforma».
Há estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar
um dinamismo evangelizador; de igual modo, as boas estruturas
servem quando há uma vida que as anima, sustenta
e avalia. Sem vida nova e espírito evangélico
autêntico, sem «fidelidade da Igreja à
própria vocação», toda e
qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo.
Uma renovação eclesial inadiável
27. Sonho com uma opção missionária
capaz de transformar tudo, para que os costumes, os
estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura
eclesial se tornem um canal proporcionado mais à
evangelização do mundo actual que à
auto-preservação. A reforma das estruturas,
que a conversão pastoral exige, só se
pode entender neste sentido: fazer com que todas elas
se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária
em todas as suas instâncias seja mais comunicativa
e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude
constante de «saída» e, assim, favoreça
a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece
a sua amizade. Como dizia João Paulo II aos Bispos
da Oceânia, «toda a renovação
na Igreja há-de ter como alvo a missão,
para não cair vítima duma espécie
de introversão eclesial».
28. A paróquia não é uma estrutura
caduca; precisamente porque possui uma grande plasticidade,
pode assumir formas muito diferentes que requerem a
docilidade e a criatividade missionária do Pastor
e da comunidade. Embora não seja certamente a
única instituição evangelizadora,
se for capaz de se reformar e adaptar constantemente,
continuará a ser «a própria Igreja
que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas
filhas». Isto supõe que esteja realmente
em contacto com as famílias e com a vida do povo,
e não se torne uma estrutura complicada, separada
das pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para
si mesmos. A paróquia é presença
eclesial no território, âmbito para a escuta
da Palavra, o crescimento da vida cristã, o diálogo,
o anúncio, a caridade generosa, a adoração
e a celebração. Através de todas
as suas actividades, a paróquia incentiva e forma
os seus membros para serem agentes da evangelização.
É comunidade de comunidades, santuário
onde os sedentos vão beber para continuarem a
caminhar, e centro de constante envio missionário.
Temos, porém, de reconhecer que o apelo à
revisão e renovação das paróquias
ainda não deu suficientemente fruto, tornando-se
ainda mais próximas das pessoas, sendo âmbitos
de viva comunhão e participação
e orientando-se completamente para a missão.
29. As outras instituições eclesiais,
comunidades de base e pequenas comunidades, movimentos
e outras formas de associação são
uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita
para evangelizar todos os ambientes e sectores. Frequentemente
trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade
de diálogo com o mundo que renovam a Igreja.
Mas é muito salutar que não percam o contacto
com esta realidade muito rica da paróquia local
e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica
da Igreja particular. Esta integração
evitará que fiquem só com uma parte do
Evangelho e da Igreja, ou que se transformem em nómades
sem raízes.
30. Cada Igreja particular, porção da
Igreja Católica sob a guia do seu Bispo, está,
também ela, chamada à conversão
missionária. Ela é o sujeito primário
da evangelização, enquanto é a
manifestação concreta da única
Igreja num lugar da terra e, nela, «está
verdadeiramente presente e opera a Igreja de Cristo,
una, santa, católica e apostólica».
É a Igreja encarnada num espaço concreto,
dotada de todos os meios de salvação dados
por Cristo, mas com um rosto local. A sua alegria de
comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua preocupação
por anunciá-Lo noutros lugares mais necessitados,
como numa constante saída para as periferias
do seu território ou para os novos âmbitos
socioculturais. Procura estar sempre onde fazem mais
falta a luz e a vida do Ressuscitado. Para que este
impulso missionário seja cada vez mais intenso,
generoso e fecundo, exorto também cada uma das
Igrejas particulares a entrar decididamente num processo
de discernimento, purificação e reforma.
31. O Bispo deve favorecer sempre a comunhão
missionária na sua Igreja diocesana, seguindo
o ideal das primeiras comunidades cristãs, em
que os crentes tinham um só coração
e uma só alma (cf. Act 4, 32) . Para isso, às
vezes pôr-se-á à frente para indicar
a estrada e sustentar a esperança do povo, outras
vezes manter-se-á simplesmente no meio de todos
com a sua proximidade simples e misericordiosa e, em
certas circunstâncias, deverá caminhar
atrás do povo, para ajudar aqueles que se atrasaram
e sobretudo porque o próprio rebanho possui o
olfacto para encontrar novas estradas. Na sua missão
de promover uma comunhão dinâmica, aberta
e missionária, deverá estimular e procurar
o amadurecimento dos organismos de participação
propostos pelo Código de Direito Canónico
e de outras formas de diálogo pastoral, com o
desejo de ouvir a todos, e não apenas alguns
sempre prontos a lisonjeá-lo. Mas o objectivo
destes processos participativos não há-de
ser principalmente a organização eclesial,
mas o sonho missionário de chegar a todos.
32. Dado que sou chamado a viver aquilo que peço
aos outros, devo pensar também numa conversão
do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer
aberto às sugestões tendentes a um exercício
do meu ministério que o torne mais fiel ao significado
que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades
actuais da evangelização. O Papa João
Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar «uma
forma de exercício do primado que, sem renunciar
de modo algum ao que é essencial da sua missão,
se abra a uma situação nova». Pouco
temos avançado neste sentido. Também o
papado e as estruturas centrais da Igreja universal
precisam de ouvir este apelo a uma conversão
pastoral. O Concílio Vaticano II afirmou que,
à semelhança das antigas Igrejas patriarcais,
as conferências episcopais podem «aportar
uma contribuição múltipla e fecunda,
para que o sentimento colegial leve a aplicações
concretas». Mas este desejo não se realizou
plenamente, porque ainda não foi suficientemente
explicitado um estatuto das conferências episcopais
que as considere como sujeitos de atribuições
concretas, incluindo alguma autêntica autoridade
doutrinal. Uma centralização excessiva,
em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua
dinâmica missionária.
33. A pastoral em chave missionária exige o abandono
deste cómodo critério pastoral: «fez-se
sempre assim». Convido todos a serem ousados e
criativos nesta tarefa de repensar os objectivos, as
estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores
das respectivas comunidades. Uma identificação
dos fins, sem uma condigna busca comunitária
dos meios para os alcançar, está condenada
a traduzir-se em mera fantasia. A todos exorto a aplicarem,
com generosidade e coragem, as orientações
deste documento, sem impedimentos nem receios. Importante
é não caminhar sozinho, mas ter sempre
em conta os irmãos e, de modo especial, a guia
dos Bispos, num discernimento pastoral sábio
e realista.
3. A partir do coração do Evangelho
34.Se pretendemos colocar tudo em chave missionária,
isso aplica-se também à maneira de comunicar
a mensagem. No mundo actual, com a velocidade das comunicações
e a selecção interessada dos conteúdos
feita pelos mass-media, a mensagem que anunciamos corre
mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida
a alguns dos seus aspectos secundários. Consequentemente,
algumas questões que fazem parte da doutrina
moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá
sentido. O problema maior ocorre quando a mensagem que
anunciamos parece então identificada com tais
aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes,
por si sozinhos não manifestam o coração
da mensagem de Jesus Cristo. Portanto, convém
ser realistas e não dar por suposto que os nossos
interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo
que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso
com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere
sentido, beleza e fascínio.
35. Uma pastoral em chave missionária não
está obsessionada pela transmissão desarticulada
de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à
força de insistir. Quando se assume um objectivo
pastoral e um estilo missionário, que chegue
realmente a todos sem excepções nem exclusões,
o anúncio concentra-se no essencial, no que é
mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo
tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada,
sem com isso perder profundidade e verdade, e assim
se torna mais convincente e radiosa.
36. Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte
divina e são acreditadas com a mesma fé,
mas algumas delas são mais importantes por exprimir
mais directamente o coração do Evangelho.
Neste núcleo fundamental, o que sobressai é
a beleza do amor salvífico de Deus manifestado
em Jesus Cristo morto e ressuscitado. Neste sentido,
o Concílio Vaticano II afirmou que «existe
uma ordem ou “hierarquia” das verdades da
doutrina católica, já que o nexo delas
com o fundamento da fé cristã é
diferente». Isto é válido tanto
para os dogmas da fé como para o conjunto dos
ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral.
37. São Tomás de Aquino ensinava que,
também na mensagem moral da Igreja, há
uma hierarquia nas virtudes e acções que
delas procedem. Aqui o que conta é, antes de
mais nada, «a fé que actua pelo amor»
(Gal 5, 6). As obras de amor ao próximo são
a manifestação externa mais perfeita da
graça interior do Espírito: «O elemento
principal da Nova Lei é a graça do Espírito
Santo, que se manifesta através da fé
que opera pelo amor». Por isso afirma que, relativamente
ao agir exterior, a misericórdia é a maior
de todas as virtudes: «Em si mesma, a misericórdia
é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe
debruçar-se sobre os outros e – o que mais
conta – remediar as misérias alheias. Ora,
isto é tarefa especialmente de quem é
superior; é por isso que se diz que é
próprio de Deus usar de misericórdia e
é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua omnipotência».
38. É importante tirar as consequências
pastorais desta doutrina conciliar, que recolhe uma
antiga convicção da Igreja. Antes de mais
nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho,
é necessário que haja uma proporção
adequada. Esta reconhece-se na frequência com
que se mencionam alguns temas e nas acentuações
postas na pregação. Por exemplo, se um
pároco, durante um ano litúrgico, fala
dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou
três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça,
gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas
precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais
presentes na pregação e na catequese.
E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da
graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais
do Papa que da Palavra de Deus.
39. Tal como existe uma unidade orgânica entre
as virtudes que impede de excluir qualquer uma delas
do ideal cristão, assim também nenhuma
verdade é negada. Não é preciso
mutilar a integridade da mensagem do Evangelho. Além
disso, cada verdade entende-se melhor se a colocarmos
em relação com a totalidade harmoniosa
da mensagem cristã: e, neste contexto, todas
as verdades têm a sua própria importância
e iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação
é fiel ao Evangelho, manifesta-se com clareza
a centralidade de algumas verdades e fica claro que
a pregação moral cristã não
é uma ética estóica, é mais
do que uma ascese, não é uma mera filosofia
prática nem um catálogo de pecados e erros.
O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus
que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo
de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este
convite não há-de ser obscurecido em nenhuma
circunstância! Todas as virtudes estão
ao serviço desta resposta de amor. Se tal convite
não refulge com vigor e fascínio, o edifício
moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo
de cartas, sendo este o nosso pior perigo; é
que, então, não estaremos propriamente
a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações
doutrinais ou morais, que derivam de certas opções
ideológicas. A mensagem correrá o risco
de perder o seu frescor e já não ter «o
perfume do Evangelho».
4. A missão que se encarna nas limitações
humanas
40. A Igreja, que é discípula missionária,
tem necessidade de crescer na sua interpretação
da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade.
A tarefa dos exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer
o juízo da Igreja». Embora de modo diferente,
fazem-no também as outras ciências. Referindo-se
às ciências sociais, por exemplo, João
Paulo II disse que a Igreja presta atenção
às suas contribuições «para
obter indicações concretas que a ajudem
no cumprimento da sua missão de Magistério».
Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras
questões à volta das quais se indaga e
reflecte com grande liberdade. As diversas linhas de
pensamento filosófico, teológico e pastoral,
se se deixam harmonizar pelo Espírito no respeito
e no amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam
a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra.
A quantos sonham com uma doutrina monolítica
defendida sem nuances por todos, isto poderá
parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade
é que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver
melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável
do Evangelho.
41. Ao mesmo tempo, as enormes e rápidas mudanças
culturais exigem que prestemos constante atenção
ao tentar exprimir as verdades de sempre numa linguagem
que permita reconhecer a sua permanente novidade; é
que, no depósito da doutrina cristã, «uma
coisa é a substância (...) e outra é
a formulação que a reveste». Por
vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa,
aquilo que os fiéis recebem, devido à
linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é
algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho
de Jesus Cristo. Com a santa intenção
de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o ser humano,
nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso deus ou
um ideal humano que não é verdadeiramente
cristão. Deste modo, somos fiéis a uma
formulação, mas não transmitimos
a substância. Este é o risco mais grave.
Lembremo-nos de que «a expressão da verdade
pode ser multiforme. E a renovação das
formas de expressão torna-se necessária
para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica
no seu significado imutável».
42. Isto possui uma grande relevância no anúncio
do Evangelho, se temos verdadeiramente a peito fazer
perceber melhor a sua beleza e fazê-la acolher
por todos. Em todo o caso, não poderemos jamais
tornar os ensinamentos da Igreja uma realidade facilmente
compreensível e felizmente apreciada por todos;
a fé conserva sempre um aspecto de cruz, certa
obscuridade que não tira firmeza à sua
adesão. Há coisas que se compreendem e
apreciam só a partir desta adesão que
é irmã do amor, para além da clareza
com que se possam compreender as razões e os
argumentos. Por isso, é preciso recordar-se de
que cada ensinamento da doutrina deve situar-se na atitude
evangelizadora que desperte a adesão do coração
com a proximidade, o amor e o testemunho.
43. No seu constante discernimento, a Igreja pode chegar
também a reconhecer costumes próprios
não directamente ligados ao núcleo do
Evangelho, alguns muito radicados no curso da história,
que hoje já não são interpretados
da mesma maneira e cuja mensagem habitualmente não
é percebida de modo adequado. Podem até
ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço
à transmissão do Evangelho. Não
tenhamos medo de os rever! Da mesma forma, há
normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito
eficazes noutras épocas, mas já não
têm a mesma força educativa como canais
de vida. São Tomás de Aquino sublinhava
que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos
ao povo de Deus «são pouquíssimos».
E, citando Santo Agostinho, observava que os preceitos
adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir
com moderação, «para não
tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar
a nossa religião numa escravidão, quando
«a misericórdia de Deus quis que fosse
livre». Esta advertência, feita há
vários séculos, tem uma actualidade tremenda.
Deveria ser um dos critérios a considerar, quando
se pensa numa reforma da Igreja e da sua pregação
que permita realmente chegar a todos.
44. Aliás, tanto os Pastores como todos os fiéis
que acompanham os seus irmãos na fé ou
num caminho de abertura a Deus não podem esquecer
aquilo que ensina, com muita clareza, o Catecismo da
Igreja Católica: «A imputabilidade e responsabilidade
dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas,
pela ignorância, a inadvertência, a violência,
o medo, os hábitos, as afeições
desordenadas e outros factores psíquicos ou sociais».
Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico,
é preciso acompanhar, com misericórdia
e paciência, as possíveis etapas de crescimento
das pessoas, que se vão construindo dia após
dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário
não deve ser uma câmara de tortura, mas
o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva
a praticar o bem possível. Um pequeno passo,
no meio de grandes limitações humanas,
pode ser mais agradável a Deus do que a vida
externamente correcta de quem transcorre os seus dias
sem enfrentar sérias dificuldades. A todos deve
chegar a consolação e o estímulo
do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente
em cada pessoa, para além dos seus defeitos e
das suas quedas.
45. Vemos assim que o compromisso evangelizador se move
por entre as limitações da linguagem e
das circunstâncias. Procura comunicar cada vez
melhor a verdade do Evangelho num contexto determinado,
sem renunciar à verdade, ao bem e à luz
que pode dar quando a perfeição não
é possível. Um coração missionário
está consciente destas limitações,
fazendo-se «fraco com os fracos (...) e tudo para
todos» (1 Cor 9, 22). Nunca se fecha, nunca se
refugia nas próprias seguranças, nunca
opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo
deve crescer na compreensão do Evangelho e no
discernimento das sendas do Espírito, e assim
não renuncia ao bem possível, ainda que
corra o risco de sujar-se com a lama da estrada.
5.
Uma mãe de coração aberto
46. A Igreja «em saída» é
uma Igreja com as portas abertas. Sair em direcção
aos outros para chegar às periferias humanas
não significa correr pelo mundo sem direcção
nem sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o
ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos
olhos e escutar, ou renunciar às urgências
para acompanhar quem ficou caído à beira
do caminho. Às vezes, é como o pai do
filho pródigo, que continua com as portas abertas
para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade.
47.
A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta
do Pai. Um dos sinais concretos desta abertura é
ter, por todo o lado, igrejas com as portas abertas.
Assim, se alguém quiser seguir uma moção
do Espírito e se aproximar à procura de
Deus, não esbarrará com a frieza duma
porta fechada. Mas há outras portas que também
não se devem fechar: todos podem participar de
alguma forma na vida eclesial, todos podem fazer parte
da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos
se deveriam fechar por uma razão qualquer. Isto
vale sobretudo quando se trata daquele sacramento que
é a «porta»: o Baptismo. A Eucaristia,
embora constitua a plenitude da vida sacramental, não
é um prémio para os perfeitos, mas um
remédio generoso e um alimento para os fracos.
Estas convicções têm também
consequências pastorais, que somos chamados a
considerar com prudência e audácia. Muitas
vezes agimos como controladores da graça e não
como facilitadores. Mas a Igreja não é
uma alfândega; é a casa paterna, onde há
lugar para todos com a sua vida fadigosa.
48.
Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário,
há-de chegar a todos, sem excepção.
Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê
o Evangelho, encontramos uma orientação
muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos
ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles
que muitas vezes são desprezados e esquecidos,
«àqueles que não têm com que
te retribuir» (Lc 14, 14). Não devem subsistir
dúvidas nem explicações que debilitem
esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, «os
pobres são os destinatários privilegiados
do Evangelho», e a evangelização
dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino
que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios
que existe um vínculo indissolúvel entre
a nossa fé e os pobres. Não os deixemos
jamais sozinhos!
49.
Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus
Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que
muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos
Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada
por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma
pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às
próprias seguranças. Não quero
uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba
presa num emaranhado de obsessões e procedimentos.
Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar
a nossa consciência é que haja tantos irmãos
nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação
da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé
que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida.
Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o
medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão
uma falsa protecção, nas normas que nos
transformam em juízes implacáveis, nos
hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto
lá fora há uma multidão faminta
e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós
mesmos de comer» (Mc 6, 37).
|
Capítulo
II
NA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
50. Antes de falar de algumas questões fundamentais
relativas à acção evangelizadora,
convém recordar brevemente o contexto em que
temos de viver e agir. É habitual hoje falar-se
dum «excesso de diagnóstico», que
nem sempre é acompanhado por propostas resolutivas
e realmente aplicáveis. Por outro lado, também
não nos seria de grande proveito um olhar puramente
sociológico, que tivesse a pretensão,
com a sua metodologia, de abraçar toda a realidade
de maneira supostamente neutra e asséptica.
O que quero oferecer situa-se mais na linha dum discernimento
evangélico. É o olhar do discípulo
missionário que «se nutre da luz e da
força do Espírito Santo».
51. Não é função do Papa
oferecer uma análise detalhada e completa da
realidade contemporânea, mas animo todas as
comunidades a «uma capacidade sempre vigilante
de estudar os sinais dos tempos». Trata-se duma
responsabilidade grave, pois algumas realidades hodiernas,
se não encontrarem boas soluções,
podem desencadear processos de desumanização
tais que será difícil depois retroceder.
É preciso esclarecer o que pode ser um fruto
do Reino e também o que atenta contra o projecto
de Deus. Isto implica não só reconhecer
e interpretar as moções do espírito
bom e do espírito mau, mas também –
e aqui está o ponto decisivo – escolher
as do espírito bom e rejeitar as do espírito
mau. Pressuponho as várias análises
que ofereceram os outros documentos do Magistério
universal, bem como as propostas pelos episcopados
regionais e nacionais. Nesta Exortação,
pretendo debruçar-me, brevemente e numa perspectiva
pastoral, apenas sobre alguns aspectos da realidade
que podem deter ou enfraquecer os dinamismos de renovação
missionária da Igreja, seja porque afectam
a vida e a dignidade do povo de Deus, seja porque
incidem sobre os sujeitos que mais directamente participam
nas instituições eclesiais e nas tarefas
de evangelização.
1.
Alguns desafios do mundo actual
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem
histórica, que podemos constatar nos progressos
que se verificam em vários campos. São
louváveis os sucessos que contribuem para o
bem-estar das pessoas, por exemplo, no âmbito
da saúde, da educação e da comunicação.
Todavia não podemos esquecer que a maior parte
dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia
a dia precariamente, com funestas consequências.
Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero
apoderam-se do coração de inúmeras
pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A
alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem
a falta de respeito e a violência, a desigualdade
social torna-se cada vez mais patente. É preciso
lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade.
Esta mudança de época foi causada pelos
enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes
e acumulados que se verificam no progresso científico,
nas inovações tecnológicas e
nas suas rápidas aplicações em
diversos âmbitos da natureza e da vida. Estamos
na era do conhecimento e da informação,
fonte de novas formas dum poder muitas vezes anónimo.
Não
a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento «não matar»
põe um limite claro para assegurar o valor
da vida humana, assim também hoje devemos dizer
«não a uma economia da exclusão
e da desigualdade social». Esta economia mata.
Não é possível que a morte por
enregelamento dum idoso sem abrigo não seja
notícia, enquanto o é a descida de dois
pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não
se pode tolerar mais o facto de se lançar comida
no lixo, quando há pessoas que passam fome.
Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra
no jogo da competitividade e da lei do mais forte,
onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência
desta situação, grandes massas da população
vêem-se excluídas e marginalizadas: sem
trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída.
O ser humano é considerado, em si mesmo, como
um bem de consumo que se pode usar e depois lançar
fora. Assim teve início a cultura do «descartável»,
que aliás chega a ser promovida. Já
não se trata simplesmente do fenómeno
de exploração e opressão, mas
duma realidade nova: com a exclusão, fere-se,
na própria raiz, a pertença à
sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está
nela, mas fora. Os excluídos não são
«explorados», mas resíduos, «sobras».
54.
Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da
«recaída favorável» que
pressupõem que todo o crescimento económico,
favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo
produzir maior equidade e inclusão social no
mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada
pelos factos, exprime uma confiança vaga e
ingénua na bondade daqueles que detêm
o poder económico e nos mecanismos sacralizados
do sistema económico reinante. Entretanto,
os excluídos continuam a esperar. Para se poder
apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo
entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se
uma globalização da indiferença.
Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de
nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já
não choramos à vista do drama dos outros,
nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo
fosse uma responsabilidade de outrem, que não
nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos,
a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece
algo que ainda não compramos, enquanto todas
estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos
parecem um mero espectáculo que não
nos incomoda de forma alguma.
Não
à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está
na relação estabelecida com o dinheiro,
porque aceitamos pacificamente o seu domínio
sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira
que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem,
há uma crise antropológica profunda:
a negação da primazia do ser humano.
Criámos novos ídolos. A adoração
do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou
uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro
e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objectivo
verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe
as finanças e a economia, põe a descoberto
os seus próprios desequilíbrios e sobretudo
a grave carência duma orientação
antropológica que reduz o ser humano apenas
a uma das suas necessidades: o consumo.
56.
Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente,
os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar
daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém
de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos
mercados e a especulação financeira.
Por isso, negam o direito de controle dos Estados,
encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se
uma nova tirania invisível, às vezes
virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável,
as suas leis e as suas regras. Além disso,
a dívida e os respectivos juros afastam os
países das possibilidades viáveis da
sua economia, e os cidadãos do seu real poder
de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção
ramificada e uma evasão fiscal egoísta,
que assumiram dimensões mundiais. A ambição
do poder e do ter não conhece limites. Neste
sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os
benefícios, qualquer realidade que seja frágil,
como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses
do mercado divinizado, transformados em regra absoluta.
Não
a um dinheiro que governa em vez de servir
57. Por detrás desta atitude, escondem-se a
rejeição da ética e a recusa
de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente
com um certo desprezo sarcástico; é
considerada contraproducente, demasiado humana, porque
relativiza o dinheiro e o poder. É sentida
como uma ameaça, porque condena a manipulação
e degradação da pessoa. Em última
instância, a ética leva a Deus que espera
uma resposta comprometida que está fora das
categorias do mercado. Para estas, se absolutizadas,
Deus é incontrolável, não manipulável
e até mesmo perigoso, na medida em que chama
o ser humano à sua plena realização
e à independência de qualquer tipo de
escravidão. A ética – uma ética
não ideologizada – permite criar um equilíbrio
e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo
os peritos financeiros e os governantes dos vários
países a considerarem as palavras dum sábio
da antiguidade: «Não fazer os pobres
participar dos seus próprios bens é
roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são
nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos».
58.
Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética
exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por
parte dos dirigentes políticos, a quem exorto
a enfrentar este desafio com determinação
e clarividência, sem esquecer naturalmente a
especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir,
e não governar! O Papa ama a todos, ricos e
pobres, mas tem a obrigação, em nome
de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os
pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos
a uma solidariedade desinteressada e a um regresso
da economia e das finanças a uma ética
propícia ao ser humano.
Não
à desigualdade social que gera violência
59. Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança.
Mas, enquanto não se eliminar a exclusão
e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários
povos será impossível desarreigar a
violência. Acusam-se da violência os pobres
e as populações mais pobres, mas, sem
igualdade de oportunidades, as várias formas
de agressão e de guerra encontrarão
um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde,
há-de provocar a explosão. Quando a
sociedade – local, nacional ou mundial –
abandona na periferia uma parte de si mesma, não
há programas políticos, nem forças
da ordem ou serviços secretos que possam garantir
indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece
apenas porque a desigualdade social provoca a reacção
violenta de quantos são excluídos do
sistema, mas porque o sistema social e económico
é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende
a difundir-se, assim também o mal consentido,
que é a injustiça, tende a expandir
a sua força nociva e a minar, silenciosamente,
as bases de qualquer sistema político e social,
por mais sólido que pareça. Se cada
acção tem consequências, um mal
embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém
um potencial de dissolução e de morte.
É o mal cristalizado nas estruturas sociais
injustas, a partir do qual não podemos esperar
um futuro melhor. Estamos longe do chamado «fim
da história», já que as condições
dum desenvolvimento sustentável e pacífico
ainda não estão adequadamente implantadas
e realizadas.
60.
Os mecanismos da economia actual promovem uma exacerbação
do consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado,
aliado à desigualdade social, é duplamente
daninho para o tecido social. Assim, mais cedo ou
mais tarde, a desigualdade social gera uma violência
que as corridas armamentistas não resolvem
nem poderão resolver jamais. Servem apenas
para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança,
como se hoje não se soubesse que as armas e
a repressão violenta, mais do que dar solução,
criam novos e piores conflitos. Alguns comprazem-se
simplesmente em culpar, dos próprios males,
os pobres e os países pobres, com generalizações
indevidas, e pretendem encontrar a solução
numa «educação» que os tranquilize
e transforme em seres domesticados e inofensivos.
Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos
vêem crescer este câncer social que é
a corrupção profundamente radicada em
muitos países – nos seus Governos, empresários
e instituições – seja qual for
a ideologia política dos governantes.
Alguns
desafios culturais
61. Evangelizamos também procurando enfrentar
os diferentes desafios que se nos podem apresentar.
Às vezes, estes manifestam-se em verdadeiros
ataques à liberdade religiosa ou em novas situações
de perseguição aos cristãos,
que, nalguns países, atingiram níveis
alarmantes de ódio e violência. Em muitos
lugares, trata-se mais de uma generalizada indiferença
relativista, relacionada com a desilusão e
a crise das ideologias que se verificou como reacção
a tudo o que pareça totalitário. Isto
não prejudica só a Igreja, mas a vida
social em geral. Reconhecemos que, numa cultura onde
cada um pretende ser portador duma verdade subjectiva
própria, torna-se difícil que os cidadãos
queiram inserir-se num projecto comum que vai além
dos benefícios e desejos pessoais.
62.
Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo
que é exterior, imediato, visível, rápido,
superficial, provisório. O real cede o lugar
à aparência. Em muitos países,
a globalização comportou uma acelerada
deterioração das raízes culturais
com a invasão de tendências pertencentes
a outras culturas, economicamente desenvolvidas mas
eticamente debilitadas. Assim se exprimiram, em distintos
Sínodos, os Bispos de vários continentes.
Há alguns anos, os Bispos da África,
por exemplo, retomando a Encíclica Sollicitudo
rei socialis, assinalaram que muitas vezes se quer
transformar os países africanos em meras «peças
de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigantesca.
Isto verifica-se com frequência também
no domínio dos meios de comunicação
social, os quais, sendo na sua maior parte geridos
por centros situados na parte norte do mundo, nem
sempre têm na devida conta as prioridades e
os problemas próprios desses países
e não respeitam a sua fisionomia cultural».
De igual modo, os Bispos da Ásia sublinharam
«as influências externas que estão
a penetrar nas culturas asiáticas. Vão
surgindo formas novas de comportamento resultantes
da orientação dos mass-media (…).
Em consequência disso, os aspectos negativos
dos mass-media e espectáculos estão
a ameaçar os valores tradicionais».
63.
A fé católica de muitos povos encontra-se
hoje perante o desafio da proliferação
de novos movimentos religiosos, alguns tendentes ao
fundamentalismo e outros que parecem propor uma espiritualidade
sem Deus. Isto, por um lado, é o resultado
duma reacção humana contra a sociedade
materialista, consumista e individualista e, por outro,
um aproveitamento das carências da população
que vive nas periferias e zonas pobres, sobrevive
no meio de grandes preocupações humanas
e procura soluções imediatas para as
suas necessidades. Estes movimentos religiosos, que
se caracterizam pela sua penetração
subtil, vêm colmar, dentro do individualismo
reinante, um vazio deixado pelo racionalismo secularista.
Além disso, é necessário reconhecer
que, se uma parte do nosso povo baptizado não
sente a sua pertença à Igreja, isso
deve-se também à existência de
estruturas com clima pouco acolhedor nalgumas das
nossas paróquias e comunidades, ou à
atitude burocrática com que se dá resposta
aos problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos
povos. Em muitas partes, predomina o aspecto administrativo
sobre o pastoral, bem como uma sacramentalização
sem outras formas de evangelização.
64.
O processo de secularização tende a
reduzir a fé e a Igreja ao âmbito privado
e íntimo. Além disso, com a negação
de toda a transcendência, produziu-se uma crescente
deformação ética, um enfraquecimento
do sentido do pecado pessoal e social e um aumento
progressivo do relativismo; e tudo isso provoca uma
desorientação generalizada, especialmente
na fase tão vulnerável às mudanças
da adolescência e juventude. Como justamente
observam os Bispos dos Estados Unidos da América,
enquanto a Igreja insiste na existência de normas
morais objectivas, válidas para todos, «há
aqueles que apresentam esta doutrina como injusta,
ou seja, contrária aos direitos humanos básicos.
Tais alegações brotam habitualmente
de uma forma de relativismo moral, que se une consistentemente
a uma confiança nos direitos absolutos dos
indivíduos. Nesta perspectiva, a Igreja é
sentida como se estivesse promovendo um convencionalismo
particular e interferisse com a liberdade individual».
Vivemos numa sociedade da informação
que nos satura indiscriminadamente de dados, todos
postos ao mesmo nível, e acaba por nos conduzir
a uma tremenda superficialidade no momento de enquadrar
as questões morais. Por conseguinte, torna-se
necessária uma educação que ensine
a pensar criticamente e ofereça um caminho
de amadurecimento nos valores.
65.
Apesar de toda a corrente secularista que invade a
sociedade, em muitos países – mesmo onde
o cristianismo está em minoria – a Igreja
Católica é uma instituição
credível perante a opinião pública,
fiável no que diz respeito ao âmbito
da solidariedade e preocupação pelos
mais indigentes. Em repetidas ocasiões, ela
serviu de medianeira na solução de problemas
que afectam a paz, a concórdia, o meio ambiente,
a defesa da vida, os direitos humanos e civis, etc.
E como é grande a contribuição
das escolas e das universidades católicas no
mundo inteiro! E é muito bom que assim seja.
Mas, quando levantamos outras questões que
suscitam menor acolhimento público, custa-nos
a demonstrar que o fazemos por fidelidade às
mesmas convicções sobre a dignidade
da pessoa humana e do bem comum.
66.
A família atravessa uma crise cultural profunda,
como todas as comunidades e vínculos sociais.
No caso da família, a fragilidade dos vínculos
reveste-se de especial gravidade, porque se trata
da célula básica da sociedade, o espaço
onde se aprende a conviver na diferença e a
pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé
aos seus filhos. O matrimónio tende a ser visto
como mera forma de gratificação afectiva,
que se pode constituir de qualquer maneira e modificar-se
de acordo com a sensibilidade de cada um. Mas a contribuição
indispensável do matrimónio à
sociedade supera o nível da afectividade e
o das necessidades ocasionais do casal. Como ensinam
os Bispos franceses, não provém «do
sentimento amoroso, efémero por definição,
mas da profundidade do compromisso assumido pelos
esposos que aceitam entrar numa união de vida
total».
67.
O individualismo pós-moderno e globalizado
favorece um estilo de vida que debilita o desenvolvimento
e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas
e distorce os vínculos familiares. A acção
pastoral deve mostrar ainda melhor que a relação
com o nosso Pai exige e incentiva uma comunhão
que cura, promove e fortalece os vínculos interpessoais.
Enquanto no mundo, especialmente nalguns países,
se reacendem várias formas de guerras e conflitos,
nós, cristãos, insistimos na proposta
de reconhecer o outro, de curar as feridas, de construir
pontes, de estreitar laços e de nos ajudarmos
«a carregar as cargas uns dos outros»
(Gal 6, 2). Além disso, vemos hoje surgir muitas
formas de agregação para a defesa de
direitos e a consecução de nobres objectivos.
Deste modo se manifesta uma sede de participação
de numerosos cidadãos, que querem ser construtores
do desenvolvimento social e cultural.
Desafios
da inculturação da fé
68. O substrato cristão dalguns povos –
sobretudo ocidentais – é uma realidade
viva. Aqui encontramos, especialmente nos mais necessitados,
uma reserva moral que guarda valores de autêntico
humanismo cristão. Um olhar de fé sobre
a realidade não pode deixar de reconhecer o
que semeia o Espírito Santo. Significaria não
ter confiança na sua acção livre
e generosa pensar que não existem autênticos
valores cristãos, onde uma grande parte da
população recebeu o Baptismo e exprime
de variadas maneiras a sua fé e solidariedade
fraterna. Aqui há que reconhecer muito mais
que «sementes do Verbo», visto que se
trata duma autêntica fé católica
com modalidades próprias de expressão
e de pertença à Igreja. Não convém
ignorar a enorme importância que tem uma cultura
marcada pela fé, porque, não obstante
os seus limites, esta cultura evangelizada tem, contra
os ataques do secularismo actual, muitos mais recursos
do que a mera soma dos crentes. Uma cultura popular
evangelizada contém valores de fé e
solidariedade que podem provocar o desenvolvimento
duma sociedade mais justa e crente, e possui uma sabedoria
peculiar que devemos saber reconhecer com olhar agradecido.
69.
Há uma necessidade imperiosa de evangelizar
as culturas para inculturar o Evangelho. Nos países
de tradição católica, tratar-se-á
de acompanhar, cuidar e fortalecer a riqueza que já
existe e, nos países de outras tradições
religiosas ou profundamente secularizados, há
que procurar novos processos de evangelização
da cultura, ainda que suponham projectos a longo prazo.
Entretanto não podemos ignorar que há
sempre uma chamada ao crescimento: toda a cultura
e todo o grupo social necessitam de purificação
e amadurecimento. No caso das culturas populares de
povos católicos, podemos reconhecer algumas
fragilidades que precisam ainda de ser curadas pelo
Evangelho: o machismo, o alcoolismo, a violência
doméstica, uma escassa participação
na Eucaristia, crenças fatalistas ou supersticiosas
que levam a recorrer à bruxaria, etc. Mas o
melhor ponto de partida para curar e ver-se livre
de tais fragilidades é precisamente a piedade
popular.
70.
Certo é também que, às vezes,
se dá maior realce a formas exteriores das
tradições de grupos concretos ou a supostas
revelações privadas, que se absolutizam,
do que ao impulso da piedade cristã. Há
certo cristianismo feito de devoções
– próprio duma vivência individual
e sentimental da fé – que, na realidade,
não corresponde a uma autêntica «piedade
popular». Alguns promovem estas expressões
sem se preocupar com a promoção social
e a formação dos fiéis, fazendo-o
nalguns casos para obter benefícios económicos
ou algum poder sobre os outros. Também não
podemos ignorar que, nas últimas décadas,
se produziu uma ruptura na transmissão geracional
da fé cristã no povo católico.
É inegável que muitos se sentem desiludidos
e deixam de se identificar com a tradição
católica, que cresceu o número de pais
que não baptizam os seus filhos nem os ensinam
a rezar, e que há um certo êxodo para
outras comunidades de fé. Algumas causas desta
ruptura são a falta de espaços de diálogo
familiar, a influência dos meios de comunicação,
o subjectivismo relativista, o consumismo desenfreado
que o mercado incentiva, a falta de cuidado pastoral
pelos mais pobres, a inexistência dum acolhimento
cordial nas nossas instituições, e a
dificuldade que sentimos em recriar a adesão
mística da fé num cenário religioso
pluralista.
Desafios
das culturas urbanas
71. A nova Jerusalém, a cidade santa (cf. Ap
21, 2-4), é a meta para onde peregrina toda
a humanidade. É interessante que a revelação
nos diga que a plenitude da humanidade e da história
se realiza numa cidade. Precisamos de identificar
a cidade a partir dum olhar contemplativo, isto é,
um olhar de fé que descubra Deus que habita
nas suas casas, nas suas ruas, nas suas praças.
A presença de Deus acompanha a busca sincera
que indivíduos e grupos efectuam para encontrar
apoio e sentido para a sua vida. Ele vive entre os
citadinos promovendo a solidariedade, a fraternidade,
o desejo de bem, de verdade, de justiça. Esta
presença não precisa de ser criada,
mas descoberta, desvendada. Deus não Se esconde
de quantos O buscam com coração sincero,
ainda que o façam tacteando, de maneira imprecisa
e incerta.
72.
Na cidade, o elemento religioso é mediado por
diferentes estilos de vida, por costumes ligados a
um sentido do tempo, do território e das relações
que difere do estilo das populações
rurais. Na vida quotidiana, muitas vezes os citadinos
lutam para sobreviver e, nesta luta, esconde-se um
sentido profundo da existência que habitualmente
comporta também um profundo sentido religioso.
Precisamos de o contemplar para conseguirmos um diálogo
parecido com o que o Senhor teve com a Samaritana,
junto do poço onde ela procurava saciar a sua
sede (cf. Jo 4, 7-26).
73.
Novas culturas continuam a formar-se nestas enormes
geografias humanas onde o cristão já
não costuma ser promotor ou gerador de sentido,
mas recebe delas outras linguagens, símbolos,
mensagens e paradigmas que oferecem novas orientações
de vida, muitas vezes em contraste com o Evangelho
de Jesus. Uma cultura inédita palpita e está
em elaboração na cidade. O Sínodo
constatou que as transformações destas
grandes áreas e a cultura que exprimem são,
hoje, um lugar privilegiado da nova evangelização.
Isto requer imaginar espaços de oração
e de comunhão com características inovadoras,
mais atraentes e significativas para as populações
urbanas. Os ambientes rurais, devido à influência
dos mass-media, não estão imunes destas
transformações culturais que também
operam mudanças significativas nas suas formas
de vida.
74.
Torna-se necessária uma evangelização
que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus,
com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores
fundamentais. É necessário chegar aonde
são concebidas as novas histórias e
paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus
os núcleos mais profundos da alma das cidades.
Não se deve esquecer que a cidade é
um âmbito multicultural. Nas grandes cidades,
pode observar-se uma trama em que grupos de pessoas
compartilham as mesmas formas de sonhar a vida e ilusões
semelhantes, constituindo-se em novos sectores humanos,
em territórios culturais, em cidades invisíveis.
Na realidade, convivem variadas formas culturais,
mas exercem muitas vezes práticas de segregação
e violência. A Igreja é chamada a ser
servidora dum diálogo difícil. Enquanto
há citadinos que conseguem os meios adequados
para o desenvolvimento da vida pessoal e familiar,
muitíssimos são também os «não-citadinos»,
os «meio-citadinos» ou os «resíduos
urbanos». A cidade dá origem a uma espécie
de ambivalência permanente, porque, ao mesmo
tempo que oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades,
interpõe também numerosas dificuldades
ao pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta contradição
provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes
do mundo, as cidades são cenário de
protestos em massa, onde milhares de habitantes reclamam
liberdade, participação, justiça
e várias reivindicações que,
se não forem adequadamente interpretadas, nem
pela força poderão ser silenciadas.
75.
Não podemos ignorar que, nas cidades, facilmente
se desenvolve o tráfico de drogas e de pessoas,
o abuso e a exploração de menores, o
abandono de idosos e doentes, várias formas
de corrupção e crime. Ao mesmo tempo,
o que poderia ser um precioso espaço de encontro
e solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar
de retraimento e desconfiança mútua.
As casas e os bairros constroem-se mais para isolar
e proteger do que para unir e integrar. A proclamação
do Evangelho será uma base para restabelecer
a dignidade da vida humana nestes contextos, porque
Jesus quer derramar nas cidades vida em abundância
(cf. Jo 10, 10). O sentido unitário e completo
da vida humana proposto pelo Evangelho é o
melhor remédio para os males urbanos, embora
devamos reparar que um programa e um estilo uniformes
e rígidos de evangelização não
são adequados para esta realidade. Mas viver
a fundo a realidade humana e inserir-se no coração
dos desafios como fermento de testemunho, em qualquer
cultura, em qualquer cidade, melhora o cristão
e fecunda a cidade.
2.
Tentações dos agentes pastorais
76. Sinto uma enorme gratidão pela tarefa de
quantos trabalham na Igreja. Não quero agora
deter-me na exposição das actividades
dos vários agentes pastorais, desde os Bispos
até ao mais simples e ignorado dos serviços
eclesiais. Prefiro reflectir sobre os desafios que
todos eles enfrentam no meio da cultura globalizada
actual. Mas, antes de tudo e como dever de justiça,
tenho a dizer que é enorme a contribuição
da Igreja no mundo actual. A nossa tristeza e vergonha
pelos pecados de alguns membros da Igreja, e pelos
próprios, não devem fazer esquecer os
inúmeros cristãos que dão a vida
por amor: ajudam tantas pessoas seja a curar-se seja
a morrer em paz em hospitais precários, acompanham
as pessoas que caíram escravas de diversos
vícios nos lugares mais pobres da terra, prodigalizam-se
na educação de crianças e jovens,
cuidam de idosos abandonados por todos, procuram comunicar
valores em ambientes hostis, e dedicam-se de muitas
outras maneiras que mostram o imenso amor à
humanidade inspirado por Deus feito homem. Agradeço
o belo exemplo que me dão tantos cristãos
que oferecem a sua vida e o seu tempo com alegria.
Este testemunho faz-me muito bem e me apoia na minha
aspiração pessoal de superar o egoísmo
para uma dedicação maior.
77.
Apesar disso, como filhos desta época, todos
estamos de algum modo sob o influxo da cultura globalizada
actual, que, sem deixar de apresentar valores e novas
possibilidades, pode também limitar-nos, condicionar-nos
e até mesmo combalir-nos. Reconheço
que precisamos de criar espaços apropriados
para motivar e sanar os agentes pastorais, «lugares
onde regenerar a sua fé em Jesus crucificado
e ressuscitado, onde compartilhar as próprias
questões mais profundas e as preocupações
quotidianas, onde discernir em profundidade e com
critérios evangélicos sobre a própria
existência e experiência, com o objectivo
de orientar para o bem e a beleza as próprias
opções individuais e sociais».
Ao mesmo tempo, quero chamar a atenção
para algumas tentações que afectam,
particularmente nos nossos dias, os agentes pastorais.
Sim
ao desafio duma espiritualidade missionária
78. Hoje nota-se em muitos agentes pastorais, mesmo
pessoas consagradas, uma preocupação
exacerbada pelos espaços pessoais de autonomia
e relaxamento, que leva a viver os próprios
deveres como mero apêndice da vida, como se
não fizessem parte da própria identidade.
Ao mesmo tempo, a vida espiritual confunde-se com
alguns momentos religiosos que proporcionam algum
alívio, mas não alimentam o encontro
com os outros, o compromisso no mundo, a paixão
pela evangelização. Assim, é
possível notar em muitos agentes evangelizadores
– não obstante rezem – uma acentuação
do individualismo, uma crise de identidade e um declínio
do fervor. São três males que se alimentam
entre si.
79.
A cultura mediática e alguns ambientes intelectuais
transmitem, às vezes, uma acentuada desconfiança
quanto à mensagem da Igreja, e um certo desencanto.
Em consequência disso, embora rezando, muitos
agentes pastorais desenvolvem uma espécie de
complexo de inferioridade que os leva a relativizar
ou esconder a sua identidade cristã e as suas
convicções. Gera-se então um
círculo vicioso, porque assim não se
sentem felizes com o que são nem com o que
fazem, não se sentem identificados com a missão
evangelizadora, e isto debilita a entrega. Acabam
assim por sufocar a alegria da missão numa
espécie de obsessão por serem como todos
os outros e terem o que possuem os demais. Deste modo,
a tarefa da evangelização torna-se forçada
e dedica-se-lhe pouco esforço e um tempo muito
limitado.
80.
Nos agentes pastorais, independentemente do estilo
espiritual ou da linha de pensamento que possam ter,
desenvolve-se um relativismo ainda mais perigoso que
o doutrinal. Tem a ver com as opções
mais profundas e sinceras que determinam uma forma
de vida concreta. Este relativismo prático
é agir como se Deus não existisse, decidir
como se os pobres não existissem, sonhar como
se os outros não existissem, trabalhar como
se aqueles que não receberam o anúncio
não existissem. É impressionante como
até aqueles que aparentemente dispõem
de sólidas convicções doutrinais
e espirituais acabam, muitas vezes, por cair num estilo
de vida que os leva a agarrarem-se a seguranças
económicas ou a espaços de poder e de
glória humana que se buscam por qualquer meio,
em vez de dar a vida pelos outros na missão.
Não nos deixemos roubar o entusiasmo missionário!
Não
à acédia egoísta
81. Quando mais precisamos dum dinamismo missionário
que leve sal e luz ao mundo, muitos leigos temem que
alguém os convide a realizar alguma tarefa
apostólica e procuram fugir de qualquer compromisso
que lhes possa roubar o tempo livre. Hoje, por exemplo,
tornou-se muito difícil nas paróquias
conseguir catequistas que estejam preparados e perseverem
no seu dever por vários anos. Mas algo parecido
acontece com os sacerdotes que se preocupam obsessivamente
com o seu tempo pessoal. Isto, muitas vezes, fica-se
a dever a que as pessoas sentem imperiosamente necessidade
de preservar os seus espaços de autonomia,
como se uma tarefa de evangelização
fosse um veneno perigoso e não uma resposta
alegre ao amor de Deus que nos convoca para a missão
e nos torna completos e fecundos. Alguns resistem
a provar até ao fundo o gosto da missão
e acabam mergulhados numa acédia paralisadora.
82.
O problema não está sempre no excesso
de actividades, mas sobretudo nas actividades mal
vividas, sem as motivações adequadas,
sem uma espiritualidade que impregne a acção
e a torne desejável. Daí que as obrigações
cansem mais do que é razoável, e às
vezes façam adoecer. Não se trata duma
fadiga feliz, mas tensa, gravosa, desagradável
e, em definitivo, não assumida. Esta acédia
pastoral pode ter origens diversas: alguns caem nela
por sustentarem projectos irrealizáveis e não
viverem de bom grado o que poderiam razoavelmente
fazer; outros, por não aceitarem a custosa
evolução dos processos e querem que
tudo caia do Céu; outros, por se apegarem a
alguns projectos ou a sonhos de sucesso cultivados
pela sua vaidade; outros, por terem perdido o contacto
real com o povo, numa despersonalização
da pastoral que leva a prestar mais atenção
à organização do que às
pessoas, acabando assim por se entusiasmarem mais
com a «tabela de marcha» do que com a
própria marcha; outros ainda caem na acédia,
por não saberem esperar e quererem dominar
o ritmo da vida. A ânsia hodierna de chegar
a resultados imediatos faz com que os agentes pastorais
não tolerem facilmente tudo o que signifique
alguma contradição, um aparente fracasso,
uma crítica, uma cruz.
83.
Assim se gera a maior ameaça, que «é
o pragmatismo cinzento da vida quotidiana da Igreja,
no qual aparentemente tudo procede dentro da normalidade,
mas na realidade a fé vai-se deteriorando e
degenerando na mesquinhez». Desenvolve-se a
psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma
os cristãos em múmias de museu. Desiludidos
com a realidade, com a Igreja ou consigo mesmos, vivem
constantemente tentados a apegar-se a uma tristeza
melosa, sem esperança, que se apodera do coração
como «o mais precioso elixir do demónio».
Chamados para iluminar e comunicar vida, acabam por
se deixar cativar por coisas que só geram escuridão
e cansaço interior e corroem o dinamismo apostólico.
Por tudo isto, permiti que insista: Não deixemos
que nos roubem a alegria da evangelização!
Não
ao pessimismo estéril
84. A alegria do Evangelho é tal que nada e
ninguém no-la poderá tirar (cf. Jo 16,
22). Os males do nosso mundo – e os da Igreja
– não deveriam servir como desculpa para
reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los
como desafios para crescer. Além disso, o olhar
crente é capaz de reconhecer a luz que o Espírito
Santo sempre irradia no meio da escuridão,
sem esquecer que, «onde abundou o pecado, superabundou
a graça» (Rm 5, 20). A nossa fé
é desafiada a entrever o vinho em que a água
pode ser transformada, e a descobrir o trigo que cresce
no meio do joio. Cinquenta anos depois do Concílio
Vaticano II, apesar de nos entristecerem as misérias
do nosso tempo e estarmos longe de optimismos ingénuos,
um maior realismo não deve significar menor
confiança no Espírito nem menor generosidade.
Neste sentido, podemos voltar a ouvir as palavras
pronunciadas pelo Beato João XXIII naquele
memorável 11 de Outubro de 1962: «Chegam-nos
aos ouvidos insinuações de almas, ardorosas
sem dúvida no zelo, mas não dotadas
de grande sentido de discrição e moderação.
Nos tempos actuais, não vêem senão
prevaricações e ruínas. [...]
Mas a nós parece-nos que devemos discordar
desses profetas de desgraças, que anunciam
acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse
iminente o fim do mundo. Na ordem presente das coisas,
a misericordiosa Providência está-nos
levantando para uma ordem de relações
humanas que, por obra dos homens e a maior parte das
vezes para além do que eles esperam, se encaminham
para o cumprimento dos seus desígnios superiores
e inesperados, e tudo, mesmo as adversidades humanas,
converge para o bem da Igreja».
85.
Uma das tentações mais sérias
que sufoca o fervor e a ousadia é a sensação
de derrota que nos transforma em pessimistas lamurientos
e desencantados com cara de vinagre. Ninguém
pode empreender uma luta, se de antemão não
está plenamente confiado no triunfo. Quem começa
sem confiança, perdeu de antemão metade
da batalha e enterra os seus talentos. Embora com
a dolorosa consciência das próprias fraquezas,
há que seguir em frente, sem se dar por vencido,
e recordar o que disse o Senhor a São Paulo:
«Basta-te a minha graça, porque a força
manifesta-se na fraqueza» (2 Cor 12, 9). O triunfo
cristão é sempre uma cruz, mas cruz
que é, simultaneamente, estandarte de vitória,
que se empunha com ternura batalhadora contra as investidas
do mal. O mau espírito da derrota é
irmão da tentação de separar
prematuramente o trigo do joio, resultado de uma desconfiança
ansiosa e egocêntrica.
86.
É verdade que, nalguns lugares, se produziu
uma «desertificação» espiritual,
fruto do projecto de sociedades que querem construir
sem Deus ou que destroem as suas raízes cristãs.
Lá, «o mundo cristão está
a tornar-se estéril e se esgota como uma terra
excessivamente desfrutada que se transforma em poeira».
Noutros países, a resistência violenta
ao cristianismo obriga os cristãos a viverem
a sua fé às escondidas no país
que amam. Esta é outra forma muito triste de
deserto. E a própria família ou o lugar
de trabalho podem ser também o tal ambiente
árido, onde há que conservar a fé
e procurar irradiá-la. Mas «é
precisamente a partir da experiência deste deserto,
deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de
crer, a sua importância vital para nós,
homens e mulheres. No deserto, é possível
redescobrir o valor daquilo que é essencial
para a vida; assim sendo, no mundo de hoje, há
inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido
último da vida, ainda que muitas vezes expressos
implícita ou negativamente. E, no deserto,
existe sobretudo a necessidade de pessoas de fé
que, com suas próprias vidas, indiquem o caminho
para a Terra Prometida, mantendo assim viva a esperança».
Em todo o caso, lá somos chamados a ser pessoas-cântaro
para dar de beber aos outros. Às vezes o cântaro
transforma-se numa pesada cruz, mas foi precisamente
na Cruz que o Senhor, trespassado, Se nos entregou
como fonte de água viva. Não deixemos
que nos roubem a esperança!
Sim
às relações novas geradas por
Jesus Cristo
87. Neste tempo em que as redes e demais instrumentos
da comunicação humana alcançaram
progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir
e transmitir a «mística» de viver
juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço,
apoiar-nos, participar nesta maré um pouco
caótica que pode transformar-se numa verdadeira
experiência de fraternidade, numa caravana solidária,
numa peregrinação sagrada. Assim, as
maiores possibilidades de comunicação
traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro
e solidariedade entre todos. Como seria bom, salutar,
libertador, esperançoso, se pudéssemos
trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir
aos outros faz bem. Fechar-se em si mesmo é
provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade
perderá com cada opção egoísta
que fizermos.
88.
O ideal cristão convidará sempre a superar
a suspeita, a desconfiança permanente, o medo
de sermos invadidos, as atitudes defensivas que nos
impõe o mundo actual. Muitos tentam escapar
dos outros fechando-se na sua privacidade confortável
ou no círculo reduzido dos mais íntimos,
e renunciam ao realismo da dimensão social
do Evangelho. Porque, assim como alguns quiseram um
Cristo puramente espiritual, sem carne nem cruz, também
se pretendem relações interpessoais
mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs
e sistemas que se podem acender e apagar à
vontade. Entretanto o Evangelho convida-nos sempre
a abraçar o risco do encontro com o rosto do
outro, com a sua presença física que
interpela, com o seu sofrimentos e suas reivindicações,
com a sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado.
A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne
é inseparável do dom de si mesmo, da
pertença à comunidade, do serviço,
da reconciliação com a carne dos outros.
Na sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos
à revolução da ternura.
89.
O isolamento, que é uma concretização
do imanentismo, pode exprimir-se numa falsa autonomia
que exclui Deus, mas pode também encontrar
na religião uma forma de consumismo espiritual
à medida do próprio individualismo doentio.
O regresso ao sagrado e a busca espiritual, que caracterizam
a nossa época. são fenómenos
ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio
que hoje se nos apresenta é responder adequadamente
à sede de Deus de muitas pessoas, para que
não tenham de ir apagá-la com propostas
alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem
compromisso com o outro. Se não encontram na
Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha
de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à
comunhão solidária e à fecundidade
missionária, acabarão enganados por
propostas que não humanizam nem dão
glória a Deus.
90.
As formas próprias da religiosidade popular
são encarnadas, porque brotaram da encarnação
da fé cristã numa cultura popular. Por
isso mesmo, incluem uma relação pessoal,
não com energias harmonizadoras, mas com Deus,
Jesus Cristo, Maria, um Santo. Têm carne, têm
rostos. Estão aptas para alimentar potencialidades
relacionais e não tanto fugas individualistas.
Noutros sectores da nossa sociedade, cresce o apreço
por várias formas de «espiritualidade
do bem-estar» sem comunidade, por uma «teologia
da prosperidade» sem compromissos fraternos
ou por experiências subjectivas sem rostos,
que se reduzem a uma busca interior imanentista.
91.
Um desafio importante é mostrar que a solução
nunca consistirá em escapar de uma relação
pessoal e comprometida com Deus, que ao mesmo tempo
nos comprometa com os outros. Isto é o que
se verifica hoje quando os crentes procuram esconder-se
e livrar-se dos outros, e quando subtilmente escapam
de um lugar para outro ou de uma tarefa para outra,
sem criar vínculos profundos e estáveis:
«A imaginação e mudança
de lugares enganou a muitos». É um remédio
falso que faz adoecer o coração e, às
vezes, o corpo. Faz falta ajudar a reconhecer que
o único caminho é aprender a encontrar
os demais com a atitude adequada, que é valorizá-los
e aceitá-los como companheiros de estrada,
sem resistências interiores. Melhor ainda, trata-se
de aprender a descobrir Jesus no rosto dos outros,
na sua voz, nas suas reivindicações;
e aprender também a sofrer, num abraço
com Jesus crucificado, quando recebemos agressões
injustas ou ingratidões, sem nos cansarmos
jamais de optar pela fraternidade.
92.
Nisto está a verdadeira cura: de facto, o modo
de nos relacionarmos com os outros que, em vez de
nos adoecer, nos cura é uma fraternidade mística,
contemplativa, que sabe ver a grandeza sagrada do
próximo, que sabe descobrir Deus em cada ser
humano, que sabe tolerar as moléstias da convivência
agarrando-se ao amor de Deus, que sabe abrir o coração
ao amor divino para procurar a felicidade dos outros
como a procura o seu Pai bom. Precisamente nesta época,
inclusive onde são um «pequenino rebanho»
(Lc 12, 32), os discípulos do Senhor são
chamados a viver como comunidade que seja sal da terra
e luz do mundo (cf. Mt 5, 13-16). São chamados
a testemunhar, de forma sempre nova, uma pertença
evangelizadora. Não deixemos que nos roubem
a comunidade!
Não
ao mundanismo espiritual
93. O mundanismo espiritual, que se esconde por detrás
de aparências de religiosidade e até
mesmo de amor à Igreja, é buscar, em
vez da glória do Senhor, a glória humana
e o bem-estar pessoal. É aquilo que o Senhor
censurava aos fariseus: «Como vos é possível
acreditar, se andais à procura da glória
uns dos outros, e não procurais a glória
que vem do Deus único?» (Jo 5, 44). É
uma maneira subtil de procurar «os próprios
interesses, não os interesses de Jesus Cristo»
(Fl 2, 21). Reveste-se de muitas formas, de acordo
com o tipo de pessoas e situações em
que penetra. Por cultivar o cuidado da aparência,
nem sempre suscita pecados de domínio público,
pelo que externamente tudo parece correcto. Mas, se
invadisse a Igreja, «seria infinitamente mais
desastroso do que qualquer outro mundanismo meramente
moral».
94.
Este mundanismo pode alimentar-se sobretudo de duas
maneiras profundamente relacionadas. Uma delas é
o fascínio do gnosticismo, uma fé fechada
no subjectivismo, onde apenas interessa uma determinada
experiência ou uma série de raciocínios
e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam,
mas, em última instância, a pessoa fica
enclausurada na imanência da sua própria
razão ou dos seus sentimentos. A outra maneira
é o neopelagianismo auto-referencial e prometeuco
de quem, no fundo, só confia nas suas próprias
forças e se sente superior aos outros por cumprir
determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel
a um certo estilo católico próprio do
passado. É uma suposta segurança doutrinal
ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista
e autoritário, onde, em vez de evangelizar,
se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar
o acesso à graça, consomem-se as energias
a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem
os outros interessam verdadeiramente. São manifestações
dum imanentismo antropocêntrico. Não
é possível imaginar que, destas formas
desvirtuadas do cristianismo, possa brotar um autêntico
dinamismo evangelizador.
95.
Este obscuro mundanismo manifesta-se em muitas atitudes,
aparentemente opostas mas com a mesma pretensão
de «dominar o espaço da Igreja».
Nalguns, há um cuidado exibicionista da liturgia,
da doutrina e do prestígio da Igreja, mas não
se preocupam que o Evangelho adquira uma real inserção
no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas
da história. Assim, a vida da Igreja transforma-se
numa peça de museu ou numa possessão
de poucos. Noutros, o próprio mundanismo espiritual
esconde-se por detrás do fascínio de
poder mostrar conquistas sociais e políticas,
ou numa vanglória ligada à gestão
de assuntos práticos, ou numa atracção
pelas dinâmicas de auto-estima e de realização
autoreferencial. Também se pode traduzir em
várias formas de se apresentar a si mesmo envolvido
numa densa vida social cheia de viagens, reuniões,
jantares, recepções. Ou então
desdobra-se num funcionalismo empresarial, carregado
de estatísticas, planificações
e avaliações, onde o principal beneficiário
não é o povo de Deus mas a Igreja como
organização. Em qualquer um dos casos,
não traz o selo de Cristo encarnado, crucificado
e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não
sai realmente à procura dos que andam perdidos
nem das imensas multidões sedentas de Cristo.
Já não há ardor evangélico,
mas o gozo espúrio duma autocomplacência
egocêntrica.
96.
Neste contexto, alimenta-se a vanglória de
quantos se contentam com ter algum poder e preferem
ser generais de exércitos derrotados antes
que simples soldados dum batalhão que continua
a lutar. Quantas vezes sonhamos planos apostólicos
expansionistas, meticulosos e bem traçados,
típicos de generais derrotados! Assim negamos
a nossa história de Igreja, que é gloriosa
por ser história de sacrifícios, de
esperança, de luta diária, de vida gasta
no serviço, de constância no trabalho
fadigoso, porque todo o trabalho é «suor
do nosso rosto». Em vez disso, entretemo-nos
vaidosos a falar sobre «o que se deveria fazer»
– o pecado do «deveriaqueísmo»
– como mestres espirituais e peritos de pastoral
que dão instruções ficando de
fora. Cultivamos a nossa imaginação
sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa realidade
do nosso povo fiel.
97.
Quem caiu neste mundanismo olha de cima e de longe,
rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica
quem o questiona, faz ressaltar constantemente os
erros alheios e vive obcecado pela aparência.
Circunscreveu os pontos de referência do coração
ao horizonte fechado da sua imanência e dos
seus interesses e, consequentemente, não aprende
com os seus pecados nem está verdadeiramente
aberto ao perdão. É uma tremenda corrupção,
com aparências de bem. Devemos evitá-lo,
pondo a Igreja em movimento de saída de si
mesma, de missão centrada em Jesus Cristo,
de entrega aos pobres. Deus nos livre de uma Igreja
mundana sob vestes espirituais ou pastorais! Este
mundanismo asfixiante cura-se saboreando o ar puro
do Espírito Santo, que nos liberta de estarmos
centrados em nós mesmos, escondidos numa aparência
religiosa vazia de Deus. Não deixemos que nos
roubem o Evangelho!
Não
à guerra entre nós
98. Dentro do povo de Deus e nas diferentes comunidades,
quantas guerras! No bairro, no local de trabalho,
quantas guerras por invejas e ciúmes, mesmo
entre cristãos! O mundanismo espiritual leva
alguns cristãos a estar em guerra com outros
cristãos que se interpõem na sua busca
pelo poder, prestígio, prazer ou segurança
económica. Além disso, alguns deixam
de viver uma adesão cordial à Igreja
por alimentar um espírito de contenda. Mais
do que pertencer à Igreja inteira, com a sua
rica diversidade, pertencem a este ou àquele
grupo que se sente diferente ou especial.
99.
O mundo está dilacerado pelas guerras e a violência,
ou ferido por um generalizado individualismo que divide
os seres humanos e põe-nos uns contra os outros
visando o próprio bem-estar. Em vários
países, ressurgem conflitos e antigas divisões
que se pensavam em parte superados. Aos cristãos
de todas as comunidades do mundo, quero pedir-lhes
de modo especial um testemunho de comunhão
fraterna, que se torne fascinante e resplandecente.
Que todos possam admirar como vos preocupais uns pelos
outros, como mutuamente vos encorajais animais e ajudais:
«Por isto é que todos conhecerão
que sois meus discípulos: se vos amardes uns
aos outros» (Jo 13, 35). Foi o que Jesus, com
uma intensa oração, Jesus pediu ao Pai:
«Que todos sejam um só (…) em nós
[para que] o mundo creia» (Jo 17, 21). Cuidado
com a tentação da inveja! Estamos no
mesmo barco e vamos para o mesmo porto! Peçamos
a graça de nos alegrarmos com os frutos alheios,
que são de todos.
100.
Para quantos estão feridos por antigas divisões,
resulta difícil aceitar que os exortemos ao
perdão e à reconciliação,
porque pensam que ignoramos a sua dor ou pretendemos
fazer-lhes perder a memória e os ideais. Mas,
se virem o testemunho de comunidades autenticamente
fraternas e reconciliadas, isso é sempre uma
luz que atrai. Por isso me dói muito comprovar
como nalgumas comunidades cristãs, e mesmo
entre pessoas consagradas, se dá espaço
a várias formas de ódio, divisão,
calúnia, difamação, vingança,
ciúme, a desejos de impor as próprias
ideias a todo o custo, e até perseguições
que parecem uma implacável caça às
bruxas. Quem queremos evangelizar com estes comportamentos?
101.
Peçamos ao Senhor que nos faça compreender
a lei do amor. Que bom é termos esta lei! Como
nos faz bem, apesar de tudo amar-nos uns aos outros!
Sim, apesar de tudo! A cada um de nós é
dirigida a exortação de Paulo: «Não
te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem»
(Rm 12, 21). E ainda: «Não nos cansemos
de fazer o bem» (Gal 6, 9). Todos nós
provamos simpatias e antipatias, e talvez neste momento
estejamos chateados com alguém. Pelo menos
digamos ao Senhor: «Senhor, estou chateado com
este, com aquela. Peço-Vos por ele e por ela».
Rezar pela pessoa com quem estamos irritados é
um belo passo rumo ao amor, e é um acto de
evangelização. Façamo-lo hoje
mesmo. Não deixemos que nos roubem o ideal
do amor fraterno!
Outros
desafios eclesiais
102. A imensa maioria do povo de Deus é constituída
por leigos. Ao seu serviço, está uma
minoria: os ministros ordenados. Cresceu a consciência
da identidade e da missão dos leigos na Igreja.
Embora não suficiente, pode-se contar com um
numeroso laicado, dotado de um arreigado sentido de
comunidade e uma grande fidelidade ao compromisso
da caridade, da catequese, da celebração
da fé. Mas, a tomada de consciência desta
responsabilidade laical que nasce do Baptismo e da
Confirmação não se manifesta
de igual modo em toda a parte; nalguns casos, porque
não se formaram para assumir responsabilidades
importantes, noutros por não encontrar espaço
nas suas Igrejas particulares para poderem exprimir-se
e agir por causa dum excessivo clericalismo que os
mantém à margem das decisões.
Apesar de se notar uma maior participação
de muitos nos ministérios laicais, este compromisso
não se reflecte na penetração
dos valores cristãos no mundo social, político
e económico; limita-se muitas vezes às
tarefas no seio da Igreja, sem um empenhamento real
pela aplicação do Evangelho na transformação
da sociedade. A formação dos leigos
e a evangelização das categorias profissionais
e intelectuais constituem um importante desafio pastoral.
103.
A Igreja reconhece a indispensável contribuição
da mulher na sociedade, com uma sensibilidade, uma
intuição e certas capacidades peculiares,
que habitualmente são mais próprias
das mulheres que dos homens. Por exemplo, a especial
solicitude feminina pelos outros, que se exprime de
modo particular, mas não exclusivamente, na
maternidade. Vejo, com prazer, como muitas mulheres
partilham responsabilidades pastorais juntamente com
os sacerdotes, contribuem para o acompanhamento de
pessoas, famílias ou grupos e prestam novas
contribuições para a reflexão
teológica. Mas ainda é preciso ampliar
os espaços para uma presença feminina
mais incisiva na Igreja. Porque «o génio
feminino é necessário em todas as expressões
da vida social; por isso deve ser garantida a presença
das mulheres também no âmbito do trabalho»
e nos vários lugares onde se tomam as decisões
importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.
104.
As reivindicações dos legítimos
direitos das mulheres, a partir da firme convicção
de que homens e mulheres têm a mesma dignidade,
colocam à Igreja questões profundas
que a desafiam e não se podem iludir superficialmente.
O sacerdócio reservado aos homens, como sinal
de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é
uma questão que não se põe em
discussão, mas pode tornar-se particularmente
controversa se se identifica demasiado a potestade
sacramental com o poder. Não se esqueça
que, quando falamos da potestade sacerdotal, «estamos
na esfera da função e não na
da dignidade e da santidade». O sacerdócio
ministerial é um dos meios que Jesus utiliza
ao serviço do seu povo, mas a grande dignidade
vem do Baptismo, que é acessível a todos.
A configuração do sacerdote com Cristo
Cabeça – isto é, como fonte principal
da graça – não comporta uma exaltação
que o coloque por cima dos demais. Na Igreja, as funções
«não dão justificação
à superioridade de uns sobre os outros».
Com efeito, uma mulher, Maria, é mais importante
do que os Bispos. Mesmo quando a função
do sacerdócio ministerial é considerada
«hierárquica», há que ter
bem presente que «se ordena integralmente à
santidade dos membros do corpo místico de Cristo».
A sua pedra de fecho e o seu fulcro não são
o poder entendido como domínio, mas a potestade
de administrar o sacramento da Eucaristia; daqui deriva
a sua autoridade, que é sempre um serviço
ao povo. Aqui está um grande desafio para os
Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar
a reconhecer melhor o que isto implica no que se refere
ao possível lugar das mulheres onde se tomam
decisões importantes, nos diferentes âmbitos
da Igreja.
105.
A pastoral juvenil, tal como estávamos habituados
a desenvolvê-la, sofreu o impacto das mudanças
sociais. Nas estruturas ordinárias, os jovens
habitualmente não encontram respostas para
as suas preocupações, necessidades,
problemas e feridas. A nós, adultos, custa-nos
ouvi-los com paciência, compreender as suas
preocupações ou as suas reivindicações,
e aprender a falar-lhes na linguagem que eles entendem.
Pela mesma razão, as propostas educacionais
não produzem os frutos esperados. A proliferação
e o crescimento de associações e movimentos
predominantemente juvenis podem ser interpretados
como uma acção do Espírito que
abre caminhos novos em sintonia com as suas expectativas
e a busca de espiritualidade profunda e dum sentido
mais concreto de pertença. Todavia é
necessário tornar mais estável a participação
destas agregações no âmbito da
pastoral de conjunto da Igreja.
106.
Embora nem sempre seja fácil abordar os jovens,
houve crescimento em dois aspectos: a consciência
de que toda a comunidade os evangeliza e educa, e
a urgência de que eles tenham um protagonismo
maior. Deve-se reconhecer que, no actual contexto
de crise do compromisso e dos laços comunitários,
são muitos os jovens que se solidarizam contra
os males do mundo, aderindo a várias formas
de militância e voluntariado. Alguns participam
na vida da Igreja, integram grupos de serviço
e diferentes iniciativas missionárias nas suas
próprias dioceses ou noutros lugares. Como
é bom que os jovens sejam «caminheiros
da fé», felizes por levarem Jesus Cristo
a cada esquina, a cada praça, a cada canto
da terra!
107.
Em muitos lugares, há escassez de vocações
ao sacerdócio e à vida consagrada. Frequentemente
isso fica-se a dever à falta de ardor apostólico
contagioso nas comunidades, pelo que estas não
entusiasmam nem fascinam. Onde há vida, fervor,
paixão de levar Cristo aos outros, surgem vocações
genuínas. Mesmo em paróquias onde os
sacerdotes não são muito disponíveis
nem alegres, é a vida fraterna e fervorosa
da comunidade que desperta o desejo de se consagrar
inteiramente a Deus e à evangelização,
especialmente se essa comunidade vivente reza insistentemente
pelas vocações e tem a coragem de propor
aos seus jovens um caminho de especial consagração.
Por outro lado, apesar da escassez vocacional, hoje
temos noção mais clara da necessidade
de melhor selecção dos candidatos ao
sacerdócio. Não se podem encher os seminários
com qualquer tipo de motivações, e menos
ainda se estas estão relacionadas com insegurança
afectiva, busca de formas de poder, glória
humana ou bem-estar económico.
108.
Como já disse, não pretendi oferecer
um diagnóstico completo, mas convido as comunidades
a completarem e a enriquecerem estas perspectivas
a partir da consciência dos desafios próprios
e das comunidades vizinhas. Espero que, ao fazê-lo,
tenham em conta que, todas as vezes que intentamos
ler os sinais dos tempos na realidade actual, é
conveniente ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns
como outros são a esperança dos povos.
Os idosos fornecem a memória e a sabedoria
da experiência, que convida a não repetir
tontamente os mesmos erros do passado. Os jovens chamam-nos
a despertar e a aumentar a esperança, porque
trazem consigo as novas tendências da humanidade
e abrem-nos ao futuro, de modo que não fiquemos
encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que
já não são fonte de vida no mundo
actual.
109.
Os desafios existem para ser superados. Sejamos realistas,
mas sem perder a alegria, a audácia e a dedicação
cheia de esperança. Não deixemos que
nos roubem a força missionária!
|
Capítulo
III
O ANÚNCIO DO EVANGELHO
110.
Depois de considerar alguns desafios da realidade
actual, quero agora recordar o dever que incumbe sobre
nós em toda e qualquer época e lugar,
porque «não pode haver verdadeira evangelização
sem o anúncio explícito de Jesus como
Senhor» e sem existir uma «primazia do
anúncio de Jesus Cristo em qualquer trabalho
de evangelização». Recolhendo
as preocupações dos Bispos asiáticos,
João Paulo II afirmou que, se a Igreja «deve
realizar o seu destino providencial, então
uma evangelização entendida como o jubiloso,
paciente e progressivo anúncio da Morte salvífica
e Ressurreição de Jesus Cristo há-de
ser a vossa prioridade absoluta». Isto é
válido para todos.
1.
Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho
111. A evangelização é dever
da Igreja. Este sujeito da evangelização,
porém, é mais do que uma instituição
orgânica e hierárquica; é, antes
de tudo, um povo que peregrina para Deus. Trata-se
certamente de um mistério que mergulha as raízes
na Trindade, mas tem a sua concretização
histórica num povo peregrino e evangelizador,
que sempre transcende toda a necessária expressão
institucional. Proponho que nos detenhamos um pouco
nesta forma de compreender a Igreja, que tem o seu
fundamento último na iniciativa livre e gratuita
de Deus.
Um
povo para todos
112. A salvação, que Deus nos oferece,
é obra da sua misericórdia. Não
há acção humana, por melhor que
seja, que nos faça merecer tão grande
dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para nos
unir a Si. Envia o seu Espírito aos nossos
corações, para nos fazer seus filhos,
para nos transformar e tornar capazes de responder
com a nossa vida ao seu amor. A Igreja é enviada
por Jesus Cristo como sacramento da salvação
oferecida por Deus. Através da sua acção
evangelizadora, ela colabora como instrumento da graça
divina, que opera incessantemente para além
de toda e qualquer possível supervisão.
Bem o exprimiu Bento XVI, ao abrir as reflexões
do Sínodo: «É sempre importante
saber que a primeira palavra, a iniciativa verdadeira,
a actividade verdadeira vem de Deus e só inserindo-nos
nesta iniciativa divina, só implorando esta
iniciativa divina, nos podemos tornar também
– com Ele e n'Ele – evangelizadores».
O princípio da primazia da graça deve
ser um farol que ilumine constantemente as nossas
reflexões sobre a evangelização.
113.
Esta salvação, que Deus realiza e a
Igreja jubilosamente anuncia, é para todos,
e Deus criou um caminho para Se unir a cada um dos
seres humanos de todos os tempos. Escolheu convocá-los
como povo, e não como seres isolados. Ninguém
se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo
isolado, nem por suas próprias forças.
Deus atrai-nos, no respeito da complexa trama de relações
interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe.
Este povo, que Deus escolheu para Si e convocou, é
a Igreja. Jesus não diz aos Apóstolos
para formarem um grupo exclusivo, um grupo de elite.
Jesus diz: «Ide, pois, fazei discípulos
de todos os povos» (Mt 28, 19). São Paulo
afirma que no povo de Deus, na Igreja, «não
há judeu nem grego (...), porque todos sois
um só em Cristo Jesus» (Gal 3, 28). Eu
gostaria de dizer àqueles que se sentem longe
de Deus e da Igreja, aos que têm medo ou aos
indiferentes: o Senhor também te chama para
seres parte do seu povo, e fá-lo com grande
respeito e amor!
114.
Ser Igreja significa ser povo de Deus, de acordo com
o grande projecto de amor do Pai. Isto implica ser
o fermento de Deus no meio da humanidade; quer dizer
anunciar e levar a salvação de Deus
a este nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido,
necessitado de ter respostas que encorajem, dêem
esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja
deve ser o lugar da misericórdia gratuita,
onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados
e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho.
Um
povo com muitos rostos
115. Este Povo de Deus encarna-se nos povos da Terra,
cada um dos quais tem a sua cultura própria.
A noção de cultura é um instrumento
precioso para compreender as diversas expressões
da vida cristã que existem no povo de Deus.
Trata-se do estilo de vida que uma determinada sociedade
possui, da forma peculiar que têm os seus membros
de se relacionar entre si, com as outras criaturas
e com Deus. Assim entendida, a cultura abrange a totalidade
da vida dum povo. Cada povo, na sua evolução
histórica, desenvolve a própria cultura
com legítima autonomia. Isso fica-se a dever
ao facto de que a pessoa humana, «por sua natureza,
necessita absolutamente da vida social» e mantém
contínua referência à sociedade,
na qual vive uma maneira concreta de se relacionar
com a realidade. O ser humano está sempre culturalmente
situado: «natureza e cultura encontram-se intimamente
ligadas». A graça supõe a cultura,
e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe.
116.
Ao longo destes dois milénios de cristianismo,
uma quantidade inumerável de povos recebeu
a graça da fé, fê-la florir na
sua vida diária e transmitiu-a segundo as próprias
modalidades culturais. Quando uma comunidade acolhe
o anúncio da salvação, o Espírito
Santo fecunda a sua cultura com a força transformadora
do Evangelho. E assim, como podemos ver na história
da Igreja, o cristianismo não dispõe
de um único modelo cultural, mas «permanecendo
o que é, na fidelidade total ao anúncio
evangélico e à tradição
da Igreja, o cristianismo assumirá também
o rosto das diversas culturas e dos vários
povos onde for acolhido e se radicar». Nos diferentes
povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria
cultura, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade
e mostra «a beleza deste rosto pluriforme».
Através das manifestações cristãs
dum povo evangelizado, o Espírito Santo embeleza
a Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação
e presenteando-a com um novo rosto. Pela inculturação,
a Igreja «introduz os povos com as suas culturas
na sua própria comunidade», porque «cada
cultura oferece formas e valores positivos que podem
enriquecer o modo como o Evangelho é pregado,
compreendido e vivido». Assim, «a Igreja,
assumindo os valores das diversas culturas, torna-se
sponsa ornata monilibus suis, a noiva que se adorna
com suas jóias (cf. Is 61, 10)».
117.
Se for bem entendida, a diversidade cultural não
ameaça a unidade da Igreja. É o Espírito
Santo, enviado pelo Pai e o Filho, que transforma
os nossos corações e nos torna capazes
de entrar na comunhão perfeita da Santíssima
Trindade, onde tudo encontra a sua unidade. O Espírito
Santo constrói a comunhão e a harmonia
do povo de Deus. Ele mesmo é a harmonia, tal
como é o vínculo de amor entre o Pai
e o Filho. É Ele que suscita uma abundante
e diversificada riqueza de dons e, ao mesmo tempo,
constrói uma unidade que nunca é uniformidade,
mas multiforme harmonia que atrai. A evangelização
reconhece com alegria estas múltiplas riquezas
que o Espírito gera na Igreja. Não faria
justiça à lógica da encarnação
pensar num cristianismo monocultural e monocórdico.
É verdade que algumas culturas estiveram intimamente
ligadas à pregação do Evangelho
e ao desenvolvimento do pensamento cristão,
mas a mensagem revelada não se identifica com
nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural.
Por isso, na evangelização de novas
culturas ou de culturas que não acolheram a
pregação cristã, não é
indispensável impor uma determinada forma cultural,
por mais bela e antiga que seja, juntamente com a
proposta do Evangelho. A mensagem, que anunciamos,
sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às
vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização
da própria cultura, o que pode mostrar mais
fanatismo do que autêntico ardor evangelizador.
118.
Os Bispos da Oceânia pediram que a Igreja neste
continente «desenvolva uma compreensão
e exposição da verdade de Cristo partindo
das tradições e culturas locais»,
e instaram todos os missionários «a trabalhar
de harmonia com os cristãos indígenas
para garantir que a doutrina e a vida da Igreja sejam
expressas em formas legítimas e apropriadas
a cada cultura». Não podemos pretender
que todos os povos dos vários continentes,
ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades
adoptadas pelos povos europeus num determinado momento
da história, porque a fé não
se pode confinar dentro dos limites de compreensão
e expressão duma cultura. É indiscutível
que uma única cultura não esgota o mistério
da redenção de Cristo.
Todos
somos discípulos missionários
119. Em todos os baptizados, desde o primeiro ao último,
actua a força santificadora do Espírito
que impele a evangelizar. O povo de Deus é
santo em virtude desta unção, que o
torna infalível «in credendo»,
ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda
que não encontre palavras para explicar a sua
fé. O Espírito guia-o na verdade e condu-lo
à salvação. Como parte do seu
mistério de amor pela humanidade, Deus dota
a totalidade dos fiéis com um instinto da fé
– o sensus fidei – que os ajuda a discernir
o que vem realmente de Deus. A presença do
Espírito confere aos cristãos uma certa
conaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria
que lhes permite captá-las intuitivamente,
embora não possuam os meios adequados para
expressá-las com precisão.
120.
Em virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo
de Deus tornou-se discípulo missionário
(cf. Mt 28, 19). Cada um dos baptizados, independentemente
da própria função na Igreja e
do grau de instrução da sua fé,
é um sujeito activo de evangelização,
e seria inapropriado pensar num esquema de evangelização
realizado por agentes qualificados enquanto o resto
do povo fiel seria apenas receptor das suas acções.
A nova evangelização deve implicar um
novo protagonismo de cada um dos baptizados. Esta
convicção transforma-se num apelo dirigido
a cada cristão para que ninguém renuncie
ao seu compromisso de evangelização,
porque, se uma pessoa experimentou verdadeiramente
o amor de Deus que o salva, não precisa de
muito tempo de preparação para sair
a anunciá-lo, não pode esperar que lhe
dêem muitas lições ou longas instruções.
Cada cristão é missionário na
medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo
Jesus; não digamos mais que somos «discípulos»
e «missionários», mas sempre que
somos «discípulos missionários».
Se não estivermos convencidos disto, olhemos
para os primeiros discípulos, que logo depois
de terem conhecido o olhar de Jesus, saíram
proclamando cheios de alegria: «Encontrámos
o Messias» (Jo 1, 41). A Samaritana, logo que
terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se
missionária, e muitos samaritanos acreditaram
em Jesus «devido às palavras da mulher»
(Jo 4, 39). Também São Paulo, depois
do seu encontro com Jesus Cristo, «começou
imediatamente a proclamar (…) que Jesus era
o Filho de Deus» (Act 9, 20). Porque esperamos
nós?
121.
Certamente todos somos chamados a crescer como evangelizadores.
Devemos procurar simultaneamente uma melhor formação,
um aprofundamento do nosso amor e um testemunho mais
claro do Evangelho. Neste sentido, todos devemos deixar
que os outros nos evangelizem constantemente; isto
não significa que devemos renunciar à
missão evangelizadora, mas encontrar o modo
de comunicar Jesus que corresponda à situação
em que vivemos. Seja como for, todos somos chamados
a dar aos outros o testemunho explícito do
amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às
nossas imperfeições, nos oferece a sua
proximidade, a sua Palavra, a sua força, e
dá sentido à nossa vida. O teu coração
sabe que a vida não é a mesma coisa
sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te
ajuda a viver e te dá esperança, isso
é o que deves comunicar aos outros. A nossa
imperfeição não deve ser desculpa;
pelo contrário, a missão é um
estímulo constante para não nos acomodarmos
na mediocridade, mas continuarmos a crescer. O testemunho
de fé, que todo o cristão é chamado
a oferecer, implica dizer como São Paulo: «Não
que já o tenha alcançado ou já
seja perfeito; mas corro para ver se o alcanço,
(…) lançando-me para o que vem à
frente» (Fl 3, 12-13).
A
força evangelizadora da piedade popular
122. Da mesma forma, podemos pensar que os diferentes
povos, nos quais foi inculturado o Evangelho, são
sujeitos colectivos activos, agentes da evangelização.
Assim é, porque cada povo é o criador
da sua cultura e o protagonista da sua história.
A cultura é algo de dinâmico, que um
povo recria constantemente, e cada geração
transmite à seguinte um conjunto de atitudes
relativas às diversas situações
existenciais, que esta nova geração
deve reelaborar face aos próprios desafios.
O ser humano «é simultaneamente filho
e pai da cultura onde está inserido».
Quando o Evangelho se inculturou num povo, no seu
processo de transmissão cultural também
transmite a fé de maneira sempre nova; daí
a importância da evangelização
entendida como inculturação. Cada porção
do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus
segundo a sua índole própria, dá
testemunho da fé recebida e enriquece-a com
novas expressões que falam por si. Pode dizer-se
que «o povo se evangeliza continuamente a si
mesmo». Aqui ganha importância a piedade
popular, verdadeira expressão da actividade
missionária espontânea do povo de Deus.
Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento,
cujo protagonista é o Espírito Santo.
123.
Na piedade popular, pode-se captar a modalidade em
que a fé recebida se encarnou numa cultura
e continua a transmitir-se. Vista por vezes com desconfiança,
a piedade popular foi objecto de revalorização
nas décadas posteriores ao Concílio.
Quem deu um impulso decisivo nesta direcção,
foi Paulo VI na sua Exortação Apostólica
Evangelii Nuntiandi. Nela explica que a piedade popular
«traduz em si uma certa sede de Deus, que somente
os pobres e os simples podem experimentar» e
«torna as pessoas capazes para terem rasgos
de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício
até ao heroísmo, quando se trata de
manifestar a fé». Já mais perto
dos nossos dias, Bento XVI, na América Latina,
assinalou que se trata de um «precioso tesouro
da Igreja Católica» e que nela «aparece
a alma dos povos latino-americanos».
124.
No Documento de Aparecida, descrevem-se as riquezas
que o Espírito Santo explicita na piedade popular
por sua iniciativa gratuita. Naquele amado Continente,
onde uma multidão imensa de cristãos
exprime a sua fé através da piedade
popular, os Bispos chamam-na também «espiritualidade
popular» ou «mística popular».
Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade
encarnada na cultura dos simples». Não
é vazia de conteúdos, mas descobre-os
e exprime-os mais pela via simbólica do que
pelo uso da razão instrumental e, no acto de
fé, acentua mais o credere in Deum que o credere
Deum. É «uma maneira legítima
de viver a fé, um modo de se sentir parte da
Igreja e uma forma de ser missionários»;
comporta a graça da missionariedade, do sair
de si e do peregrinar: «O caminhar juntos para
os santuários e o participar em outras manifestações
da piedade popular, levando também os filhos
ou convidando a outras pessoas, é em si mesmo
um gesto evangelizador». Não coarctemos
nem pretendamos controlar esta força missionária!
125.
Para compreender esta necessidade, é preciso
abordá-la com o olhar do Bom Pastor, que não
procura julgar mas amar. Só a partir da conaturalidade
afectiva que dá o amor é que podemos
apreciar a vida teologal presente na piedade dos povos
cristãos, especialmente nos pobres. Penso na
fé firme das mães ao pé da cama
do filho doente, que se agarram a um terço
ainda que não saibam elencar os artigos do
Credo; ou na carga imensa de esperança contida
numa vela que se acende, numa casa humilde, para pedir
ajuda a Maria, ou nos olhares de profundo amor a Cristo
crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus, não
pode ver estas acções unicamente como
uma busca natural da divindade; são a manifestação
duma vida teologal animada pela acção
do Espírito Santo, que foi derramado em nossos
corações (cf. Rm 5, 5).
126.
Na piedade popular, por ser fruto do Evangelho inculturado,
subjaz uma força activamente evangelizadora
que não podemos subestimar: seria ignorar a
obra do Espírito Santo. Ao contrário,
somos chamados a encorajá-la e fortalecê-la
para aprofundar o processo de inculturação,
que é uma realidade nunca acabada. As expressões
da piedade popular têm muito que nos ensinar
e, para quem as sabe ler, são um lugar teológico
a que devemos prestar atenção particularmente
na hora de pensar a nova evangelização.
De
pessoa a pessoa
127. Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação
missionária, há uma forma de pregação
que nos compete a todos como tarefa diária:
é cada um levar o Evangelho às pessoas
com quem se encontra, tanto aos mais íntimos
como aos desconhecidos. É a pregação
informal que se pode realizar durante uma conversa,
e é também a que realiza um missionário
quando visita um lar. Ser discípulo significa
ter a disposição permanente de levar
aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente
em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho,
num caminho.
128.
Nesta pregação, sempre respeitosa e
amável, o primeiro momento é um diálogo
pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e partilha
as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações
com os seus entes queridos e muitas coisas que enchem
o coração. Só depois desta conversa
é que se pode apresentar-lhe a Palavra, seja
pela leitura de algum versículo ou de modo
narrativo, mas sempre recordando o anúncio
fundamental: o amor pessoal de Deus que Se fez homem,
entregou-Se a Si mesmo por nós e, vivo, oferece
a sua salvação e a sua amizade. É
o anúncio que se partilha com uma atitude humilde
e testemunhal de quem sempre sabe aprender, com a
consciência de que esta mensagem é tão
rica e profunda que sempre nos ultrapassa. Umas vezes
exprime-se de maneira mais directa, outras através
dum testemunho pessoal, uma história, um gesto,
ou outra forma que o próprio Espírito
Santo possa suscitar numa circunstância concreta.
Se parecer prudente e houver condições,
é bom que este encontro fraterno e missionário
conclua com uma breve oração que se
relacione com as preocupações que a
pessoa manifestou. Assim ela sentirá mais claramente
que foi ouvida e interpretada, que a sua situação
foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá
que a Palavra de Deus fala realmente à sua
própria vida.
129.
Contudo não se deve pensar que o anúncio
evangélico tenha de ser transmitido sempre
com determinadas fórmulas pré-estabelecidas
ou com palavras concretas que exprimam um conteúdo
absolutamente invariável. Transmite-se com
formas tão diversas que seria impossível
descrevê-las ou catalogá-las, e cujo
sujeito colectivo é o povo de Deus com seus
gestos e sinais inumeráveis. Por conseguinte,
se o Evangelho se encarnou numa cultura, já
não se comunica apenas através do anúncio
de pessoa a pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que,
nos países onde o cristianismo é minoria,
para além de animar cada baptizado a anunciar
o Evangelho, as Igrejas particulares hão-de
promover activamente formas, pelo menos incipientes,
de inculturação. Enfim, o que se deve
procurar é que a pregação do
Evangelho, expressa com categorias próprias
da cultura onde é anunciado, provoque uma nova
síntese com essa cultura. Embora estes processos
sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos
demasiado. Se deixamos que as dúvidas e os
medos sufoquem toda a ousadia, é possível
que, em vez de sermos criativos, nos deixemos simplesmente
ficar cómodos sem provocar qualquer avanço
e, neste caso, não seremos participantes dos
processos históricos com a nossa cooperação,
mas simplesmente espectadores duma estagnação
estéril da Igreja.
Carismas
ao serviço da comunhão evangelizadora
130. O Espírito Santo enriquece toda a Igreja
evangelizadora também com diferentes carismas.
São dons para renovar e edificar a Igreja.
Não se trata de um património fechado,
entregue a um grupo para que o guarde; mas são
presentes do Espírito integrados no corpo eclesial,
atraídos para o centro que é Cristo,
donde são canalizados num impulso evangelizador.
Um sinal claro da autenticidade dum carisma é
a sua eclesialidade, a sua capacidade de se integrar
harmoniosamente na vida do povo santo de Deus para
o bem de todos. Uma verdadeira novidade suscitada
pelo Espírito não precisa de fazer sombra
sobre outras espiritualidades e dons para se afirmar
a si mesma. Quanto mais um carisma dirigir o seu olhar
para o coração do Evangelho, tanto mais
eclesial será o seu exercício. É
na comunhão, mesmo que seja fadigosa, que um
carisma se revela autêntica e misteriosamente
fecundo. Se vive este desafio, a Igreja pode ser um
modelo para a paz no mundo.
131.
As diferenças entre as pessoas e as comunidades
por vezes são incómodas, mas o Espírito
Santo, que suscita esta diversidade, de tudo pode
tirar algo de bom e transformá-lo em dinamismo
evangelizador que actua por atracção.
A diversidade deve ser sempre conciliada com a ajuda
do Espírito Santo; só Ele pode suscitar
a diversidade, a pluralidade, a multiplicidade e,
ao mesmo tempo, realizar a unidade. Ao invés,
quando somos nós que pretendemos a diversidade
e nos fechamos em nossos particularismos, em nossos
exclusivismos, provocamos a divisão; e, por
outro lado, quando somos nós que queremos construir
a unidade com os nossos planos humanos, acabamos por
impor a uniformidade, a homologação.
Isto não ajuda a missão da Igreja.
Cultura,
pensamento e educação
132. O anúncio às culturas implica também
um anúncio às culturas profissionais,
científicas e académicas. É o
encontro entre a fé, a razão e as ciências,
que visa desenvolver um novo discurso sobre a credibilidade,
uma apologética original que ajude a criar
as predisposições para que o Evangelho
seja escutado por todos. Quando algumas categorias
da razão e das ciências são acolhidas
no anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se
instrumentos de evangelização; é
a água transformada em vinho. É aquilo
que, uma vez assumido, não só é
redimido, mas torna-se instrumento do Espírito
para iluminar e renovar o mundo.
133.
Uma vez que não basta a preocupação
do evangelizador por chegar a cada pessoa, mas o Evangelho
também se anuncia às culturas no seu
conjunto, a teologia – e não só
a teologia pastoral – em diálogo com
outras ciências e experiências humanas
tem grande importância para pensar como fazer
chegar a proposta do Evangelho à variedade
dos contextos culturais e dos destinatários.
A Igreja, comprometida na evangelização,
aprecia e encoraja o carisma dos teólogos e
o seu esforço na investigação
teológica, que promove o diálogo com
o mundo da cultura e da ciência. Faço
apelo aos teólogos para que cumpram este serviço
como parte da missão salvífica da Igreja.
Mas, para isso, é necessário que tenham
a peito a finalidade evangelizadora da Igreja e da
própria teologia, e não se contentem
com uma teologia de gabinete.
134.
As universidades são um âmbito privilegiado
para pensar e desenvolver este compromisso de evangelização
de modo interdisciplinar e inclusivo. As escolas católicas,
que sempre procuram conjugar a tarefa educacional
com o anúncio explícito do Evangelho,
constituem uma contribuição muito válida
para a evangelização da cultura, mesmo
em países e cidades onde uma situação
adversa nos incentiva a usar a nossa criatividade
para se encontrar os caminhos adequados.
2.
A homilia
135. Consideremos agora a pregação dentro
da Liturgia, que requer uma séria avaliação
por parte dos Pastores. Deter-me-ei particularmente,
e até com certa meticulosidade, na homilia
e sua preparação, porque são
muitas as reclamações relacionadas com
este ministério importante, e não podemos
fechar os ouvidos. A homilia é o ponto de comparação
para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro
de um Pastor com o seu povo. De facto, sabemos que
os fiéis lhe dão muita importância;
e, muitas vezes, tanto eles como os próprios
ministros ordenados sofrem: uns a ouvir e os outros
a pregar. É triste que assim seja. A homilia
pode ser, realmente, uma experiência intensa
e feliz do Espírito, um consolador encontro
com a Palavra, uma fonte constante de renovação
e crescimento.
136.
Renovemos a nossa confiança na pregação,
que se funda na convicção de que é
Deus que deseja alcançar os outros através
do pregador e de que Ele mostra o seu poder através
da palavra humana. São Paulo fala vigorosamente
sobre a necessidade de pregar, porque o Senhor quis
chegar aos outros por meio também da nossa
palavra (cf. Rm 10, 14-17). Com a palavra, Nosso Senhor
conquistou o coração da gente. De todas
as partes, vinham para O ouvir (cf. Mc 1, 45). Ficavam
maravilhados, «bebendo» os seus ensinamentos
(cf. Mc 6, 2). Sentiam que lhes falava como quem tem
autoridade (cf. Mc 1, 27). E os Apóstolos,
que Jesus estabelecera «para estarem com Ele
e para os enviar a pregar» (Mc 3, 14), atraíram
para o seio da Igreja todos os povos com a palavra
(cf. Mc 16, 15.20).
O
contexto litúrgico
137. Agora é oportuno recordar que «a
proclamação litúrgica da Palavra
de Deus, principalmente no contexto da assembleia
eucarística, não é tanto um momento
de meditação e de catequese, como sobretudo
o diálogo de Deus com o seu povo, no qual se
proclamam as maravilhas da salvação
e se propõem continuamente as exigências
da Aliança». Reveste-se de um valor especial
a homilia, derivado do seu contexto eucarístico,
que supera toda a catequese por ser o momento mais
alto do diálogo entre Deus e o seu povo, antes
da comunhão sacramental. A homilia é
um retomar este diálogo que já está
estabelecido entre o Senhor e o seu povo. Aquele que
prega deve conhecer o coração da sua
comunidade para identificar onde está vivo
e ardente o desejo de Deus e também onde é
que este diálogo de amor foi sufocado ou não
pôde dar fruto.
138.
A homilia não pode ser um espectáculo
de divertimento, não corresponde à lógica
dos recursos mediáticos, mas deve dar fervor
e significado à celebração. É
um género peculiar, já que se trata
de uma pregação no quadro duma celebração
litúrgica; por conseguinte, deve ser breve
e evitar que se pareça com uma conferência
ou uma lição. O pregador pode até
ser capaz de manter vivo o interesse das pessoas por
uma hora, mas assim a sua palavra torna-se mais importante
que a celebração da fé. Se a
homilia se prolonga demasiado, lesa duas características
da celebração litúrgica: a harmonia
entre as suas partes e o seu ritmo. Quando a pregação
se realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se como
parte da oferenda que se entrega ao Pai e como mediação
da graça que Cristo derrama na celebração.
Este mesmo contexto exige que a pregação
oriente a assembleia, e também o pregador,
para uma comunhão com Cristo na Eucaristia,
que transforme a vida. Isto requer que a palavra do
pregador não ocupe um lugar excessivo, para
que o Senhor brilhe mais que o ministro.
A
conversa da mãe
139. Dissemos que o povo de Deus, pela acção
constante do Espírito nele, se evangeliza continuamente
a si mesmo. Que implicações tem esta
convicção para o pregador? Lembra-nos
que a Igreja é mãe e prega ao povo como
uma mãe fala ao seu filho, sabendo que o filho
tem confiança de que tudo o que se lhe ensina
é para seu bem, porque se sente amado. Além
disso, a boa mãe sabe reconhecer tudo o que
Deus semeou no seu filho, escuta as suas preocupações
e aprende com ele. O espírito de amor que reina
numa família guia tanto a mãe como o
filho nos seus diálogos, nos quais se ensina
e aprende, se corrige e valoriza o que é bom;
assim deve acontecer também na homilia. O Espírito
que inspirou os Evangelhos e actua no povo de Deus,
inspira também como se deve escutar a fé
do povo e como se deve pregar em cada Eucaristia.
Portanto a pregação cristã encontra,
no coração da cultura do povo, um manancial
de água viva tanto para saber o que se deve
dizer como para encontrar o modo mais apropriado para
o dizer. Assim como todos gostamos que nos falem na
nossa língua materna, assim também,
na fé, gostamos que nos falem em termos da
«cultura materna», em termos do idioma
materno (cf. 2 Mac 7, 21.27), e o coração
dispõe-se a ouvir melhor. Esta linguagem é
uma tonalidade que transmite coragem, inspiração,
força, impulso.
140.
Este âmbito materno-eclesial, onde se desenrola
o diálogo do Senhor com o seu povo, deve ser
encarecido e cultivado através da proximidade
cordial do pregador, do tom caloroso da sua voz, da
mansidão do estilo das suas frases, da alegria
dos seus gestos. Mesmo que às vezes a homilia
seja um pouco maçante, se houver este espírito
materno-eclesial, será sempre fecunda, tal
como os conselhos maçantes duma mãe,
com o passar do tempo, dão fruto no coração
dos filhos.
141.
Ficamos admirados com os recursos empregues pelo Senhor
para dialogar com o seu povo, revelar o seu mistério
a todos, cativar a gente comum com ensinamentos tão
elevados e exigentes. Creio que o segredo de Jesus
esteja escondido naquele seu olhar o povo mais além
das suas fraquezas e quedas: «Não temais,
pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos
o Reino» (Lc 12, 32); Jesus prega com este espírito.
Transbordando de alegria no Espírito, bendiz
o Pai por Lhe atrair os pequeninos: «Bendigo-Te,
ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque
escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes
e as revelaste aos pequeninos» (Lc 10, 21).
O Senhor compraz-Se verdadeiramente em dialogar com
o seu povo, e compete ao pregador fazer sentir este
gosto do Senhor ao seu povo.
Palavras
que abrasam os corações
142. Um diálogo é muito mais do que
a comunicação duma verdade. Realiza-se
pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica
através das palavras entre aqueles que se amam.
É um bem que não consiste em coisas,
mas nas próprias pessoas que mutuamente se
dão no diálogo. A pregação
puramente moralista ou doutrinadora e também
a que se transforma numa lição de exegese
reduzem esta comunicação entre os corações
que se verifica na homilia e que deve ter um carácter
quase sacramental: «A fé surge da pregação,
e a pregação surge pela palavra de Cristo»
(Rm 10, 17). Na homilia, a verdade anda de mãos
dadas com a beleza e o bem. Não se trata de
verdades abstractas ou de silogismos frios, porque
se comunica também a beleza das imagens que
o Senhor utilizava para incentivar a prática
do bem. A memória do povo fiel, como a de Maria,
deve ficar transbordante das maravilhas de Deus. O
seu coração, esperançado na prática
alegre e possível do amor que lhe foi anunciado,
sente que toda a palavra na Escritura, antes de ser
exigência, é dom.
143.
O desafio duma pregação inculturada
consiste em transmitir a síntese da mensagem
evangélica, e não ideias ou valores
soltos. Onde está a tua síntese, ali
está o teu coração. A diferença
entre fazer luz com sínteses e o fazê-lo
com ideias soltas é a mesma que há entre
o ardor do coração e o tédio.
O pregador tem a belíssima e difícil
missão de unir os corações que
se amam: o do Senhor e os do seu povo. O diálogo
entre Deus e o seu povo reforça ainda mais
a aliança entre ambos e estreita o vínculo
da caridade. Durante o tempo da homilia, os corações
dos crentes fazem silêncio e deixam-No falar
a Ele. O Senhor e o seu povo falam-se de mil e uma
maneiras directamente, sem intermediários,
mas, na homilia, querem que alguém sirva de
instrumento e exprima os sentimentos, de modo que,
depois, cada um possa escolher como continuar a sua
conversa. A palavra é, essencialmente, mediadora
e necessita não só dos dois dialogantes
mas também de um pregador que a represente
como tal, convencido de que «não nos
pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus,
o Senhor, e nos consideramos vossos servos, por amor
de Jesus» (2 Cor 4, 5).
144.
Falar com o coração implica mantê-lo
não só ardente, mas também iluminado
pela integridade da Revelação e pelo
caminho que essa Palavra percorreu no coração
da Igreja e do nosso povo fiel ao longo da sua história.
A identidade cristã, que é aquele abraço
baptismal que o Pai nos deu em pequeninos, faz-nos
anelar, como filhos pródigos – e predilectos
em Maria –, pelo outro abraço, o do Pai
misericordioso que nos espera na glória. Fazer
com que o nosso povo se sinta, de certo modo, no meio
destes dois abraços é a tarefa difícil,
mas bela, de quem prega o Evangelho.
3.
A preparação da pregação
145. A preparação da pregação
é uma tarefa tão importante que convém
dedicar-lhe um tempo longo de estudo, oração,
reflexão e criatividade pastoral. Com muita
amizade, quero deter-me a propor um itinerário
de preparação da homilia. Trata-se de
indicações que, para alguns, poderão
parecer óbvias, mas considero oportuno sugeri-las
para recordar a necessidade de dedicar um tempo privilegiado
a este precioso ministério. Alguns párocos
sustentam frequentemente que isto não é
possível por causa de tantas incumbências
que devem desempenhar; todavia atrevo-me a pedir que
todas as semanas se dedique a esta tarefa um tempo
pessoal e comunitário suficientemente longo,
mesmo que se tenha de dar menos tempo a outras tarefas
também importantes. A confiança no Espírito
Santo que actua na pregação não
é meramente passiva, mas activa e criativa.
Implica oferecer-se como instrumento (cf. Rm 12, 1),
com todas as próprias capacidades, para que
possam ser utilizadas por Deus. Um pregador que não
se prepara não é «espiritual»:
é desonesto e irresponsável quanto aos
dons que recebeu.
O
culto da verdade
146. O primeiro passo, depois de invocar o Espírito
Santo, é prestar toda a atenção
ao texto bíblico, que deve ser o fundamento
da pregação. Quando alguém se
detém procurando compreender qual é
a mensagem dum texto, exerce o «culto da verdade».
É a humildade do coração que
reconhece que a Palavra sempre nos transcende, que
somos, «não os árbitros nem os
proprietários, mas os depositários,
os arautos e os servidores». Esta atitude de
humilde e deslumbrada veneração da Palavra
exprime-se detendo-se a estudá-la com o máximo
cuidado e com um santo temor de a manipular. Para
se poder interpretar um texto bíblico, faz
falta paciência, pôr de parte toda a ansiedade
e atribuir-lhe tempo, interesse e dedicação
gratuita. Há que pôr de lado qualquer
preocupação que nos inquiete, para entrar
noutro âmbito de serena atenção.
Não vale a pena dedicar-se a ler um texto bíblico,
se aquilo que se quer obter são resultados
rápidos, fáceis ou imediatos. Por isso,
a preparação da pregação
requer amor. Uma pessoa só dedica um tempo
gratuito e sem pressa às coisas ou às
pessoas que ama; e aqui trata-se de amar a Deus, que
quis falar. A partir deste amor, uma pessoa pode deter-se
todo o tempo que for necessário, com a atitude
dum discípulo: «Fala, Senhor; o teu servo
escuta» (1 Sam 3, 9).
147.
Em primeiro lugar, convém estarmos seguros
de compreender adequadamente o significado das palavras
que lemos. Quero insistir em algo que parece evidente,
mas que nem sempre é tido em conta: o texto
bíblico, que estudamos, tem dois ou três
mil anos, a sua linguagem é muito diferente
da que usamos agora. Por mais que nos pareça
termos entendido as palavras, que estão traduzidas
na nossa língua, isso não significa
que compreendemos correctamente tudo o que o escritor
sagrado queria exprimir. São conhecidos os
vários recursos que proporciona a análise
literária: prestar atenção às
palavras que se repetem ou evidenciam, reconhecer
a estrutura e o dinamismo próprio dum texto,
considerar o lugar que ocupam os personagens, etc.
Mas o objectivo não é o de compreender
todos os pequenos detalhes dum texto; o mais importante
é descobrir qual é a mensagem principal,
a mensagem que confere estrutura e unidade ao texto.
Se o pregador não faz este esforço,
é possível que também a sua pregação
não tenha unidade nem ordem; o seu discurso
será apenas uma súmula de várias
ideias desarticuladas que não conseguirão
mobilizar os outros. A mensagem central é aquela
que o autor quis primariamente transmitir, o que implica
identificar não só uma ideia mas também
o efeito que esse autor quis produzir. Se um texto
foi escrito para consolar, não deveria ser
utilizado para corrigir erros; se foi escrito para
exortar, não deveria ser utilizado para instruir;
se foi escrito para ensinar algo sobre Deus, não
deveria ser utilizado para explicar várias
opiniões teológicas; se foi escrito
para levar ao louvor ou ao serviço missionário,
não o utilizemos para informar sobre as últimas
notícias.
148.
É verdade que, para se entender adequadamente
o sentido da mensagem central dum texto, é
preciso colocá-lo em ligação
com o ensinamento da Bíblia inteira, transmitida
pela Igreja. Este é um princípio importante
da interpretação bíblica, que
tem em conta que o Espírito Santo não
inspirou só uma parte, mas a Bíblia
inteira, e que, nalgumas questões, o povo cresceu
na sua compreensão da vontade de Deus a partir
da experiência vivida. Assim se evitam interpretações
equivocadas ou parciais, que contradizem outros ensinamentos
da mesma Escritura. Mas isto não significa
enfraquecer a acentuação própria
e específica do texto que se deve pregar. Um
dos defeitos duma pregação enfadonha
e ineficaz é precisamente não poder
transmitir a força própria do texto
que foi proclamado.
A
personalização da Palavra
149.O pregador «deve ser o primeiro a desenvolver
uma grande familiaridade pessoal com a Palavra de
Deus: não lhe basta conhecer o aspecto linguístico
ou exegético, sem dúvida necessário;
precisa de se abeirar da Palavra com o coração
dócil e orante, a fim de que ela penetre a
fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele
uma nova mentalidade». Faz-nos bem renovar,
cada dia, cada domingo, o nosso ardor na preparação
da homilia, e verificar se, em nós mesmos,
cresce o amor pela Palavra que pregamos. É
bom não esquecer que, «particularmente,
a maior ou menor santidade do ministro influi sobre
o anúncio da Palavra». Como diz São
Paulo, «falamos, não para agradar aos
homens, mas a Deus que põe à prova os
nossos corações» (1 Ts 2, 4).
Se está vivo este desejo de, primeiro, ouvirmos
nós a Palavra que temos de pregar, esta transmitir-se-á
duma maneira ou doutra ao povo fiel de Deus: «A
boca fala da abundância do coração»
(Mt 12, 34). As leituras do domingo ressoarão
com todo o seu esplendor no coração
do povo, se primeiro ressoarem assim no coração
do Pastor.
150.
Jesus irritava-Se com pretensiosos mestres, muito
exigentes com os outros, que ensinavam a Palavra de
Deus mas não se deixavam iluminar por ela:
«Atam fardos pesados e insuportáveis
e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não
põem nem um dedo para os deslocar» (Mt
23, 4). E o Apóstolo São Tiago exortava:
«Meus irmãos, não haja muitos
entre vós que pretendam ser mestres, sabendo
que nós teremos um julgamento mais severo»
(3, 1). Quem quiser pregar, deve primeiro estar disposto
a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne
na sua vida concreta. Assim, a pregação
consistirá na actividade tão intensa
e fecunda que é «comunicar aos outros
o que foi contemplado». Por tudo isto, antes
de preparar concretamente o que vai dizer na pregação,
o pregador tem que aceitar ser primeiro trespassado
por essa Palavra que há-de trespassar os outros,
porque é uma Palavra viva e eficaz, que, como
uma espada, «penetra até à divisão
da alma e do corpo, das articulações
e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções
do coração» (Heb 4, 12). Isto
tem um valor pastoral. Mesmo nesta época, a
gente prefere escutar as testemunhas: «Tem sede
de autenticidade (...), reclama evangelizadores que
lhe falem de um Deus que eles conheçam e lhes
seja familiar como se eles vissem o invisível».
151.
Não nos é pedido que sejamos imaculados,
mas que não cessamos de melhorar, vivamos o
desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho,
e não deixemos cair os braços. Indispensável
é que o pregador esteja seguro de que Deus
o ama, de que Jesus Cristo o salvou, de que o seu
amor tem sempre a última palavra. À
vista de tanta beleza, sentirá muitas vezes
que a sua vida não lhe dá plenamente
glória e desejará sinceramente corresponder
melhor a um amor tão grande. Todavia, se não
se detém com sincera abertura a escutar esta
Palavra, se não deixa que a mesma toque a sua
vida, que o interpele, exorte, mobilize, se não
dedica tempo para rezar com esta Palavra, então
na realidade será um falso profeta, um embusteiro
ou um charlatão vazio. Em todo o caso, desde
que reconheça a sua pobreza e deseje comprometer-se
mais, sempre poderá dar Jesus Cristo, dizendo
como Pedro: «Não tenho ouro nem prata,
mas o que tenho, isto te dou» (Act 3, 6). O
Senhor quer servir-Se de nós como seres vivos,
livres e criativos, que se deixam penetrar pela sua
Palavra antes de a transmitir; a sua mensagem deve
passar realmente através do pregador, e não
só pela sua razão, mas tomando posse
de todo o seu ser. O Espírito Santo, que inspirou
a Palavra, é quem «hoje ainda, como nos
inícios da Igreja, age em cada um dos evangelizadores
que se deixa possuir e conduzir por Ele, e põe
na sua boca as palavras que ele sozinho não
poderia encontrar».
A
leitura espiritual
152. Há uma modalidade concreta para escutarmos
aquilo que o Senhor nos quer dizer na sua Palavra
e nos deixarmos transformar pelo Espírito:
designamo-la por «lectio divina». Consiste
na leitura da Palavra de Deus num tempo de oração,
para lhe permitir que nos ilumine e renove. Esta leitura
orante da Bíblia não está separada
do estudo que o pregador realiza para individuar a
mensagem central do texto; antes pelo contrário,
é dela que deve partir para procurar descobrir
aquilo que essa mesma mensagem tem a dizer à
sua própria vida. A leitura espiritual dum
texto deve partir do seu sentido literal. Caso contrário,
uma pessoa facilmente fará o texto dizer o
que lhe convém, o que serve para confirmar
as suas próprias decisões, o que se
adapta aos seus próprios esquemas mentais.
E isto seria, em última análise, usar
o sagrado para proveito próprio e passar esta
confusão para o povo de Deus. Nunca devemos
esquecer-nos de que, por vezes, «também
Satanás se disfarça em anjo de luz»
(2 Cor 11, 14).
153.
Na presença de Deus, numa leitura tranquila
do texto, é bom perguntar-se, por exemplo:
«Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta
mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é
que me dá fastídio neste texto? Porque
é que isto não me interessa?»;
ou então: «De que gosto? Em que me estimula
esta Palavra? Que me atrai? E porque me atrai?».
Quando se procura ouvir o Senhor, é normal
ter tentações. Uma delas é simplesmente
sentir-se chateado e acabrunhado e dar tudo por encerrado;
outra tentação muito comum é
começar a pensar naquilo que o texto diz aos
outros, para evitar de o aplicar à própria
vida. Acontece também começar a procurar
desculpas, que nos permitam diluir a mensagem específica
do texto. Outras vezes pensamos que Deus nos exige
uma decisão demasiado grande, que ainda não
estamos em condições de tomar. Isto
leva muitas pessoas a perderem a alegria do encontro
com a Palavra, mas isso significaria esquecer que
ninguém é mais paciente do que Deus
Pai, ninguém compreende e sabe esperar como
Ele. Deus convida sempre a dar um passo mais, mas
não exige uma resposta completa, se ainda não
percorremos o caminho que a torna possível.
Apenas quer que olhemos com sinceridade a nossa vida
e a apresentemos sem fingimento diante dos seus olhos,
que estejamos dispostos a continuar a crescer, e peçamos
a Ele o que ainda não podemos conseguir.
À
escuta do povo
154. O pregador deve também pôr-se à
escuta do povo, para descobrir aquilo que os fiéis
precisam de ouvir. Um pregador é um contemplativo
da Palavra e também um contemplativo do povo.
Desta forma, descobre «as aspirações,
as riquezas e as limitações, as maneiras
de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que
caracterizam este ou aquele aglomerado humano»,
prestando atenção «ao povo concreto
com os seus sinais e símbolos e respondendo
aos problemas que apresenta». Trata-se de relacionar
a mensagem do texto bíblico com uma situação
humana, com algo que as pessoas vivem, com uma experiência
que precisa da luz da Palavra. Esta preocupação
não é ditada por uma atitude oportunista
ou diplomática, mas é profundamente
religiosa e pastoral. No fundo, é uma «sensibilidade
espiritual para saber ler nos acontecimentos a mensagem
de Deus», e isto é muito mais do que
encontrar algo interessante para dizer. Procura-se
descobrir «o que o Senhor tem a dizer nessas
circunstâncias». Então a preparação
da pregação transforma-se num exercício
de discernimento evangélico, no qual se procura
reconhecer – à luz do Espírito
– «um “apelo” que Deus faz
ressoar na própria situação histórica:
também nele e através dele, Deus chama
o crente».
155.
Nesta busca, é possível recorrer apenas
a alguma experiência humana frequente, como,
por exemplo, a alegria dum reencontro, as desilusões,
o medo da solidão, a compaixão pela
dor alheia, a incerteza perante o futuro, a preocupação
com um ser querido, etc.; mas faz falta intensificar
a sensibilidade para se reconhecer o que isso realmente
tem a ver com a vida das pessoas. Recordemos que nunca
se deve responder a perguntas que ninguém se
põe, nem convém fazer a crónica
da actualidade para despertar interesse; para isso,
já existem os programas televisivos. Em todo
o caso, é possível partir de algum facto
para que a Palavra possa repercutir fortemente no
seu apelo à conversão, à adoração,
a atitudes concretas de fraternidade e serviço,
etc., porque acontece, às vezes, que algumas
pessoas gostam de ouvir comentários sobre a
realidade na pregação, mas nem por isso
se deixam interpelar pessoalmente.
Recursos
pedagógicos
156. Alguns acreditam que podem ser bons pregadores
por saber o que devem dizer, mas descuidam o como,
a forma concreta de desenvolver uma pregação.
Zangam-se quando os outros não os ouvem ou
não os apreciam, mas talvez não se tenham
empenhado por encontrar a forma adequada de apresentar
a mensagem. Lembremo-nos de que «a evidente
importância do conteúdo da evangelização
não deve esconder a importância dos métodos
e dos meios da mesma evangelização».
A preocupação com a forma de pregar
também é uma atitude profundamente espiritual.
É responder ao amor de Deus, entregando-nos
com todas as nossas capacidades e criatividade à
missão que Ele nos confia; mas também
é um exímio exercício de amor
ao próximo, porque não queremos oferecer
aos outros algo de má qualidade. Na Bíblia,
por exemplo, aparece a recomendação
para se preparar a pregação de modo
a garantir uma apropriada extensão: «Sê
conciso no teu falar: muitas coisas em poucas palavras»
(Sir 32, 8).
157.
Apenas, para exemplificar, recordemos alguns recursos
práticos que podem enriquecer uma pregação
e torná-la mais atraente. Um dos esforços
mais necessários é aprender a usar imagens
na pregação, isto é, a falar
por imagens. Às vezes usam-se exemplos para
tornar mais compreensível algo que se quer
explicar, mas estes exemplos frequentemente dirigem-se
apenas ao entendimento, enquanto as imagens ajudam
a apreciar e acolher a mensagem que se quer transmitir.
Uma imagem fascinante faz com que se sinta a mensagem
como algo familiar, próximo, possível,
relacionado com a própria vida. Uma imagem
apropriada pode levar a saborear a mensagem que se
quer transmitir, desperta um desejo e motiva a vontade
na direcção do Evangelho. Uma boa homilia,
como me dizia um antigo professor, deve conter «uma
ideia, um sentimento, uma imagem».
158.
Já dizia Paulo VI que os fiéis «esperam
muito desta pregação e dela poderão
tirar fruto, contanto que ela seja simples, clara,
directa, adaptada». A simplicidade tem a ver
com a linguagem utilizada. Deve ser linguagem que
os destinatários compreendam, para não
correr o risco de falar ao vento. Acontece frequentemente
que os pregadores usam palavras que aprenderam nos
seus estudos e em certos ambientes, mas que não
fazem parte da linguagem comum das pessoas que os
ouvem. Há palavras próprias da teologia
ou da catequese, cujo significado não é
compreensível para a maioria dos cristãos.
O maior risco dum pregador é habituar-se à
sua própria linguagem e pensar que todos os
outros a usam e compreendem espontaneamente. Se se
quer adaptar à linguagem dos outros, para poder
chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar
muito, é preciso partilhar a vida das pessoas
e prestar-lhes benévola atenção.
A simplicidade e a clareza são duas coisas
diferentes. A linguagem pode ser muito simples, mas
pouco clara a pregação. Pode-se tornar
incompreensível pela desordem, pela sua falta
de lógica, ou porque trata vários temas
ao mesmo tempo. Por isso, outro cuidado necessário
é procurar que a pregação tenha
unidade temática, uma ordem clara e ligação
entre as frases, de modo que as pessoas possam facilmente
seguir o pregador e captar a lógica do que
lhes diz.
159.
Outra característica é a linguagem positiva.
Não diz tanto o que não se deve fazer,
como sobretudo propõe o que podemos fazer melhor.
E, se aponta algo negativo, sempre procura mostrar
também um valor positivo que atraia, para não
se ficar pela queixa, o lamento, a crítica
ou o remorso. Além disso, uma pregação
positiva oferece sempre esperança, orienta
para o futuro, não nos deixa prisioneiros da
negatividade. Como é bom que sacerdotes, diáconos
e leigos se reúnam periodicamente para encontrarem,
juntos, os recursos que tornem mais atraente a pregação!
4.
Uma evangelização para o aprofundamento
do querigma
160. O mandato missionário do Senhor inclui
o apelo ao crescimento da fé, quando diz: «ensinando-os
a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt
28, 20). Daqui se vê claramente que o primeiro
anúncio deve desencadear também um caminho
de formação e de amadurecimento. A evangelização
procura também o crescimento, o que implica
tomar muito a sério em cada pessoa o projecto
que Deus tem para ela. Cada ser humano precisa sempre
mais de Cristo, e a evangelização não
deveria deixar que alguém se contente com pouco,
mas possa dizer com plena verdade: «Já
não sou eu que vivo, mas é Cristo que
vive em mim» (Gal 2, 20).
161.
Não seria correcto que este apelo ao crescimento
fosse interpretado, exclusiva ou prioritariamente,
como formação doutrinal. Trata-se de
«cumprir» aquilo que o Senhor nos indicou
como resposta ao seu amor, sobressaindo, junto com
todas as virtudes, aquele mandamento novo que é
o primeiro, o maior, o que melhor nos identifica como
discípulos: «É este o meu mandamento:
que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei»
(Jo 15, 12). É evidente que, quando os autores
do Novo Testamento querem reduzir a mensagem moral
cristã a uma última síntese,
ao mais essencial, apresentam-nos a exigência
irrenunciável do amor ao próximo: «Quem
ama o próximo cumpre plenamente a lei. (…)
É no amor que está o pleno cumprimento
da lei» (Rm 13, 8.10). De igual modo, São
Paulo, para quem o mandamento do amor não só
resume a lei mas constitui o centro e a razão
de ser da mesma: «Toda a lei se cumpre plenamente
nesta única palavra: Ama o teu próximo
como a ti mesmo» (Gal 5, 14). E, às suas
comunidades, apresenta a vida cristã como um
caminho de crescimento no amor: «O Senhor vos
faça crescer e superabundar de caridade uns
para com os outros e para com todos» (1 Ts 3,
12). Também São Tiago exorta os cristãos
a cumprir «a lei do Reino, de acordo com a Escritura:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo»
(2, 8), acabando por não citar nenhum preceito.
162.
Entretanto, este caminho de resposta e crescimento
aparece sempre precedido pelo dom, porque o antecede
aquele outro pedido do Senhor: «baptizando-os
em nome...» (Mt 28, 19). A adopção
como filhos que o Pai oferece gratuitamente e a iniciativa
do dom da sua graça (cf. Ef 2, 8-9; 1 Cor 4,
7) são a condição que torna possível
esta santificação constante, que agrada
a Deus e Lhe dá glória. É deixar-se
transformar em Cristo, vivendo progressivamente «de
acordo com o Espírito» (Rm 8, 5).
Uma
catequese querigmática e mistagógica
163. A educação e a catequese estão
ao serviço deste crescimento. Já temos
à disposição vários textos
do Magistério e subsídios sobre a catequese,
preparados pela Santa Sé e por diversos episcopados.
Lembro a Exortação Apostólica
Catechesi tradendae (1979), o Directório Geral
para a Catequese (1997) e outros documentos cujo conteúdo,
sempre actual, não é necessário
repetir aqui. Queria deter-me apenas nalgumas considerações
que me parece oportuno evidenciar.
164.
Voltámos a descobrir que também na catequese
tem um papel fundamental o primeiro anúncio
ou querigma, que deve ocupar o centro da actividade
evangelizadora e de toda a tentativa de renovação
eclesial. O querigma é trinitário. É
o fogo do Espírito que se dá sob a forma
de línguas e nos faz crer em Jesus Cristo,
que, com a sua morte e ressurreição,
nos revela e comunica a misericórdia infinita
do Pai. Na boca do catequista, volta a ressoar sempre
o primeiro anúncio: «Jesus Cristo ama-te,
deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo
todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar».
Ao designar-se como «primeiro» este anúncio,
não significa que o mesmo se situa no início
e que, em seguida, se esquece ou substitui por outros
conteúdos que o superam; é o primeiro
em sentido qualitativo, porque é o anúncio
principal, aquele que sempre se tem de voltar a ouvir
de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem
de voltar a anunciar, duma forma ou doutra, durante
a catequese, em todas as suas etapas e momentos. Por
isso, também «o sacerdote, como a Igreja,
deve crescer na consciência da sua permanente
necessidade de ser evangelizado».
165.
Não se deve pensar que, na catequese, o querigma
é deixado de lado em favor duma formação
supostamente mais «sólida». Nada
há de mais sólido, mais profundo, mais
seguro, mais consistente e mais sábio que esse
anúncio. Toda a formação cristã
é, primariamente, o aprofundamento do querigma
que se vai, cada vez mais e melhor, fazendo carne,
que nunca deixa de iluminar a tarefa catequética,
e permite compreender adequadamente o sentido de qualquer
tema que se desenvolve na catequese. É o anúncio
que dá resposta ao anseio de infinito que existe
em todo o coração humano. A centralidade
do querigma requer certas características do
anúncio que hoje são necessárias
em toda a parte: que exprima o amor salvífico
de Deus como prévio à obrigação
moral e religiosa, que não imponha a verdade
mas faça apelo à liberdade, que seja
pautado pela alegria, o estímulo, a vitalidade
e uma integralidade harmoniosa que não reduza
a pregação a poucas doutrinas, por vezes
mais filosóficas que evangélicas. Isto
exige do evangelizador certas atitudes que ajudam
a acolher melhor o anúncio: proximidade, abertura
ao diálogo, paciência, acolhimento cordial
que não condena.
166.
Outra característica da catequese, que se desenvolveu
nas últimas décadas, é a iniciação
mistagógica, que significa essencialmente duas
coisas: a necessária progressividade da experiência
formativa na qual intervém toda a comunidade
e uma renovada valorização dos sinais
litúrgicos da iniciação cristã.
Muitos manuais e planificações ainda
não se deixaram interpelar pela necessidade
duma renovação mistagógica, que
poderia assumir formas muito diferentes de acordo
com o discernimento de cada comunidade educativa.
O encontro catequético é um anúncio
da Palavra e está centrado nela, mas precisa
sempre duma ambientação adequada e duma
motivação atraente, do uso de símbolos
eloquentes, da sua inserção num amplo
processo de crescimento e da integração
de todas as dimensões da pessoa num caminho
comunitário de escuta e resposta.
167.
É bom que toda a catequese preste uma especial
atenção à «via da beleza
(via pulchritudinis)». Anunciar Cristo significa
mostrar que crer n’Ele e segui-Lo não
é algo apenas verdadeiro e justo, mas também
belo, capaz de cumular a vida dum novo esplendor e
duma alegria profunda, mesmo no meio das provações.
Nesta perspectiva, todas as expressões de verdadeira
beleza podem ser reconhecidas como uma senda que ajuda
a encontrar-se com o Senhor Jesus. Não se trata
de fomentar um relativismo estético, que pode
obscurecer o vínculo indivisível entre
verdade, bondade e beleza, mas de recuperar a estima
da beleza para poder chegar ao coração
do homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade
do Ressuscitado. Se nós, como diz Santo Agostinho,
não amamos senão o que é belo,
o Filho feito homem, revelação da beleza
infinita, é sumamente amável e atrai-nos
para Si com laços de amor. Por isso, torna-se
necessário que a formação na
via pulchritudinis esteja inserida na transmissão
da fé. É desejável que cada Igreja
particular incentive o uso das artes na sua obra evangelizadora,
em continuidade com a riqueza do passado, mas também
na vastidão das suas múltiplas expressões
actuais, a fim de transmitir a fé numa nova
«linguagem parabólica». É
preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais,
os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão
da Palavra, as diversas formas de beleza que se manifestam
em diferentes âmbitos culturais, incluindo aquelas
modalidades não convencionais de beleza que
podem ser pouco significativas para os evangelizadores,
mas tornaram-se particularmente atraentes para os
outros.
168.
Relativamente à proposta moral da catequese,
que convida a crescer na fidelidade ao estilo de vida
do Evangelho, é oportuno indicar sempre o bem
desejável, a proposta de vida, de maturidade,
de realização, de fecundidade, sob cuja
luz se pode entender a nossa denúncia dos males
que a podem obscurecer. Mais do que como peritos em
diagnósticos apocalípticos ou juízes
sombrios que se comprazem em detectar qualquer perigo
ou desvio, é bom que nos possam ver como mensageiros
alegres de propostas altas, guardiões do bem
e da beleza que resplandecem numa vida fiel ao Evangelho.
O
acompanhamento pessoal dos processos de crescimento
169. Numa civilização paradoxalmente
ferida pelo anonimato e, simultaneamente, obcecada
com os detalhes da vida alheia, descaradamente doente
de morbosa curiosidade, a Igreja tem necessidade de
um olhar solidário para contemplar, comover-se
e parar diante do outro, tantas vezes quantas forem
necessárias. Neste mundo, os ministros ordenados
e os outros agentes de pastoral podem tornar presente
a fragrância da presença solidária
de Jesus e o seu olhar pessoal. A Igreja deverá
iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos
e leigos – nesta «arte do acompanhamento»,
para que todos aprendam a descalçar sempre
as sandálias diante da terra sagrada do outro
(cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo
salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e
cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo
cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã.
170.
Embora possa soar óbvio, o acompanhamento espiritual
deve conduzir cada vez mais para Deus, em quem podemos
alcançar a verdadeira liberdade. Alguns crêem-se
livres quando caminham à margem de Deus, sem
se dar conta que ficam existencialmente órfãos,
desamparados, sem um lar para onde sempre possam voltar.
Deixam de ser peregrinos para se transformarem em
errantes, que giram indefinidamente ao redor de si
mesmos, sem chegar a lado nenhum. O acompanhamento
seria contraproducente, caso se tornasse uma espécie
de terapia que incentive esta reclusão das
pessoas na sua imanência e deixe de ser uma
peregrinação com Cristo para o Pai.
171.
Hoje mais do que nunca precisamos de homens e mulheres
que conheçam, a partir da sua experiência
de acompanhamento, o modo de proceder onde reine a
prudência, a capacidade de compreensão,
a arte de esperar, a docilidade ao Espírito,
para no meio de todos defender as ovelhas a nós
confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho.
Precisamos de nos exercitar na arte de escutar, que
é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação
com o outro, é a capacidade do coração
que torna possível a proximidade, sem a qual
não existe um verdadeiro encontro espiritual.
Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra
oportunos que nos desinstalam da cómoda condição
de espectadores. Só a partir desta escuta respeitosa
e compassiva é que se pode encontrar os caminhos
para um crescimento genuíno, despertar o desejo
do ideal cristão, o anseio de corresponder
plenamente ao amor de Deus e o anelo de desenvolver
o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria
vida. Mas sempre com a paciência de quem está
ciente daquilo que ensinava São Tomás
de Aquino: alguém pode ter a graça e
a caridade, mas não praticar bem nenhuma das
virtudes «por causa de algumas inclinações
contrárias» que persistem. Por outras
palavras, as virtudes organizam-se sempre e necessariamente
«in habitu», embora os condicionamentos
possam dificultar as operações desses
hábitos virtuosos. Por isso, faz falta «uma
pedagogia que introduza a pessoa passo a passo até
chegar à plena apropriação do
mistério». Para se chegar a um estado
de maturidade, isto é, para que as pessoas
sejam capazes de decisões verdadeiramente livres
e responsáveis, é preciso dar tempo
ao tempo, com uma paciência imensa. Como dizia
o Beato Pedro Fabro: «O tempo é o mensageiro
de Deus».
172.
Quem acompanha sabe reconhecer que a situação
de cada pessoa diante de Deus e a sua vida em graça
é um mistério que ninguém pode
conhecer plenamente a partir do exterior. O Evangelho
propõe-nos que se corrija e ajude a crescer
uma pessoa a partir do reconhecimento da maldade objectiva
das suas acções (cf. Mt 18, 15), mas
sem proferir juízos sobre a sua responsabilidade
e culpabilidade (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Seja como
for, um válido acompanhante não transige
com os fatalismos nem com a pusilanimidade. Sempre
convida a querer curar-se, a pegar no catre (cf. Mt
9, 6), a abraçar a cruz, a deixar tudo e partir
sem cessar para anunciar o Evangelho. A experiência
pessoal de nos deixarmos acompanhar e curar, conseguindo
exprimir com plena sinceridade a nossa vida a quem
nos acompanha, ensina-nos a ser pacientes e compreensivos
com os outros e habilita-nos a encontrar as formas
para despertar neles a confiança, a abertura
e a vontade de crescer.
173.
O acompanhamento espiritual autêntico começa
sempre e prossegue no âmbito do serviço
à missão evangelizadora. A relação
de Paulo com Timóteo e Tito é exemplo
deste acompanhamento e desta formação
durante a acção apostólica. Ao
mesmo tempo que lhes confia a missão de permanecer
numa cidade concreta para «acabar de organizar
o que ainda falta» (Tt 1, 5; cf. 1 Tm 1, 3-5),
dá-lhes os critérios para a vida pessoal
e a actividade pastoral. Isto é claramente
distinto de todo o tipo de acompanhamento intimista,
de auto-realização isolada. Os discípulos
missionários acompanham discípulos missionários.
Ao
redor da Palavra de Deus
174. Não é só a homilia que se
deve alimentar da Palavra de Deus. Toda a evangelização
está fundada sobre esta Palavra escutada, meditada,
vivida, celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura
é fonte da evangelização. Por
isso, é preciso formar-se continuamente na
escuta da Palavra. A Igreja não evangeliza,
se não se deixa continuamente evangelizar.
É indispensável que a Palavra de Deus
«se torne cada vez mais o coração
de toda a actividade eclesial». A Palavra de
Deus ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia,
alimenta e reforça interiormente os cristãos
e torna-os capazes de um autêntico testemunho
evangélico na vida diária. Superámos
já a velha contraposição entre
Palavra e Sacramento: a Palavra proclamada, viva e
eficaz, prepara a recepção do Sacramento
e, no Sacramento, essa Palavra alcança a sua
máxima eficácia.
175.
O estudo da Sagrada Escritura deve ser uma porta aberta
para todos os crentes. É fundamental que a
Palavra revelada fecunde radicalmente a catequese
e todos os esforços para transmitir a fé.
A evangelização requer a familiaridade
com a Palavra de Deus, e isto exige que as dioceses,
paróquias e todos os grupos católicos
proponham um estudo sério e perseverante da
Bíblia e promovam igualmente a sua leitura
orante pessoal e comunitária. Nós não
procuramos Deus tacteando, nem precisamos de esperar
que Ele nos dirija a palavra, porque realmente «Deus
falou, já não é o grande desconhecido,
mas mostrou-Se a Si mesmo». Acolhamos o tesouro
sublime da Palavra revelada!
|
Capítulo
IV
A DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
176.
Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente
no mundo. «Nenhuma definição parcial
e fragmentada, porém, chegará a dar
razão da realidade rica, complexa e dinâmica
que é a evangelização, a não
ser com o risco de a empobrecer e até mesmo
de a mutilar». Desejo agora partilhar as minhas
preocupações relacionadas com a dimensão
social da evangelização, precisamente
porque, se esta dimensão não for devidamente
explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar
o sentido autêntico e integral da missão
evangelizadora.
1.
As repercussões comunitárias e sociais
do querigma
177. O querigma possui um conteúdo inevitavelmente
social: no próprio coração do
Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso
com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio
tem uma repercussão moral imediata, cujo centro
é a caridade.
Confissão
da fé e compromisso social
178. Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser
humano implica descobrir que «assim lhe confere
uma dignidade infinita». Confessar que o Filho
de Deus assumiu a nossa carne humana significa que
cada pessoa humana foi elevada até ao próprio
coração de Deus. Confessar que Jesus
deu o seu sangue por nós impede-nos de ter
qualquer dúvida acerca do amor sem limites
que enobrece todo o ser humano. A sua redenção
tem um sentido social, porque «Deus, em Cristo,
não redime somente a pessoa individual, mas
também as relações sociais entre
os homens». Confessar que o Espírito
Santo actua em todos implica reconhecer que Ele procura
permear toda a situação humana e todos
os vínculos sociais: «O Espírito
Santo possui uma inventiva infinita, própria
da mente divina, que sabe prover a desfazer os nós
das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis».
A evangelização procura colaborar também
com esta acção libertadora do Espírito.
O próprio mistério da Trindade nos recorda
que somos criados à imagem desta comunhão
divina, pelo que não podemos realizar-nos nem
salvar-nos sozinhos. A partir do coração
do Evangelho, reconhecemos a conexão íntima
que existe entre evangelização e promoção
humana, que se deve necessariamente exprimir e desenvolver
em toda a acção evangelizadora. A aceitação
do primeiro anúncio, que convida a deixar-se
amar por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele
mesmo nos comunica, provoca na vida da pessoa e nas
suas acções uma primeira e fundamental
reacção: desejar, procurar e ter a peito
o bem dos outros.
179.
Este laço indissolúvel entre a recepção
do anúncio salvífico e um efectivo amor
fraterno exprime-se nalguns textos da Escritura, que
convém considerar e meditar atentamente para
tirar deles todas as consequências. É
uma mensagem a que frequentemente nos habituamos e
repetimos quase mecanicamente, mas sem nos assegurarmos
de que tenha real incidência na nossa vida e
nas nossas comunidades. Como é perigoso e prejudicial
este habituar-se que nos leva a perder a maravilha,
a fascinação, o entusiasmo de viver
o Evangelho da fraternidade e da justiça! A
Palavra de Deus ensina que, no irmão, está
o prolongamento permanente da Encarnação
para cada um de nós: «Sempre que fizestes
isto a um destes meus irmãos mais pequeninos,
a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). O que fizermos
aos outros, tem uma dimensão transcendente:
«Com a medida com que medirdes, assim sereis
medidos» (Mt 7, 2); e corresponde à misericórdia
divina para connosco: «Sede misericordiosos
como o vosso Pai é misericordioso. Não
julgueis e não sereis julgados; não
condeneis, e não sereis condenados; perdoai,
e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado (...).
A medida que usardes com os outros será usada
convosco» (Lc 6, 36-38). Nestes textos, exprime-se
a absoluta prioridade da «saída de si
próprio para o irmão», como um
dos dois mandamentos principais que fundamentam toda
a norma moral e como o sinal mais claro para discernir
sobre o caminho de crescimento espiritual em resposta
à doação absolutamente gratuita
de Deus. Por isso mesmo, «também o serviço
da caridade é uma dimensão constitutiva
da missão da Igreja e expressão irrenunciável
da sua própria essência». Assim
como a Igreja é missionária por natureza,
também brota inevitavelmente dessa natureza
a caridade efectiva para com o próximo, a compaixão
que compreende, assiste e promove.
O
Reino que nos chama
180. Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a
proposta do Evangelho não consiste só
numa relação pessoal com Deus. E a nossa
resposta de amor também não deveria
ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos
pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados,
o que poderia constituir uma «caridade por receita»,
uma série de acções destinadas
apenas a tranquilizar a própria consciência.
A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43);
trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida
em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida
social será um espaço de fraternidade,
de justiça, de paz, de dignidade para todos.
Por isso, tanto o anúncio como a experiência
cristã tendem a provocar consequências
sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro
o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais
se vos dará por acréscimo» (Mt
6, 33). O projecto de Jesus é instaurar o Reino
de seu Pai; por isso, pede aos seus discípulos:
«Proclamai que o Reino do Céu está
perto» (Mt 10, 7).
181.
O Reino, que se antecipa e cresce entre nós,
abrange tudo, como nos recorda aquele princípio
de discernimento que Paulo VI propunha a propósito
do verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens
e o homem todo». Sabemos que «a evangelização
não seria completa, se ela não tomasse
em consideração a interpelação
recíproca que se fazem constantemente o Evangelho
e a vida concreta, pessoal e social, dos homens».
É o critério da universalidade, próprio
da dinâmica do Evangelho, dado que o Pai quer
que todos os homens se salvem; e o seu plano de salvação
consiste em «submeter tudo a Cristo, reunindo
n’Ele o que há no céu e na terra»
(Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo mundo
inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura»
(Mc 16, 15), porque toda «a criação
se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação
dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Toda a criação
significa também todos os aspectos da vida
humana, de tal modo que «a missão do
anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação
universal. Seu mandato de caridade alcança
todas as dimensões da existência, todas
as pessoas, todos os ambientes da convivência
e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer
estranho». A verdadeira esperança cristã,
que procura o Reino escatológico, gera sempre
história.
A
doutrina da Igreja sobre as questões sociais
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de situações
contingentes estão sujeitos a maiores ou novos
desenvolvimentos e podem ser objecto de discussão,
mas não podemos evitar de ser concretos –
sem pretender entrar em detalhes – para que
os grandes princípios sociais não fiquem
meras generalidades que não interpelam ninguém.
É preciso tirar as suas consequências
práticas, para que «possam incidir com
eficácia também nas complexas situações
hodiernas». Os Pastores, acolhendo as contribuições
das diversas ciências, têm o direito de
exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz
respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa
da evangelização implica e exige uma
promoção integral de cada ser humano.
Já não se pode afirmar que a religião
deve limitar-se ao âmbito privado e serve apenas
para preparar as almas para o céu. Sabemos
que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também
nesta terra, embora estejam chamados à plenitude
eterna, porque Ele criou todas as coisas «para
nosso usufruto» (1 Tm 6, 17), para que todos
possam usufruir delas. Por isso, a conversão
cristã exige rever «especialmente tudo
o que diz respeito à ordem social e consecução
do bem comum».
183.
Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que
releguemos a religião para a intimidade secreta
das pessoas, sem qualquer influência na vida
social e nacional, sem nos preocupar com a saúde
das instituições da sociedade civil,
sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam
aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo
e silenciar a mensagem de São Francisco de
Assis e da Beata Teresa de Calcutá? Eles não
o poderiam aceitar. Uma fé autêntica
– que nunca é cómoda nem individualista
– comporta sempre um profundo desejo de mudar
o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco
melhor depois da nossa passagem por ela. Amamos este
magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e
amamos a humanidade que o habita, com todos os seus
dramas e cansaços, com os seus anseios e esperanças,
com os seus valores e fragilidades. A terra é
a nossa casa comum, e todos somos irmãos. Embora
«a justa ordem da sociedade e do Estado seja
dever central da política», a Igreja
«não pode nem deve ficar à margem
na luta pela justiça». Todos os cristãos,
incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se
com a construção dum mundo melhor. É
disto mesmo que se trata, pois o pensamento social
da Igreja é primariamente positivo e construtivo,
orienta uma acção transformadora e,
neste sentido, não deixa de ser um sinal de
esperança que brota do coração
amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une
o próprio empenho ao esforço em campo
social das demais Igrejas e Comunidades eclesiais,
tanto na reflexão doutrinal como na prática».
184.
Aqui não é o momento para explanar todas
as graves questões sociais que afectam o mundo
actual, algumas das quais já comentei no terceiro
capítulo. Este não é um documento
social e, para nos ajudar a reflectir sobre estes
vários temas, temos um instrumento muito apropriado
no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo
uso e estudo vivamente recomendo. Além disso,
nem o Papa nem a Igreja possui o monopólio
da interpretação da realidade social
ou da apresentação de soluções
para os problemas contemporâneos. Posso repetir
aqui o que indicava, com grande lucidez, Paulo VI:
«Perante situações, assim tão
diversificadas, torna-se-nos difícil tanto
o pronunciar uma palavra única, como o propor
uma solução que tenha um valor universal.
Mas, isso não é ambição
nossa, nem mesmo a nossa missão. É às
comunidades cristãs que cabe analisarem, com
objectividade, a situação própria
do seu país».
185.
Em seguida, procurarei concentrar-me sobre duas grandes
questões que me parecem fundamentais neste
momento da história. Desenvolvê-las-ei
com uma certa amplitude, porque considero que irão
determinar o futuro da humanidade. A primeira é
a inclusão social dos pobres; e a segunda,
a questão da paz e do diálogo social.
2.
A inclusão social dos pobres
186. Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez
pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados,
a preocupação pelo desenvolvimento integral
dos mais abandonados da sociedade.
Unidos
a Deus, ouvimos um clamor
187. Cada cristão e cada comunidade são
chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço
da libertação e promoção
dos pobres, para que possam integrar-se plenamente
na sociedade; isto supõe estar docilmente atentos,
para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta
percorrer as Escrituras, para descobrir como o Pai
bom quer ouvir o clamor dos pobres: «Eu bem
vi a opressão do meu povo que está no
Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspectores;
conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci
a fim de os libertar (...). E agora, vai; Eu te envio...»
(Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se solícito com
as suas necessidades: «Os filhos de Israel clamaram,
então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um
salvador» (Jz 3, 15). Ficar surdo a este clamor,
quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o
pobre, coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu
projecto, porque esse pobre «clamaria ao Senhor
contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado»
(Dt 15, 9). E a falta de solidariedade, nas suas necessidades,
influi directamente sobre a nossa relação
com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura
da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a sua
oração» (Sir 4, 6). Sempre retorna
a antiga pergunta: «Se alguém possuir
bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade,
lhe fechar o seu coração, como é
que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1
Jo 3, 17). Lembremos também com quanta convicção
o Apóstolo São Tiago retomava a imagem
do clamor dos oprimidos: «Olhai que o salário
que não pagastes, aos trabalhadores que ceifaram
os vossos campos, está a clamar; e os clamores
dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo»
(5, 4).
188.
A Igreja reconheceu que a exigência de ouvir
este clamor deriva da própria obra libertadora
da graça em cada um de nós, pelo que
não se trata de uma missão reservada
apenas a alguns: «A Igreja, guiada pelo Evangelho
da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta
o clamor pela justiça e deseja responder com
todas as suas forças». Nesta linha, se
pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos:
«Dai-lhes vós mesmos de comer»
(Mc 6, 37), que envolve tanto a cooperação
para resolver as causas estruturais da pobreza e promover
o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos
mais simples e diários de solidariedade para
com as misérias muito concretas que encontramos.
Embora um pouco desgastada e, por vezes, até
mal interpretada, a palavra «solidariedade»
significa muito mais do que alguns actos esporádicos
de generosidade; supõe a criação
duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade,
de prioridade da vida de todos sobre a apropriação
dos bens por parte de alguns.
189.
A solidariedade é uma reacção
espontânea de quem reconhece a função
social da propriedade e o destino universal dos bens
como realidades anteriores à propriedade privada.
A posse privada dos bens justifica-se para cuidar
deles e aumentá-los de modo a servirem melhor
o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida
como a decisão de devolver ao pobre o que lhe
corresponde. Estas convicções e práticas
de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho
a outras transformações estruturais
e tornam-nas possíveis. Uma mudança
nas estruturas, sem se gerar novas convicções
e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas,
mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas
e ineficazes.
190.
Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos
inteiros, dos povos mais pobres da terra, porque «a
paz funda-se não só no respeito pelos
direitos do homem, mas também no respeito pelo
direito dos povos». Lamentavelmente, até
os direitos humanos podem ser usados como justificação
para uma defesa exacerbada dos direitos individuais
ou dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando
a independência e a cultura de cada nação,
é preciso recordar-se sempre de que o planeta
é de toda a humanidade e para toda a humanidade,
e que o simples facto de ter nascido num lugar com
menores recursos ou menor desenvolvimento não
justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente.
É preciso repetir que «os mais favorecidos
devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem
colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço
dos outros». Para falarmos adequadamente dos
nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar
e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de
outras regiões do próprio país.
Precisamos de crescer numa solidariedade que «permita
a todos os povos tornarem-se artífices do seu
destino», tal como «cada homem é
chamado a desenvolver-se».
191.
Animados pelos seus Pastores, os cristãos são
chamados, em todo o lugar e circunstância, a
ouvir o clamor dos pobres, como bem se expressaram
os Bispos do Brasil: «Desejamos assumir, a cada
dia, as alegrias e esperanças, as angústias
e tristezas do povo brasileiro, especialmente das
populações das periferias urbanas e
das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem
pão, sem saúde – lesadas em seus
direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus
clamores e conhecendo o seu sofrimento, escandaliza-nos
o fato de saber que existe alimento suficiente para
todos e que a fome se deve à má repartição
dos bens e da renda. O problema se agrava com a prática
generalizada do desperdício».
192.
Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto.
Não se fala apenas de garantir a comida ou
um decoroso «sustento» para todos, mas
«prosperidade e civilização em
seus múltiplos aspectos». Isto engloba
educação, acesso aos cuidados de saúde
e especialmente trabalho, porque, no trabalho livre,
criativo, participativo e solidário, o ser
humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida.
O salário justo permite o acesso adequado aos
outros bens que estão destinados ao uso comum.
Fidelidade
ao Evangelho, para não correr em vão
193.Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se
carne em nós, quando no mais íntimo
de nós mesmos nos comovemos à vista
do sofrimento alheio. Voltemos a ler alguns ensinamentos
da Palavra de Deus sobre a misericórdia, para
que ressoem vigorosamente na vida da Igreja. O Evangelho
proclama: «Felizes os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia»
(Mt 5, 7). O Apóstolo São Tiago ensina
que a misericórdia para com os outros permite-nos
sair triunfantes no juízo divino: «Falai
e procedei como pessoas que hão-de ser julgadas
segundo a lei da liberdade. Porque, quem não
pratica a misericórdia, será julgado
sem misericórdia. Mas a misericórdia
não teme o julgamento» (2, 12-13). Neste
texto, São Tiago aparece-nos como herdeiro
do que tinha de mais rico a espiritualidade judaica
do pós-exílio, a qual atribuía
um especial valor salvífico à misericórdia:
«Redime o teu pecado pela justiça, e
as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes;
talvez isto consiga prolongar a tua prosperidade»
(Dn 4, 24). Nesta mesma perspectiva, a literatura
sapiencial fala da esmola como exercício concreto
da misericórdia para com os necessitados: «A
esmola livra da morte e limpa de todo o pecado»
(Tb 12, 9). E de forma ainda mais sensível
se exprime Ben-Sirá: «A água apaga
o fogo ardente, e a esmola expia o pecado» (3,
30). Encontramos a mesma síntese no Novo Testamento:
«Mantende entre vós uma intensa caridade,
porque o amor cobre a multidão dos pecados»
(1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou profundamente a
mentalidade dos Padres da Igreja, tendo exercido uma
resistência profética como alternativa
cultural face ao individualismo hedonista pagão.
Recordemos apenas um exemplo: «Tal como, em
perigo de incêndio, correríamos a buscar
água para o apagar (...), o mesmo deveríamos
fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha,
irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona
a ocasião de uma obra cheia de misericórdia,
alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos
é oferecida e na qual podemos extinguir o incêndio».
194.
É uma mensagem tão clara, tão
directa, tão simples e eloquente que nenhuma
hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar.
A reflexão da Igreja sobre estes textos não
deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo,
mas antes ajudar a assumi-los com coragem e ardor.
Para quê complicar o que é tão
simples? As elaborações conceptuais
hão-de favorecer o contacto com a realidade
que pretendem explicar, e não afastar-nos dela.
Isto vale sobretudo para as exortações
bíblicas que convidam, com tanta determinação,
ao amor fraterno, ao serviço humilde e generoso,
à justiça, à misericórdia
para com o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de
reconhecimento do outro, com as suas palavras e com
os seus gestos. Para quê ofuscar o que é
tão claro? Não nos preocupemos só
com não cair em erros doutrinais, mas também
com ser fiéis a este caminho luminoso de vida
e sabedoria. Porque «é frequente dirigir
aos defensores da “ortodoxia” a acusação
de passividade, de indulgência ou de cumplicidade
culpáveis frente a situações
intoleráveis de injustiça e de regimes
políticos que mantêm estas situações».
195.
Quando São Paulo foi ter com os Apóstolos
a Jerusalém para discernir «se estava
a correr ou tinha corrido em vão» (Gal
2, 2), o critério-chave de autenticidade que
lhe indicaram foi que não se esquecesse dos
pobres (cf. Gal 2, 10). Este critério importante
para que as comunidades paulinas não se deixassem
arrastar pelo estilo de vida individualista dos pagãos,
tem uma grande actualidade no contexto actual em que
tende a desenvolver-se um novo paganismo individualista.
A própria beleza do Evangelho nem sempre a
conseguimos manifestar adequadamente, mas há
um sinal que nunca deve faltar: a opção
pelos últimos, por aqueles que a sociedade
descarta e lança fora.
196.
Às vezes somos duros de coração
e de mente, esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos
com as imensas possibilidades de consumo e de distracção
que esta sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie
de alienação que nos afecta a todos,
pois «alienada é a sociedade que, nas
suas formas de organização social, de
produção e de consumo, torna mais difícil
a realização deste dom e a constituição
dessa solidariedade inter-humana».
O
lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus
197. No coração de Deus, ocupam lugar
preferencial os pobres, tanto que até Ele mesmo
«Se fez pobre» (2 Cor 8, 9). Todo o caminho
da nossa redenção está assinalado
pelos pobres. Esta salvação veio a nós,
através do «sim» duma jovem humilde,
duma pequena povoação perdida na periferia
dum grande império. O Salvador nasceu num presépio,
entre animais, como sucedia com os filhos dos mais
pobres; foi apresentado no Templo, juntamente com
dois pombinhos, a oferta de quem não podia
permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc 2, 24; Lv 5,
7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou
com suas mãos para ganhar o pão. Quando
começou a anunciar o Reino, seguiam-No multidões
de deserdados, pondo assim em evidência o que
Ele mesmo dissera: «O Espírito do Senhor
está sobre Mim, porque Me ungiu para anunciar
a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18). A quantos
sentiam o peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza,
assegurou que Deus os tinha no âmago do seu
coração: «Felizes vós,
os pobres, porque vosso é o Reino de Deus»
(Lc 6, 20); e com eles Se identificou: «Tive
fome e destes-Me de comer», ensinando que a
misericórdia para com eles é a chave
do Céu (cf. Mt 25, 34-40).
198.
Para a Igreja, a opção pelos pobres
é mais uma categoria teológica que cultural,
sociológica, política ou filosófica.
Deus «manifesta a sua misericórdia antes
de mais» a eles. Esta preferência divina
tem consequências na vida de fé de todos
os cristãos, chamados a possuírem «os
mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus»
(Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência, a
Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida
como uma «forma especial de primado na prática
da caridade cristã, testemunhada por toda a
Tradição da Igreja». Como ensinava
Bento XVI, esta opção «está
implícita na fé cristológica
naquele Deus que Se fez pobre por nós, para
enriquecer-nos com sua pobreza». Por isso, desejo
uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito
para nos ensinar. Além de participar do sensus
fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo
sofredor. É necessário que todos nos
deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização
é um convite a reconhecer a força salvífica
das suas vidas, e a colocá-los no centro do
caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo
neles: não só a emprestar-lhes a nossa
voz nas suas causas, mas também a ser seus
amigos, a escutá-los, a compreendê-los
e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer
comunicar através deles.
199.
O nosso compromisso não consiste exclusivamente
em acções ou em programas de promoção
e assistência; aquilo que o Espírito
põe em movimento não é um excesso
de activismo, mas primariamente uma atenção
prestada ao outro «considerando-o como um só
consigo mesmo». Esta atenção amiga
é o início duma verdadeira preocupação
pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar
efectivamente o seu bem. Isto implica apreciar o pobre
na sua bondade própria, com o seu modo de ser,
com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé.
O amor autêntico é sempre contemplativo,
permitindo-nos servir o outro não por necessidade
ou vaidade, mas porque ele é belo, independentemente
da sua aparência: «Do amor, pelo qual
uma pessoa é agradável a outra, depende
que lhe dê algo de graça». Quando
amado, o pobre «é estimado como de alto
valor», e isto diferencia a autêntica
opção pelos pobres de qualquer ideologia,
de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço
de interesses pessoais ou políticos. Unicamente
a partir desta proximidade real e cordial é
que podemos acompanhá-los adequadamente no
seu caminho de libertação. Só
isto tornará possível que «os
pobres se sintam, em cada comunidade cristã,
como “em casa”. Não seria, este
estilo, a maior e mais eficaz apresentação
da boa nova do Reino?» Sem a opção
preferencial pelos pobres, «o anúncio
do Evangelho – e este anúncio é
a primeira caridade – corre o risco de não
ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de palavras
que a actual sociedade da comunicação
diariamente nos apresenta».
200.
Dado que esta Exortação se dirige aos
membros da Igreja Católica, desejo afirmar,
com mágoa, que a pior discriminação
que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual.
A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura
à fé; tem necessidade de Deus e não
podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua
bênção, a sua Palavra, a celebração
dos Sacramentos e a proposta dum caminho de crescimento
e amadurecimento na fé. A opção
preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente,
numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária.
201.
Ninguém deveria dizer que se mantém
longe dos pobres, porque as suas opções
de vida implicam prestar mais atenção
a outras incumbências. Esta é uma desculpa
frequente nos ambientes académicos, empresariais
ou profissionais, e até mesmo eclesiais. Embora
se possa dizer, em geral, que a vocação
e a missão próprias dos fiéis
leigos é a transformação das
diversas realidades terrenas para que toda a actividade
humana seja transformada pelo Evangelho, ninguém
pode sentir-se exonerado da preocupação
pelos pobres e pela justiça social: «A
conversão espiritual, a intensidade do amor
a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça
e pela paz, o sentido evangélico dos pobres
e da pobreza são exigidos a todos». Temo
que também estas palavras sejam objecto apenas
de alguns comentários, sem verdadeira incidência
prática. Apesar disso, tenho confiança
na abertura e nas boas disposições dos
cristãos e peço-vos que procureis, comunitariamente,
novos caminhos para acolher esta renovada proposta.
Economia
e distribuição das entradas
202. A necessidade de resolver as causas estruturais
da pobreza não pode esperar; e não apenas
por uma exigência pragmática de obter
resultados e ordenar a sociedade, mas também
para a curar duma mazela que a torna frágil
e indigna e que só poderá levá-la
a novas crises. Os planos de assistência, que
acorrem a determinadas emergências, deveriam
considerar-se apenas como respostas provisórias.
Enquanto não forem radicalmente solucionados
os problemas dos pobres, renunciando à autonomia
absoluta dos mercados e da especulação
financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade
social, não se resolverão os problemas
do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade
é a raiz dos males sociais.
203.
A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são
questões que deveriam estruturar toda a política
económica, mas às vezes parecem somente
apêndices adicionados de fora para completar
um discurso político sem perspectivas nem programas
de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras
se tornaram molestas para este sistema! Molesta que
se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade
mundial, molesta que se fale de distribuição
dos bens, molesta que se fale de defender os postos
de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos
fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um
compromisso em prol da justiça. Outras vezes
acontece que estas palavras se tornam objecto duma
manipulação oportunista que as desonra.
A cómoda indiferença diante destas questões
esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo
o significado. A vocação dum empresário
é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar
por um sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe
servir verdadeiramente o bem comum com o seu esforço
por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais
acessíveis a todos.
204.
Não podemos mais confiar nas forças
cegas e na mão invisível do mercado.
O crescimento equitativo exige algo mais do que o
crescimento económico, embora o pressuponha;
requer decisões, programas, mecanismos e processos
especificamente orientados para uma melhor distribuição
das entradas, para a criação de oportunidades
de trabalho, para uma promoção integral
dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe
de mim propor um populismo irresponsável, mas
a economia não pode mais recorrer a remédios
que são um novo veneno, como quando se pretende
aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho
e criando assim novos excluídos.
205.
Peço a Deus que cresça o número
de políticos capazes de entrar num autêntico
diálogo que vise efectivamente sanar as raízes
profundas e não a aparência dos males
do nosso mundo. A política, tão denegrida,
é uma sublime vocação, é
uma das formas mais preciosas da caridade, porque
busca o bem comum. Temos de nos convencer que a caridade
«é o princípio não só
das micro-relações estabelecidas entre
amigos, na família, no pequeno grupo, mas também
das macro-relações como relacionamentos
sociais, económicos, políticos».
Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos,
que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o
povo, a vida dos pobres. É indispensável
que os governantes e o poder financeiro levantem o
olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando
que haja trabalho digno, instrução e
cuidados sanitários para todos os cidadãos.
E porque não acudirem a Deus pedindo-Lhe que
inspire os seus planos? Estou convencido de que, a
partir duma abertura à transcendência,
poder-se-ia formar uma nova mentalidade política
e económica que ajudaria a superar a dicotomia
absoluta entre a economia e o bem comum social.
206.
A economia – como indica o próprio termo
– deveria ser a arte de alcançar uma
adequada administração da casa comum,
que é o mundo inteiro. Todo o acto económico
duma certa envergadura, que se realiza em qualquer
parte do planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo
que nenhum Governo pode agir à margem duma
responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada
vez mais difícil encontrar soluções
a nível local para as enormes contradições
globais, pelo que a política local se satura
de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar
uma economia global saudável, precisamos, neste
momento da história, de um modo mais eficiente
de interacção que, sem prejuízo
da soberania das nações, assegure o
bem-estar económico a todos os países
e não apenas a alguns.
207.
E qualquer comunidade da Igreja, na medida em que
pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente
nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam
com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá
também o risco da sua dissolução,
mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos.
Facilmente acabará submersa pelo mundanismo
espiritual, dissimulado em práticas religiosas,
reuniões infecundas ou discursos vazios.
208.
Se alguém se sentir ofendido com as minhas
palavras, saiba que as exprimo com estima e com a
melhor das intenções, longe de qualquer
interesse pessoal ou ideologia política. A
minha palavra não é a dum inimigo nem
a dum opositor. A mim interessa-me apenas procurar
que, quantos vivem escravizados por uma mentalidade
individualista, indiferente e egoísta, possam
libertar-se dessas cadeias indignas e alcancem um
estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre,
mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta
terra.
Cuidar
da fragilidade
209. Jesus, o evangelizador por excelência e
o Evangelho em pessoa, identificou-Se especialmente
com os mais pequeninos (cf. Mt 25, 40). Isto recorda-nos,
a todos os cristãos, que somos chamados a cuidar
dos mais frágeis da Terra. Mas, no modelo «do
êxito» e «individualista»
em vigor, parece que não faz sentido investir
para que os lentos, fracos ou menos dotados possam
também singrar na vida.
210.
Embora aparentemente não nos traga benefícios
tangíveis e imediatos, é indispensável
prestar atenção e debruçar-nos
sobre as novas formas de pobreza e fragilidade, nas
quais somos chamados a reconhecer Cristo sofredor:
os sem abrigo, os toxicodependentes, os refugiados,
os povos indígenas, os idosos cada vez mais
sós e abandonados, etc. Os migrantes representam
um desafio especial para mim, por ser Pastor duma
Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos.
Por isso, exorto os países a uma abertura generosa,
que, em vez de temer a destruição da
identidade local, seja capaz de criar novas sínteses
culturais. Como são belas as cidades que superam
a desconfiança doentia e integram os que são
diferentes, fazendo desta integração
um novo factor de progresso! Como são encantadoras
as cidades que, já no seu projecto arquitectónico,
estão cheias de espaços que unem, relacionam,
favorecem o reconhecimento do outro!
211.
Sempre me angustiou a situação das pessoas
que são objecto das diferentes formas de tráfico.
Quem dera que se ouvisse o grito de Deus, perguntando
a todos nós: «Onde está o teu
irmão?» (Gn 4, 9). Onde está o
teu irmão escravo? Onde está o irmão
que estás matando cada dia na pequena fábrica
clandestina, na rede da prostituição,
nas crianças usadas para a mendicidade, naquele
que tem de trabalhar às escondidas porque não
foi regularizado? Não nos façamos de
distraídos! Há muita cumplicidade...
A pergunta é para todos! Nas nossas cidades,
está instalado este crime mafioso e aberrante,
e muitos têm as mãos cheias de sangue
devido a uma cómoda e muda cumplicidade.
212.
Duplamente pobres são as mulheres que padecem
situações de exclusão, maus-tratos
e violência, porque frequentemente têm
menores possibilidades de defender os seus direitos.
E todavia, também entre elas, encontramos continuamente
os mais admiráveis gestos de heroísmo
quotidiano na defesa e cuidado da fragilidade das
suas famílias.
213.
Entre estes seres frágeis, de que a Igreja
quer cuidar com predilecção, estão
também os nascituros, os mais inermes e inocentes
de todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana
para poder fazer deles o que apetece, tirando-lhes
a vida e promovendo legislações para
que ninguém o possa impedir. Muitas vezes,
para ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja
faz da vida dos nascituros, procura-se apresentar
a sua posição como ideológica,
obscurantista e conservadora; e no entanto esta defesa
da vida nascente está intimamente ligada à
defesa de qualquer direito humano. Supõe a
convicção de que um ser humano é
sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação
e em cada etapa do seu desenvolvimento. É fim
em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras
dificuldades. Se cai esta convicção,
não restam fundamentos sólidos e permanentes
para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre
sujeitos às conveniências contingentes
dos poderosos de turno. Por si só a razão
é suficiente para se reconhecer o valor inviolável
de qualquer vida humana, mas, se a olhamos também
a partir da fé, «toda a violação
da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança
junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do homem».
214.
E precisamente porque é uma questão
que mexe com a coerência interna da nossa mensagem
sobre o valor da pessoa humana, não se deve
esperar que a Igreja altere a sua posição
sobre esta questão. A propósito, quero
ser completamente honesto. Este não é
um assunto sujeito a supostas reformas ou «modernizações».
Não é opção progressista
pretender resolver os problemas, eliminando uma vida
humana. Mas é verdade também que temos
feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres
que estão em situações muito
duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução
rápida para as suas profundas angústias,
particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu
como resultado duma violência ou num contexto
de extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender
estas situações de tamanho sofrimento?
215.
Há outros seres frágeis e indefesos,
que muitas vezes ficam à mercê dos interesses
económicos ou dum uso indiscriminado. Refiro-me
ao conjunto da criação. Nós,
os seres humanos, não somos meramente beneficiários,
mas guardiões das outras criaturas. Pela nossa
realidade corpórea, Deus uniu-nos tão
estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação
do solo é como uma doença para cada
um, e podemos lamentar a extinção de
uma espécie como se fosse uma mutilação.
Não deixemos que, à nossa passagem,
fiquem sinais de destruição e de morte
que afectem a nossa vida e a das gerações
futuras. Neste sentido, faço meu o expressivo
e profético lamento que, já há
vários anos, formularam os Bispos das Filipinas:
«Uma incrível variedade de insectos vivia
no bosque; e estavam ocupados com todo o tipo de tarefas.
(...) Os pássaros voavam pelo ar, as suas penas
brilhantes e os seus variados gorjeios acrescentavam
cor e melodia ao verde dos bosques. (...) Deus quis
que esta terra fosse para nós, suas criaturas
especiais, mas não para a podermos destruir
ou transformar num baldio. (...) Depois de uma única
noite de chuva, observa os rios de castanho-chocolate
da tua localidade e lembra-te que estão a arrastar
o sangue vivo da terra para o mar. (...) Como poderão
os peixes nadar em esgotos como o rio Pasig e muitos
outros rios que poluímos? Quem transformou
o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos
despojados de vida e de cor?»
216.
Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São
Francisco de Assis, todos nós, cristãos,
somos chamados a cuidar da fragilidade do povo e do
mundo em que vivemos.
3.
O bem comum e a paz social
217. Falámos muito sobre a alegria e o amor,
mas a Palavra de Deus menciona também o fruto
da paz (cf. Gal 5, 22).
218.
A paz social não pode ser entendida como irenismo
ou como mera ausência de violência obtida
pela imposição de uma parte sobre as
outras. Também seria uma paz falsa aquela que
servisse como desculpa para justificar uma organização
social que silencie ou tranquilize os mais pobres,
de modo que aqueles que gozam dos maiores benefícios
possam manter o seu estilo de vida sem sobressaltos,
enquanto os outros sobrevivem como podem. As reivindicações
sociais, que têm a ver com a distribuição
das entradas, a inclusão social dos pobres
e os direitos humanos não podem ser sufocados
com o pretexto de construir um consenso de escritório
ou uma paz efémera para uma minoria feliz.
A dignidade da pessoa humana e o bem comum estão
por cima da tranquilidade de alguns que não
querem renunciar aos seus privilégios. Quando
estes valores são afectados, é necessária
uma voz profética.
219.
E a paz também «não se reduz a
uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio
sempre precário das forças. Constrói-se,
dia a dia, na busca duma ordem querida por Deus, que
traz consigo uma justiça mais perfeita entre
os homens». Enfim, uma paz que não surja
como fruto do desenvolvimento integral de todos, não
terá futuro e será sempre semente de
novos conflitos e variadas formas de violência.
220.
Em cada nação, os habitantes desenvolvem
a dimensão social da sua vida, configurando-se
como cidadãos responsáveis dentro de
um povo e não como massa arrastada pelas forças
dominantes. Lembremo-nos que «ser cidadão
fiel é uma virtude, e a participação
na vida política é uma obrigação
moral». Mas, tornar-se um povo é algo
mais, exigindo um processo constante no qual cada
nova geração está envolvida.
É um trabalho lento e árduo que exige
querer integrar-se e aprender a fazê-lo até
se desenvolver uma cultura do encontro numa harmonia
pluriforme.
221.
Para avançar nesta construção
de um povo em paz, justiça e fraternidade,
há quatro princípios relacionados com
tensões bipolares próprias de toda a
realidade social. Derivam dos grandes postulados da
Doutrina Social da Igreja, que constituem o «primeiro
e fundamental parâmetro de referência
para a interpretação e o exame dos fenómenos
sociais». À luz deles, desejo agora propor
estes quatro princípios que orientam especificamente
o desenvolvimento da convivência social e a
construção de um povo onde as diferenças
se harmonizam dentro de um projecto comum. Faço-o
na convicção de que a sua aplicação
pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de
cada nação e no mundo inteiro.
O
tempo é superior ao espaço
222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude
e o limite. A plenitude gera a vontade de possuir
tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela
frente. O «tempo», considerado em sentido
amplo, faz referimento à plenitude como expressão
do horizonte que se abre diante de nós, e o
momento é expressão do limite que se
vive num espaço circunscrito. Os cidadãos
vivem em tensão entre a conjuntura do momento
e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que
nos abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui
surge um primeiro princípio para progredir
na construção de um povo: o tempo é
superior ao espaço.
223.
Este princípio permite trabalhar a longo prazo,
sem a obsessão pelos resultados imediatos.
Ajuda a suportar, com paciência, situações
difíceis e hostis ou as mudanças de
planos que o dinamismo da realidade impõe.
É um convite a assumir a tensão entre
plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um
dos pecados que, às vezes, se nota na actividade
sociopolítica é privilegiar os espaços
de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade
ao espaço leva-nos a proceder como loucos para
resolver tudo no momento presente, para tentar tomar
posse de todos os espaços de poder e autoafirmação.
É cristalizar os processos e pretender pará-los.
Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com
iniciar processos do que possuir espaços. O
tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os
em elos duma cadeia em constante crescimento, sem
marcha atrás. Trata-se de privilegiar as acções
que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem
outras pessoas e grupos que os desenvolverão
até frutificar em acontecimentos históricos
importantes. Sem ansiedade, mas com convicções
claras e tenazes.
224.
Às vezes interrogo-me sobre quais são
as pessoas que, no mundo actual, se preocupam realmente
mais com gerar processos que construam um povo do
que com obter resultados imediatos que produzam ganhos
políticos fáceis, rápidos e efémeros,
mas que não constroem a plenitude humana. A
história julgá-los-á talvez com
aquele critério enunciado por Romano Guardini:
«O único padrão para avaliar justamente
uma época é perguntar-se até
que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma
autêntica razão de ser a plenitude da
existência humana, de acordo com o carácter
peculiar e as possibilidades da dita época».
225.
Este critério é muito apropriado também
para a evangelização, que exige ter
presente o horizonte, adoptar os processos possíveis
e a estrada longa. O próprio Senhor, na sua
vida mortal, deu a entender várias vezes aos
seus discípulos que havia coisas que ainda
não podiam compreender e era necessário
esperar o Espírito Santo (cf. Jo 16, 12-13).
A parábola do trigo e do joio (cf. Mt 13, 24-30)
descreve um aspecto importante de evangelização
que consiste em mostrar como o inimigo pode ocupar
o espaço do Reino e causar dano com o joio,
mas é vencido pela bondade do trigo que se
manifesta com o tempo.
A
unidade prevalece sobre o conflito
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado;
deve ser aceitado. Mas, se ficamos encurralados nele,
perdemos a perspectiva, os horizontes reduzem-se e
a própria realidade fica fragmentada. Quando
paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido
da unidade profunda da realidade.
227.
Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo
e passam adiante como se nada fosse, lavam-se as mãos
para poder continuar com a sua vida. Outros entram
de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros,
perdem o horizonte, projectam nas instituições
as suas próprias confusões e insatisfações
e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas
há uma terceira forma, a mais adequada, de
enfrentar o conflito: é aceitar suportar o
conflito, resolvê-lo e transformá-lo
no elo de ligação de um novo processo.
«Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9)!
228.
Deste modo, torna-se possível desenvolver uma
comunhão nas diferenças, que pode ser
facilitada só por pessoas magnânimas
que têm a coragem de ultrapassar a superfície
conflitual e consideram os outros na sua dignidade
mais profunda. Por isso, é necessário
postular um princípio que é indispensável
para construir a amizade social: a unidade é
superior ao conflito. A solidariedade, entendida no
seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim
um estilo de construção da história,
um âmbito vital onde os conflitos, as tensões
e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada
que gera nova vida. Não é apostar no
sincretismo ou na absorção de um no
outro, mas na resolução num plano superior
que conserva em si as preciosas potencialidades das
polaridades em contraste.
229.
Este critério evangélico recorda-nos
que Cristo tudo unificou em Si: céu e terra,
Deus e homem, tempo e eternidade, carne e espírito,
pessoa e sociedade. O sinal distintivo desta unidade
e reconciliação de tudo n’Ele
é a paz. Cristo «é a nossa paz»
(Ef 2, 14). O anúncio do Evangelho começa
sempre com a saudação de paz; e a paz
coroa e cimenta em cada momento as relações
entre os discípulos. A paz é possível,
porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente conflitualidade,
«pacificando pelo sangue da sua cruz»
(Col 1, 20). Entretanto, se examinarmos a fundo estes
textos bíblicos, descobriremos que o primeiro
âmbito onde somos chamados a conquistar esta
pacificação nas diferenças é
a própria interioridade, a própria vida
sempre ameaçada pela dispersão dialéctica.
Com corações despedaçados em
milhares de fragmentos, será difícil
construir uma verdadeira paz social.
230.
O anúncio de paz não é a proclamação
duma paz negociada, mas a convicção
de que a unidade do Espírito harmoniza todas
as diversidades. Supera qualquer conflito numa nova
e promissora síntese. A diversidade é
bela, quando aceita entrar constantemente num processo
de reconciliação até selar uma
espécie de pacto cultural que faça surgir
uma «diversidade reconciliada», como justamente
ensinaram os Bispos da República Democrática
do Congo: «A diversidade das nossas etnias é
uma riqueza. (…) Só com a unidade, a
conversão dos corações e a reconciliação
é que poderemos fazer avançar o nosso
país».
A
realidade é mais importante do que a ideia
231. Existe também uma tensão bipolar
entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente
é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve
estabelecer-se um diálogo constante, evitando
que a ideia acabe por separar-se da realidade. É
perigoso viver no reino só da palavra, da imagem,
do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro
princípio: a realidade é superior à
ideia. Isto supõe evitar várias formas
de ocultar a realidade: os purismos angélicos,
os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas,
os projectos mais formais que reais, os fundamentalismos
anti-históricos, os eticismos sem bondade,
os intelectualismos sem sabedoria.
232.
A ideia – as elaborações conceituais
– está ao serviço da captação,
compreensão e condução da realidade.
A ideia desligada da realidade dá origem a
idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo,
classificam ou definem, mas não empenham. O
que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio.
É preciso passar do nominalismo formal à
objectividade harmoniosa. Caso contrário, manipula-se
a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica
pela cosmética. Há políticos
– e também líderes religiosos
– que se interrogam por que motivo o povo não
os compreende nem segue, se as suas propostas são
tão lógicas e claras. Possivelmente
é porque se instalaram no reino das puras ideias
e reduziram a política ou a fé à
retórica; outros esqueceram a simplicidade
e importaram de fora uma racionalidade alheia à
gente.
233.
A realidade é superior à ideia. Este
critério está ligado à encarnação
da Palavra e ao seu cumprimento: «Reconheceis
que o espírito é de Deus por isto: todo
o espírito que confessa Jesus Cristo que veio
em carne mortal é de Deus». (1 Jo 4,
2). O critério da realidade, duma Palavra já
encarnada e sempre procurando encarnar-se, é
essencial à evangelização. Por
um lado, leva-nos a valorizar a história da
Igreja como história de salvação,
a recordar os nossos Santos que inculturaram o Evangelho
na vida dos nossos povos, a recolher a rica tradição
bimilenária da Igreja, sem pretender elaborar
um pensamento desligado deste tesouro como se quiséssemos
inventar o Evangelho. Por outro lado, este critério
impele-nos a pôr em prática a Palavra,
a realizar obras de justiça e caridade nas
quais se torne fecunda esta Palavra. Não pôr
em prática, não levar à realidade
a Palavra é construir sobre a areia, permanecer
na pura ideia e degenerar em intimismos e gnosticismos
que não dão fruto, que esterilizam o
seu dinamismo.
O
todo é superior à parte
234. Entre a globalização e a localização
também se gera uma tensão. É
preciso prestar atenção à dimensão
global para não cair numa mesquinha quotidianidade.
Ao mesmo tempo convém não perder de
vista o que é local, que nos faz caminhar com
os pés por terra. As duas coisas unidas impedem
de cair em algum destes dois extremos: o primeiro,
que os cidadãos vivam num universalismo abstracto
e globalizante, miméticos passageiros do carro
de apoio, admirando os fogos de artifício do
mundo, que é de outros, com a boca aberta e
aplausos programados; o outro extremo é que
se transformem num museu folclórico de eremitas
localistas, condenados a repetir sempre as mesmas
coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que
é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha
fora das suas fronteiras.
235.
O todo é mais do que a parte, sendo também
mais do que a simples soma delas. Portanto, não
se deve viver demasiado obcecados por questões
limitadas e particulares. É preciso alargar
sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará
benefícios a todos nós. Mas há
que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É
necessário mergulhar as raízes na terra
fértil e na história do próprio
lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no
pequeno, no que está próximo, mas com
uma perspectiva mais ampla. Da mesma forma, uma pessoa
que conserva a sua peculiaridade pessoal e não
esconde a sua identidade, quando se integra cordialmente
numa comunidade não se aniquila, mas recebe
sempre novos estímulos para o seu próprio
desenvolvimento. Não é a esfera global
que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.
236.
Aqui o modelo não é a esfera, pois não
é superior às partes e, nela, cada ponto
é equidistante do centro, não havendo
diferenças entre um ponto e o outro. O modelo
é o poliedro, que reflecte a confluência
de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade.
Tanto a acção pastoral como a acção
política procuram reunir nesse poliedro o melhor
de cada um. Ali entram os pobres com a sua cultura,
os seus projectos e as suas próprias potencialidades.
Até mesmo as pessoas que possam ser criticadas
pelos seus erros, têm algo a oferecer que não
se deve perder. É a união dos povos,
que, na ordem universal, conservam a sua própria
peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa
sociedade que procura um bem comum que verdadeiramente
incorpore a todos.
237.
A nós, cristãos, este princípio
fala-nos também da totalidade ou integridade
do Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a
pregar. A sua riqueza plena incorpora académicos
e operários, empresários e artistas,
incorpora todos. A «mística popular»
acolhe, a seu modo, o Evangelho inteiro e encarna-o
em expressões de oração, de fraternidade,
de justiça, de luta e de festa. A Boa Nova
é a alegria dum Pai que não quer que
se perca nenhum dos seus pequeninos. Assim nasce a
alegria no Bom Pastor que encontra a ovelha perdida
e a reintegra no seu rebanho. O Evangelho é
fermento que leveda toda a massa e cidade que brilha
no cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho
possui um critério de totalidade que lhe é
intrínseco: não cessa de ser Boa Nova
enquanto não for anunciado a todos, enquanto
não fecundar e curar todas as dimensões
do homem, enquanto não unir todos os homens
à volta da mesa do Reino. O todo é superior
à parte.
4.
O diálogo social como contribuição
para a paz
238. A evangelização implica também
um caminho de diálogo. Neste momento, existem
sobretudo três campos de diálogo onde
a Igreja deve estar presente, cumprindo um serviço
a favor do pleno desenvolvimento do ser humano e procurando
o bem comum: o diálogo com os Estados, com
a sociedade – que inclui o diálogo com
as culturas e as ciências – e com os outros
crentes que não fazem parte da Igreja Católica.
Em todos os casos, «a Igreja fala a partir da
luz que a fé lhe dá», oferece
a sua experiência de dois mil anos e conserva
sempre na memória as vidas e sofrimentos dos
seres humanos. Isto ultrapassa a razão humana,
mas também tem um significado que pode enriquecer
a quantos não crêem e convida a razão
a alargar as suas perspectivas.
239.
A Igreja proclama o «evangelho da paz»
(Ef 6, 15) e está aberta à colaboração
com todas as autoridades nacionais e internacionais
para cuidar deste bem universal tão grande.
Ao anunciar Jesus Cristo, que é a paz em pessoa
(cf. Ef 2, 14), a nova evangelização
incentiva todo o baptizado a ser instrumento de pacificação
e testemunha credível duma vida reconciliada.
É hora de saber como projectar, numa cultura
que privilegie o diálogo como forma de encontro,
a busca de consenso e de acordos mas sem a separar
da preocupação por uma sociedade justa,
capaz de memória e sem exclusões. O
autor principal, o sujeito histórico deste
processo, é a gente e a sua cultura, não
uma classe, uma fracção, um grupo, uma
elite. Não precisamos de um projecto de poucos
para poucos, ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal
que se aproprie de um sentimento colectivo. Trata-se
de um acordo para viver juntos, de um pacto social
e cultural.
240.
O cuidado e a promoção do bem comum
da sociedade compete ao Estado. Este, com base nos
princípios de subsidiariedade e solidariedade
e com um grande esforço de diálogo político
e criação de consensos, desempenha um
papel fundamental – que não pode ser
delegado – na busca do desenvolvimento integral
de todos. Este papel exige, nas circunstâncias
actuais, uma profunda humildade social.
241.
No diálogo com o Estado e com a sociedade,
a Igreja não tem soluções para
todas as questões específicas. Mas,
juntamente com as várias forças sociais,
acompanha as propostas que melhor correspondam à
dignidade da pessoa humana e ao bem comum. Ao fazê-lo,
propõe sempre com clareza os valores fundamentais
da existência humana, para transmitir convicções
que possam depois traduzir-se em acções
políticas.
O
diálogo entre a fé, a razão e
as ciências
242. O diálogo entre ciência e fé
também faz parte da acção evangelizadora
que favorece a paz. O cientificismo e o positivismo
recusam-se a «admitir, como válidas,
formas de conhecimento distintas daquelas que são
próprias das ciências positivas».
A Igreja propõe outro caminho, que exige uma
síntese entre um uso responsável das
metodologias próprias das ciências empíricas
e os outros saberes como a filosofia, a teologia,
e a própria fé que eleva o ser humano
até ao mistério que transcende a natureza
e a inteligência humana. A fé não
tem medo da razão; pelo contrário, procura-a
e tem confiança nela, porque «a luz da
razão e a luz da fé provêm ambas
de Deus», e não se podem contradizer
entre si. A evangelização está
atenta aos progressos científicos para os iluminar
com a luz da fé e da lei natural, tendo em
vista procurar que sempre respeitem a centralidade
e o valor supremo da pessoa humana em todas as fases
da sua existência. Toda a sociedade pode ser
enriquecida através deste diálogo que
abre novos horizontes ao pensamento e amplia as possibilidades
da razão. Também este é um caminho
de harmonia e pacificação.
243.
A Igreja não pretende deter o progresso admirável
das ciências. Pelo contrário, alegra-se
e inclusivamente desfruta reconhecendo o enorme potencial
que Deus deu à mente humana. Quando o progresso
das ciências, mantendo-se com rigor académico
no campo do seu objecto específico, torna evidente
uma determinada conclusão que a razão
não pode negar, a fé não a contradiz.
Nem os crentes podem pretender que uma opinião
científica que lhes agrada – e que nem
sequer foi suficientemente comprovada – adquira
o peso dum dogma de fé. Em certas ocasiões,
porém, alguns cientistas vão mais além
do objecto formal da sua disciplina e exageram com
afirmações ou conclusões que
extravasam o campo da própria ciência.
Neste caso, não é a razão que
se propõe, mas uma determinada ideologia que
fecha o caminho a um diálogo autêntico,
pacífico e frutuoso.
O
diálogo ecuménico
244. O compromisso ecuménico corresponde à
oração do Senhor Jesus pedindo «que
todos sejam um só» (Jo 17, 21). A credibilidade
do anúncio cristão seria muito maior,
se os cristãos superassem as suas divisões
e a Igreja realizasse «a plenitude da catolicidade
que lhe é própria naqueles filhos que,
embora incorporados pelo Baptismo, estão separados
da sua plena comunhão». Devemos sempre
lembrar-nos de que somos peregrinos, e peregrinamos
juntos. Para isso, devemos abrir o coração
ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças,
e olhar primariamente para o que procuramos: a paz
no rosto do único Deus. O abrir-se ao outro
tem algo de artesanal, a paz é artesanal. Jesus
disse-nos: «Felizes os pacificadores»
(Mt 5, 9). Neste esforço, mesmo entre nós,
cumpre-se a antiga profecia: «Transformarão
as suas espadas em relhas de arado» (Is 2, 4).
245.
Sob esta luz, o ecumenismo é uma contribuição
para a unidade da família humana. A presença
no Sínodo do Patriarca de Constantinopla, Sua
Santidade Bartolomeu I, e do Arcebispo de Cantuária,
Sua Graça Rowan Douglas Williams, foi um verdadeiro
dom de Deus e um precioso testemunho cristão.
246.
Dada a gravidade do contra-testemunho da divisão
entre cristãos, sobretudo na Ásia e
na África, torna-se urgente a busca de caminhos
de unidade. Os missionários, nesses continentes,
referem repetidamente as críticas, queixas
e sarcasmos que recebem por causa do escândalo
dos cristãos divididos. Se nos concentrarmos
nas convicções que nos unem e recordarmos
o princípio da hierarquia das verdades, poderemos
caminhar decididamente para formas comuns de anúncio,
de serviço e de testemunho. A imensa multidão
que não recebeu o anúncio de Jesus Cristo
não pode deixar-nos indiferentes. Por isso,
o esforço por uma unidade que facilite a recepção
de Jesus Cristo deixa de ser mera diplomacia ou um
dever forçado para se transformar num caminho
imprescindível da evangelização.
Os sinais de divisão entre cristãos,
em países que já estão dilacerados
pela violência, juntam outros motivos de conflito
vindos da parte de quem deveria ser um activo fermento
de paz. São tantas e tão valiosas as
coisas que nos unem! E, se realmente acreditamos na
acção livre e generosa do Espírito,
quantas coisas podemos aprender uns dos outros! Não
se trata apenas de receber informações
sobre os outros para os conhecermos melhor, mas de
recolher o que o Espírito semeou neles como
um dom também para nós. Só para
dar um exemplo, no diálogo com os irmãos
ortodoxos, nós, os católicos, temos
a possibilidade de aprender algo mais sobre o significado
da colegialidade episcopal e sobre a sua experiência
da sinodalidade. Através dum intercâmbio
de dons, o Espírito pode conduzir-nos cada
vez mais para a verdade e o bem.
As
relações com o Judaísmo
247. Um olhar muito especial é dirigido ao
povo judeu, cuja Aliança com Deus nunca foi
revogada, porque «os dons e o chamamento de
Deus são irrevogáveis» (Rm 11,
29). A Igreja, que partilha com o Judaísmo
uma parte importante das Escrituras Sagradas, considera
o povo da Aliança e a sua fé como uma
raiz sagrada da própria identidade cristã
(cf. Rm 11, 16-18). Como cristãos, não
podemos considerar o Judaísmo como uma religião
alheia, nem incluímos os judeus entre quantos
são chamados a deixar os ídolos para
se converter ao verdadeiro Deus (cf. 1 Ts 1, 9). Juntamente
com eles, acreditamos no único Deus que actua
na história, e acolhemos, com eles, a Palavra
revelada comum.
248.
O diálogo e a amizade com os filhos de Israel
fazem parte da vida dos discípulos de Jesus.
O afecto que se desenvolveu leva-nos a lamentar, sincera
e amargamente, as terríveis perseguições
de que foram e são objecto, particularmente
aquelas que envolvem ou envolveram cristãos.
249.
Deus continua a operar no povo da Primeira Aliança
e faz nascer tesouros de sabedoria que brotam do seu
encontro com a Palavra divina. Por isso, a Igreja
também se enriquece quando recolhe os valores
do Judaísmo. Embora algumas convicções
cristãs sejam inaceitáveis para o Judaísmo
e a Igreja não possa deixar de anunciar Jesus
como Senhor e Messias, há uma rica complementaridade
que nos permite ler juntos os textos da Bíblia
hebraica e ajudar-nos mutuamente a desentranhar as
riquezas da Palavra, bem como compartilhar muitas
convicções éticas e a preocupação
comum pela justiça e o desenvolvimento dos
povos.
O
diálogo inter-religioso
250. Uma atitude de abertura na verdade e no amor
deve caracterizar o diálogo com os crentes
das religiões não-cristãs, apesar
dos vários obstáculos e dificuldades,
de modo particular os fundamentalismos de ambos os
lados. Este diálogo inter-religioso é
uma condição necessária para
a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever
para os cristãos e também para outras
comunidades religiosas. Este diálogo é,
em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana
ou simplesmente – como propõem os Bispos
da Índia – «estar aberto a eles,
compartilhando as suas alegrias e penas». Assim
aprendemos a aceitar os outros, na sua maneira diferente
de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método,
poderemos assumir juntos o dever de servir a justiça
e a paz, que deverá tornar-se um critério
básico de todo o intercâmbio. Um diálogo,
no qual se procurem a paz e a justiça social,
é em si mesmo, para além do aspecto
meramente pragmático, um compromisso ético
que cria novas condições sociais. Os
esforços à volta dum tema específico
podem transformar-se num processo em que, através
da escuta do outro, ambas as partes encontram purificação
e enriquecimento. Portanto, estes esforços
também podem ter o significado de amor à
verdade.
251.
Neste diálogo, sempre amável e cordial,
nunca se deve descuidar o vínculo essencial
entre diálogo e anúncio, que leva a
Igreja a manter e intensificar as relações
com os não-cristãos. Um sincretismo
conciliador seria, no fundo, um totalitarismo de quantos
pretendem conciliar prescindindo de valores que os
transcendem e dos quais não são donos.
A verdadeira abertura implica conservar-se firme nas
próprias convicções mais profundas,
com uma identidade clara e feliz, mas «disponível
para compreender as do outro» e «sabendo
que o diálogo pode enriquecer a ambos».
Não nos serve uma abertura diplomática
que diga sim a tudo para evitar problemas, porque
seria um modo de enganar o outro e negar-lhe o bem
que se recebeu como um dom para partilhar com generosidade.
Longe de se contraporem, a evangelização
e o diálogo inter-religioso apoiam-se e alimentam-se
reciprocamente.
252.
Neste tempo, adquire grande importância a relação
com os crentes do Islão, hoje particularmente
presentes em muitos países de tradição
cristã, onde podem celebrar livremente o seu
culto e viver integrados na sociedade. Não
se deve jamais esquecer que eles «professam
seguir a fé de Abraão, e connosco adoram
o Deus único e misericordioso, que há-de
julgar os homens no último dia». Os escritos
sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos
cristãos; Jesus Cristo e Maria são objecto
de profunda veneração e é admirável
ver como jovens e idosos, mulheres e homens do Islão
são capazes de dedicar diariamente tempo à
oração e participar fielmente nos seus
ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos deles têm
uma profunda convicção de que a própria
vida, na sua totalidade, é de Deus e para Deus.
Reconhecem também a necessidade de Lhe responder
com um compromisso ético e com a misericórdia
para com os mais pobres.
253.
Para sustentar o diálogo com o Islão
é indispensável a adequada formação
dos interlocutores, não só para que
estejam sólida e jubilosamente radicados na
sua identidade, mas também para que sejam capazes
de reconhecer os valores dos outros, compreender as
preocupações que subjazem às
suas reivindicações e fazer aparecer
as convicções comuns. Nós, cristãos,
deveríamos acolher com afecto e respeito os
imigrantes do Islão que chegam aos nossos países,
tal como esperamos e pedimos para ser acolhidos e
respeitados nos países de tradição
islâmica. Rogo, imploro humildemente a esses
países que assegurem liberdade aos cristãos
para poderem celebrar o seu culto e viver a sua fé,
tendo em conta a liberdade que os crentes do Islão
gozam nos países ocidentais. Frente a episódios
de fundamentalismo violento que nos preocupam, o afecto
pelos verdadeiros crentes do Islão deve levar-nos
a evitar odiosas generalizações, porque
o verdadeiro Islão e uma interpretação
adequada do Alcorão opõem-se a toda
a violência.
254.
Os não-cristãos fiéis à
sua consciência podem, por gratuita iniciativa
divina, viver «justificados por meio da graça
de Deus» e, assim, «associados ao mistério
pascal de Jesus Cristo». Devido, porém,
à dimensão sacramental da graça
santificante, a acção divina neles tende
a produzir sinais, ritos, expressões sagradas
que, por sua vez, envolvem outros numa experiência
comunitária do caminho para Deus. Não
têm o significado e a eficácia dos Sacramentos
instituídos por Cristo, mas podem ser canais
que o próprio Espírito suscita para
libertar os não-cristãos do imanentismo
ateu ou de experiências religiosas meramente
individuais. O mesmo Espírito suscita por toda
a parte diferentes formas de sabedoria prática
que ajudam a suportar as carências da vida e
a viver com mais paz e harmonia. Nós, cristãos,
podemos tirar proveito também desta riqueza
consolidada ao longo dos séculos, que nos pode
ajudar a viver melhor as nossas próprias convicções.
O
diálogo social num contexto de liberdade religiosa
255. Os Padres sinodais lembraram a importância
do respeito pela liberdade religiosa, considerada
um direito humano fundamental. Inclui «a liberdade
de escolher a religião que se crê ser
verdadeira e de manifestar publicamente a própria
crença». Um são pluralismo, que
respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente
e os valorizem como tais, não implica uma privatização
das religiões, com a pretensão de as
reduzir ao silêncio e à obscuridade da
consciência de cada um ou à sua marginalização
no recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas.
Tratar-se-ia, em definitivo, de uma nova forma de
discriminação e autoritarismo. O respeito
devido às minorias de agnósticos ou
de não-crentes não se deve impor de
maneira arbitrária que silencie as convicções
de maiorias crentes ou ignore a riqueza das tradições
religiosas. No fundo, isso fomentaria mais o ressentimento
do que a tolerância e a paz.
256.
Ao questionar-se sobre a incidência pública
da religião, é preciso distinguir diferentes
modos de a viver. Tanto os intelectuais como os jornalistas
caem, frequentemente, em generalizações
grosseiras e pouco académicas, quando falam
dos defeitos das religiões e, muitas vezes,
não são capazes de distinguir que nem
todos os crentes – nem todos os líderes
religiosos – são iguais. Alguns políticos
aproveitam esta confusão para justificar acções
discriminatórias. Outras vezes, desprezam-se
os escritos que surgiram no âmbito duma convicção
crente, esquecendo que os textos religiosos clássicos
podem oferecer um significado para todas as épocas,
possuem uma força motivadora que abre sempre
novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece
a mente e a sensibilidade. São desprezados
pela miopia dos racionalismos. Será razoável
e inteligente relegá-los para a obscuridade,
só porque nasceram no contexto duma crença
religiosa? Contêm princípios profundamente
humanistas que possuem um valor racional, apesar de
estarem permeados de símbolos e doutrinas religiosos.
257.
Como crentes, sentimo-nos próximo também
de todos aqueles que, não se reconhecendo parte
de qualquer tradição religiosa, buscam
sinceramente a verdade, a bondade e a beleza, que,
para nós, têm a sua máxima expressão
e a sua fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos
aliados no compromisso pela defesa da dignidade humana,
na construção duma convivência
pacífica entre os povos e na guarda da criação.
Um espaço peculiar é o dos chamados
novos Areópagos, como o «Átrio
dos Gentios», onde «crentes e não-crentes
podem dialogar sobre os temas fundamentais da ética,
da arte e da ciência, e sobre a busca da transcendência».
Também este é um caminho de paz para
o nosso mundo ferido.
258.
A partir de alguns temas sociais, importantes para
o futuro da humanidade, procurei explicitar uma vez
mais a incontornável dimensão social
do anúncio do Evangelho, para encorajar todos
os cristãos a manifestá-la sempre nas
suas palavras, atitudes e acções.
|
Capítulo
V
EVANGELIZADORES COM ESPÍRITO
259.
Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores
que se abrem sem medo à acção
do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito
faz os Apóstolos saírem de si mesmos
e transforma-os em anunciadores das maravilhas de
Deus, que cada um começa a entender na própria
língua. Além disso, o Espírito
Santo infunde a força para anunciar a novidade
do Evangelho com ousadia (parresia), em voz alta e
em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo
hoje, bem apoiados na oração, sem a
qual toda a acção corre o risco de ficar
vã e o anúncio, no fim de contas, carece
de alma. Jesus quer evangelizadores que anunciem a
Boa Nova, não só com palavras mas sobretudo
com uma vida transfigurada pela presença de
Deus.
260.
Neste último capítulo, não vou
oferecer uma síntese da espiritualidade cristã,
nem desenvolverei grandes temas como a oração,
a adoração eucarística ou a celebração
da fé, sobre os quais já possuímos
preciosos textos do Magistério e escritos célebres
de grandes autores. Não pretendo substituir
nem superar tanta riqueza. Limitar-me-ei simplesmente
a propor algumas reflexões acerca do espírito
da nova evangelização.
261.
Quando se diz de uma realidade que tem «espírito»,
indica-se habitualmente uma moção interior
que impele, motiva, encoraja e dá sentido à
acção pessoal e comunitária.
Uma evangelização com espírito
é muito diferente de um conjunto de tarefas
vividas como uma obrigação pesada, que
quase não se tolera ou se suporta como algo
que contradiz as nossas próprias inclinações
e desejos. Como gostaria de encontrar palavras para
encorajar uma estação evangelizadora
mais ardorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de
amor até ao fim e feita de vida contagiante!
Mas sei que nenhuma motivação será
suficiente, se não arde nos corações
o fogo do Espírito. Em suma, uma evangelização
com espírito é uma evangelização
com o Espírito Santo, já que Ele é
a alma da Igreja evangelizadora. Antes de propor algumas
motivações e sugestões espirituais,
invoco uma vez mais o Espírito Santo; peço-Lhe
que venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa
decidida saída para fora de si mesma a fim
de evangelizar todos os povos.
1.
Motivações para um renovado impulso
missionário
262. Evangelizadores com espírito quer dizer
evangelizadores que rezam e trabalham. Do ponto de
vista da evangelização, não servem
as propostas místicas desprovidas de um vigoroso
compromisso social e missionário, nem os discursos
e acções sociais e pastorais sem uma
espiritualidade que transforme o coração.
Estas propostas parciais e desagregadoras alcançam
só pequenos grupos e não têm força
de ampla penetração, porque mutilam
o Evangelho. É preciso cultivar sempre um espaço
interior que dê sentido cristão ao compromisso
e à actividade. Sem momentos prolongados de
adoração, de encontro orante com a Palavra,
de diálogo sincero com o Senhor, as tarefas
facilmente se esvaziam de significado, quebrantamo-nos
com o cansaço e as dificuldades, e o ardor
apaga-se. A Igreja não pode dispensar o pulmão
da oração, e alegra-me imenso que se
multipliquem, em todas as instituições
eclesiais, os grupos de oração, de intercessão,
de leitura orante da Palavra, as adorações
perpétuas da Eucaristia. Ao mesmo tempo, «há
que rejeitar a tentação duma espiritualidade
intimista e individualista, que dificilmente se coaduna
com as exigências da caridade, com a lógica
da encarnação». Há o risco
de que alguns momentos de oração se
tornem uma desculpa para evitar de dedicar a vida
à missão, porque a privatização
do estilo de vida pode levar os cristãos a
refugiarem-se nalguma falsa espiritualidade.
263.
É salutar recordar-se dos primeiros cristãos
e de tantos irmãos ao longo da história
que se mantiveram transbordantes de alegria, cheios
de coragem, incansáveis no anúncio e
capazes de uma grande resistência activa. Há
quem se console, dizendo que hoje é mais difícil;
temos, porém, de reconhecer que o contexto
do Império Romano não era favorável
ao anúncio do Evangelho, nem à luta
pela justiça, nem à defesa da dignidade
humana. Em cada momento da história, estão
presentes a fraqueza humana, a busca doentia de si
mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência
que nos ameaça a todos. Isto está sempre
presente, sob uma roupagem ou outra; deriva mais da
limitação humana que das circunstâncias.
Por isso, não digamos que hoje é mais
difícil; é diferente. Em vez disso,
aprendamos com os Santos que nos precederam e enfrentaram
as dificuldades próprias do seu tempo. Com
esta finalidade, proponho-vos que nos detenhamos a
recuperar algumas motivações que nos
ajudem a imitá-los nos nossos dias.
O
encontro pessoal com o amor de Jesus que nos salva
264. A primeira motivação para evangelizar
é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência
de sermos salvos por Ele que nos impele a amá-Lo
cada vez mais. Com efeito, um amor que não
sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de
a apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria?
Se não sentimos o desejo intenso de comunicar
Jesus, precisamos de nos deter em oração
para Lhe pedir que volte a cativar-nos. Precisamos
de o implorar cada dia, pedir a sua graça para
que abra o nosso coração frio e sacuda
a nossa vida tíbia e superficial. Colocados
diante d’Ele com o coração aberto,
deixando que Ele nos olhe, reconhecemos aquele olhar
de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus
Se fez presente e lhe disse: «Eu vi-te, quando
estavas debaixo da figueira!» (Jo 1, 48). Como
é doce permanecer diante dum crucifixo ou de
joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e
fazê-lo simplesmente para estar à frente
dos seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte
a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a
sua vida nova! Sucede então que, em última
análise, «o que nós vimos e ouvimos,
isso anunciamos» (1 Jo 1, 3). A melhor motivação
para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo
com amor, é deter-se nas suas páginas
e lê-lo com o coração. Se o abordamos
desta maneira, a sua beleza deslumbra-nos, volta a
cativar-nos vezes sem conta. Por isso, é urgente
recuperar um espírito contemplativo, que nos
permita redescobrir, cada dia, que somos depositários
dum bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova.
Não há nada de melhor para transmitir
aos outros.
265.
Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres,
os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade
simples e quotidiana e, finalmente, a sua total dedicação,
tudo é precioso e fala à nossa vida
pessoal. Todas as vezes que alguém volta a
descobri-lo, convence-se de que é isso mesmo
o que os outros precisam, embora não o saibam:
«Aquele que venerais sem O conhecer, é
Esse que eu vos anuncio» (Act 17, 23). Às
vezes perdemos o entusiasmo pela missão, porque
esquecemos que o Evangelho dá resposta às
necessidades mais profundas das pessoas, porque todos
fomos criados para aquilo que o Evangelho nos propõe:
a amizade com Jesus e o amor fraterno. Quando se consegue
exprimir, de forma adequada e bela, o conteúdo
essencial do Evangelho, de certeza que essa mensagem
fala aos anseios mais profundos do coração:
«O missionário está convencido
de que existe já, nas pessoas e nos povos,
pela acção do Espírito, uma ânsia
– mesmo se inconsciente – de conhecer
a verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que
conduz à liberação do pecado
e da morte. O entusiasmo posto no anúncio de
Cristo deriva da convicção de responder
a tal ânsia».
O entusiasmo na evangelização funda-se
nesta convicção. Temos à disposição
um tesouro de vida e de amor que não pode enganar,
a mensagem que não pode manipular nem desiludir.
É uma resposta que desce ao mais fundo do ser
humano e pode sustentá-lo e elevá-lo.
É a verdade que não passa de moda, porque
é capaz de penetrar onde nada mais pode chegar.
A nossa tristeza infinita só se cura com um
amor infinito.
266.
Esta convicção, porém, é
sustentada com a experiência pessoal, constantemente
renovada, de saborear a sua amizade e a sua mensagem.
Não se pode perseverar numa evangelização
cheia de ardor, se não se está convencido,
por experiência própria, que não
é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não
O conhecer, não é a mesma coisa caminhar
com Ele ou caminhar tacteando, não é
a mesma coisa poder escutá-Lo ou ignorar a
sua Palavra, não é a mesma coisa poder
contemplá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele
ou não o poder fazer. Não é a
mesma coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho
em vez de o fazer unicamente com a própria
razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se
torna muito mais plena e, com Ele, é mais fácil
encontrar o sentido para cada coisa. É por
isso que evangelizamos. O verdadeiro missionário,
que não deixa jamais de ser discípulo,
sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira
com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele,
no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa
não O descobre presente no coração
mesmo da entrega missionária, depressa perde
o entusiasmo e deixa de estar seguro do que transmite,
faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa
que não está convencida, entusiasmada,
segura, enamorada, não convence ninguém.
267.
Unidos a Jesus, procuramos o que Ele procura, amamos
o que Ele ama. Em última instância, o
que procuramos é a glória do Pai, vivemos
e agimos «para que seja prestado louvor à
glória da sua graça» (Ef 1, 6).
Se queremos entregar-nos a sério e com perseverança,
esta motivação deve superar toda e qualquer
outra. O movente definitivo, o mais profundo, o maior,
a razão e o sentido último de tudo o
resto é este: a glória do Pai que Jesus
procurou durante toda a sua existência. Ele
é o Filho eternamente feliz, com todo o seu
ser «no seio do Pai» (Jo 1, 18). Se somos
missionários, antes de tudo é porque
Jesus nos disse: «A glória do meu Pai
[consiste] em que deis muito fruto» (Jo 15,
8). Independentemente de que nos convenha, interesse,
aproveite ou não, para além dos estreitos
limites dos nossos desejos, da nossa compreensão
e das nossas motivações, evangelizamos
para a maior glória do Pai que nos ama.
O
prazer espiritual de ser povo
268. A Palavra de Deus convida-nos também a
reconhecer que somos povo: «Vós que outrora
não éreis um povo, agora sois povo de
Deus» (1 Pd 2, 10). Para ser evangelizadores
com espírito é preciso também
desenvolver o prazer espiritual de estar próximo
da vida das pessoas, até chegar a descobrir
que isto se torna fonte duma alegria superior. A missão
é uma paixão por Jesus, e simultaneamente
uma paixão pelo seu povo. Quando paramos diante
de Jesus crucificado, reconhecemos todo o seu amor
que nos dignifica e sustenta, mas lá também,
se não formos cegos, começamos a perceber
que este olhar de Jesus se alonga e dirige, cheio
de afecto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos
novamente que Ele quer servir-Se de nós para
chegar cada vez mais perto do seu povo amado. Toma-nos
do meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que
a nossa identidade não se compreende sem esta
pertença.
269.
O próprio Jesus é o modelo desta opção
evangelizadora que nos introduz no coração
do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto de todos!
Se falava com alguém, fitava os seus olhos
com uma profunda solicitude cheia de amor: «Jesus,
fitando nele o olhar, sentiu afeição
por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível
ao encontro, quando manda aproximar-se o cego do caminho
(cf. Mc 10, 46-52) e quando come e bebe com os pecadores
(cf. Mc 2, 16), sem Se importar que O chamem de glutão
e beberrão (cf. Mt 11, 19). Vemo-Lo disponível,
quando deixa uma prostituta ungir-Lhe os pés
(cf. Lc 7, 36-50) ou quando recebe, de noite, Nicodemos
(cf. Jo 3, 1-21). A entrega de Jesus na cruz é
apenas o culminar deste estilo que marcou toda a sua
vida. Fascinados por este modelo, queremos inserir-nos
a fundo na sociedade, partilhamos a vida com todos,
ouvimos as suas preocupações, colaboramos
material e espiritualmente nas suas necessidades,
alegramo-nos com os que estão alegres, choramos
com os que choram e comprometemo-nos na construção
de um mundo novo, lado a lado com os outros. Mas não
por obrigação, nem como um peso que
nos desgasta, mas como uma opção pessoal
que nos enche de alegria e nos dá uma identidade.
270.
Às vezes sentimos a tentação
de ser cristãos, mantendo uma prudente distância
das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos
a miséria humana, que toquemos a carne sofredora
dos outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles
abrigos pessoais ou comunitários que permitem
manter-nos à distância do nó do
drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente
entrar em contacto com a vida concreta dos outros
e conhecermos a força da ternura. Quando o
fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente
e vivemos a intensa experiência de ser povo,
a experiência de pertencer a um povo.
271.
É verdade que, na nossa relação
com o mundo, somos convidados a dar razão da
nossa esperança, mas não como inimigos
que apontam o dedo e condenam. A advertência
é muito clara: fazei-o «com mansidão
e respeito» (1 Pd 3, 16) e «tanto quanto
for possível e de vós dependa, vivei
em paz com todos os homens» (Rm 12, 18). E somos
incentivados também a vencer «o mal com
o bem» (Rm 12, 21), sem nos cansarmos de «fazer
o bem» (Gal 6, 9) e sem pretendermos aparecer
como superiores, antes «considerai os outros
superiores a vós próprios» (Fl
2, 3). Na realidade, os Apóstolos do Senhor
«tinham a simpatia de todo o povo» (Act
2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13). Está claro que
Jesus não nos quer como príncipes que
olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres
do povo. Esta não é a opinião
de um Papa, nem uma opção pastoral entre
várias possíveis; são indicações
da Palavra de Deus tão claras, directas e contundentes,
que não precisam de interpretações
que as despojariam da sua força interpeladora.
Vivamo-las sine glossa, sem comentários. Assim,
experimentaremos a alegria missionária de partilhar
a vida com o povo fiel de Deus, procurando acender
o fogo no coração do mundo.
272.
O amor às pessoas é uma força
espiritual que favorece o encontro em plenitude com
Deus, a ponto de se dizer, de quem não ama
o irmão, que «está nas trevas
e nas trevas caminha» (1 Jo 2, 11), «permanece
na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou
a conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). Bento XVI disse
que «fechar os olhos diante do próximo
torna cegos também diante de Deus», e
que o amor é fundamentalmente a única
luz que «ilumina incessantemente um mundo às
escuras e nos dá a coragem de viver e agir».
Portanto, quando vivemos a mística de nos aproximar
dos outros com a intenção de procurar
o seu bem, ampliamos o nosso interior para receber
os mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos
com um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir
algo de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos
se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais
a nossa fé para reconhecer a Deus. Em consequência
disto, se queremos crescer na vida espiritual, não
podemos renunciar a ser missionários. A tarefa
da evangelização enriquece a mente e
o coração, abre-nos horizontes espirituais,
torna-nos mais sensíveis para reconhecer a
acção do Espírito, faz-nos sair
dos nossos esquemas espirituais limitados. Ao mesmo
tempo, um missionário plenamente devotado ao
seu trabalho experimenta o prazer de ser um manancial
que transborda e refresca os outros. Só pode
ser missionário quem se sente bem procurando
o bem do próximo, desejando a felicidade dos
outros. Esta abertura do coração é
fonte de felicidade, porque «a felicidade está
mais em dar do que em receber» (Act 20, 35).
Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se,
negando-se a partilhar, resistindo a dar, fechando-se
na comodidade. Isto não é senão
um lento suicídio.
273.
A missão no coração do povo não
é uma parte da minha vida, ou um ornamento
que posso pôr de lado; não é um
apêndice ou um momento entre tantos outros da
minha vida. É algo que não posso arrancar
do meu ser, se não me quero destruir. Eu sou
uma missão nesta terra, e para isso estou neste
mundo. É preciso considerarmo-nos como que
marcados a fogo por esta missão de iluminar,
abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar.
Nisto se revela a enfermeira autêntica , o professor
autêntico, o político autêntico,
aqueles que decidiram, no mais íntimo do seu
ser, estar com os outros e ser para os outros. Mas,
se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida privada
do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente
à procura de reconhecimentos ou defendendo
as suas próprias exigências. Deixará
de ser povo.
274.
Para partilhar a vida com a gente e dar-nos generosamente,
precisamos de reconhecer também que cada pessoa
é digna da nossa dedicação. E
não pelo seu aspecto físico, suas capacidades,
sua linguagem, sua mentalidade ou pelas satisfações
que nos pode dar, mas porque é obra de Deus,
criatura sua. Ele criou-a à sua imagem, e reflecte
algo da sua glória. Cada ser humano é
objecto da ternura infinita do Senhor, e Ele mesmo
habita na sua vida. Na cruz, Jesus Cristo deu o seu
sangue precioso por essa pessoa. Independentemente
da aparência, cada um é imensamente sagrado
e merece o nosso afecto e a nossa dedicação.
Por isso, se consigo ajudar uma só pessoa a
viver melhor, isso já justifica o dom da minha
vida. É maravilhoso ser povo fiel de Deus.
E ganhamos plenitude, quando derrubamos os muros e
o coração se enche de rostos e de nomes!
A
acção misteriosa do Ressuscitado e do
seu Espírito
275. No terceiro capítulo, reflectimos sobre
a carência de espiritualidade profunda que se
traduz no pessimismo, no fatalismo, na desconfiança.
Algumas pessoas não se dedicam à missão,
porque crêem que nada pode mudar e assim, segundo
elas, é inútil esforçar-se. Pensam:
«Para quê privar-me das minhas comodidades
e prazeres, se não vejo algum resultado importante?»
Com esta mentalidade, torna-se impossível ser
missionário. Esta atitude é precisamente
uma desculpa maligna para continuar fechado na própria
comodidade, na preguiça, na tristeza insatisfeita,
no vazio egoísta. Trata-se de uma atitude autodestrutiva,
porque «o homem não pode viver sem esperança:
a sua vida, condenada à insignificância,
tornar-se-ia insuportável». No caso de
pensarmos que as coisas não vão mudar,
recordemos que Jesus Cristo triunfou sobre o pecado
e a morte e possui todo o poder. Jesus Cristo vive
verdadeiramente. Caso contrário, «se
Cristo não ressuscitou, é vã
a nossa pregação» (1 Cor 15, 14).
Diz-nos o Evangelho que, quando os primeiros discípulos
saíram a pregar, «o Senhor cooperava
com eles, confirmando a Palavra» (Mc 16, 20).
E o mesmo acontece hoje. Somos convidados a descobri-lo,
a vivê-lo. Cristo ressuscitado e glorioso é
a fonte profunda da nossa esperança, e não
nos faltará a sua ajuda para cumprir a missão
que nos confia.
276.
A sua ressurreição não é
algo do passado; contém uma força de
vida que penetrou o mundo. Onde parecia que tudo morreu,
voltam a aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição.
É uma força sem igual. É verdade
que muitas vezes parece que Deus não existe:
vemos injustiças, maldades, indiferenças
e crueldades que não cedem. Mas também
é certo que, no meio da obscuridade, sempre
começa a desabrochar algo de novo que, mais
cedo ou mais tarde, produz fruto. Num campo arrasado,
volta a aparecer a vida, tenaz e invencível.
Haverá muitas coisas más, mas o bem
sempre tende a reaparecer e espalhar-se. Cada dia,
no mundo, renasce a beleza, que ressuscita transformada
através dos dramas da história. Os valores
tendem sempre a reaparecer sob novas formas, e na
realidade o ser humano renasceu muitas vezes de situações
que pareciam irreversíveis. Esta é a
força da ressurreição, e cada
evangelizador é um instrumento deste dinamismo.
277.
E continuamente aparecem também novas dificuldades,
a experiência do fracasso, as mesquinhices humanas
que tanto ferem. Todos sabemos, por experiência,
que às vezes uma tarefa não nos dá
as satisfações que desejaríamos,
os frutos são escassos e as mudanças
são lentas, e vem-nos a tentação
de se dar por cansado. Todavia, não é
a mesma coisa quando alguém, por cansaço,
baixa momentaneamente os braços e quando os
baixa definitivamente dominado por um descontentamento
crónico, por uma acédia que lhe mirra
a alma. Pode acontecer que o coração
se canse de lutar, porque, em última análise,
se busca a si mesmo num carreirismo sedento de reconhecimentos,
aplausos, prémios, promoções;
então a pessoa não baixa os braços,
mas já não tem garra, carece de ressurreição.
Assim, o Evangelho, que é a mensagem mais bela
que há neste mundo, fica sepultado sob muitas
desculpas.
278.
A fé significa também acreditar n’Ele,
acreditar que nos ama verdadeiramente, que está
vivo, que é capaz de intervir misteriosamente,
que não nos abandona, que tira bem do mal com
o seu poder e a sua criatividade infinita. Significa
acreditar que Ele caminha vitorioso na história
«e, com Ele, estarão os chamados, os
escolhidos, os fiéis» (Ap 17, 14). Acreditamos
no Evangelho que diz que o Reino de Deus já
está presente no mundo, e vai-se desenvolvendo-se
aqui e além de várias maneiras: como
a pequena semente que pode chegar a transformar-se
numa grande árvore (cf. Mt 13, 31-32), como
o punhado de fermento que leveda uma grande massa
(cf. Mt 13, 33), e como a boa semente que cresce no
meio do joio (cf. Mt 13, 24-30) e sempre nos pode
surpreender positivamente: ei-la que aparece, vem
outra vez, luta para florescer de novo. A ressurreição
de Cristo produz por toda a parte rebentos deste mundo
novo; e, ainda que os cortem, voltam a despontar,
porque a ressurreição do Senhor já
penetrou a trama oculta desta história; porque
Jesus não ressuscitou em vão. Não
fiquemos à margem desta marcha da esperança
viva!
279.
Como nem sempre vemos estes rebentos, precisamos de
uma certeza interior, ou seja, da convicção
de que Deus pode actuar em qualquer circunstância,
mesmo no meio de aparentes fracassos, porque «trazemos
este tesouro em vasos de barro» (2 Cor 4, 7).
Esta certeza é o que se chama «sentido
de mistério», que consiste em saber,
com certeza, que a pessoa que se oferece e entrega
a Deus por amor, seguramente será fecunda (cf.
Jo 15, 5). Muitas vezes esta fecundidade é
invisível, incontrolável, não
pode ser contabilizada. A pessoa sabe com certeza
que a sua vida dará frutos, mas sem pretender
conhecer como, onde ou quando; está segura
de que não se perde nenhuma das suas obras
feitas com amor, não se perde nenhuma das suas
preocupações sinceras com os outros,
não se perde nenhum acto de amor a Deus, não
se perde nenhuma das suas generosas fadigas, não
se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto
circula pelo mundo como uma força de vida.
Às vezes invade-nos a sensação
de não termos obtido resultado algum com os
nossos esforços, mas a missão não
é um negócio nem um projecto empresarial,
nem mesmo uma organização humanitária,
não é um espectáculo para que
se possa contar quantas pessoas assistiram devido
à nossa propaganda. É algo de muito
mais profundo, que escapa a toda e qualquer medida.
Talvez o Senhor Se sirva da nossa entrega para derramar
bênçãos noutro lugar do mundo,
aonde nunca iremos. O Espírito Santo trabalha
como quer, quando quer e onde quer; e nós gastamo-nos
com grande dedicação, mas sem pretender
ver resultados espectaculares. Sabemos apenas que
o dom de nós mesmos é necessário.
No meio da nossa entrega criativa e generosa, aprendamos
a descansar na ternura dos braços do Pai. Continuemos
para diante, empenhemo-nos totalmente, mas deixemos
que seja Ele a tornar fecundos, como melhor Lhe parecer,
os nossos esforços.
280.
Para manter vivo o ardor missionário, é
necessária uma decidida confiança no
Espírito Santo, porque Ele «vem em auxílio
da nossa fraqueza» (Rm 8, 26). Mas esta confiança
generosa tem de ser alimentada e, para isso, precisamos
de O invocar constantemente. Ele pode curar-nos de
tudo o que nos faz esmorecer no compromisso missionário.
É verdade que esta confiança no invisível
pode causar-nos alguma vertigem: é como mergulhar
num mar onde não sabemos o que vamos encontrar.
Eu mesmo o experimentei tantas vezes. Mas não
há maior liberdade do que a de se deixar conduzir
pelo Espírito, renunciando a calcular e controlar
tudo e permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija
e impulsione para onde Ele quiser. O Espírito
Santo bem sabe o que faz falta em cada época
e em cada momento. A isto chama-se ser misteriosamente
fecundos!
A
força missionária da intercessão
281. Há uma forma de oração que
nos incentiva particularmente a gastarmo-nos na evangelização
e nos motiva a procurar o bem dos outros: é
a intercessão. Fixemos, por momentos, o íntimo
dum grande evangelizador como São Paulo, para
perceber como era a sua oração. Esta
estava repleta de seres humanos: «Em todas as
minhas orações, sempre peço com
alegria por todos vós (...), pois tenho-vos
no coração» (Fl 1, 4.7). Descobrimos,
assim, que interceder não nos afasta da verdadeira
contemplação, porque a contemplação
que deixa de fora os outros é uma farsa.
282.
Esta atitude transforma-se também num agradecimento
a Deus pelos outros. «Antes de mais, dou graças
ao meu Deus por todos vós, por meio de Jesus
Cristo» (Rm 1, 8). Trata-se de um agradecimento
constante: «Dou incessantemente graças
ao meu Deus por vós, pela graça de Deus
que vos foi concedida em Cristo Jesus» (1 Cor
1, 4); «todas as vezes que me lembro de vós,
dou graças ao meu Deus» (Fl 1, 3). Não
é um olhar incrédulo, negativo e sem
esperança, mas uma visão espiritual,
de fé profunda, que reconhece aquilo que o
próprio Deus faz neles. E, simultaneamente,
é a gratidão que brota de um coração
verdadeiramente solícito pelos outros. Deste
modo, quando um evangelizador sai da oração,
o seu coração tornou-se mais generoso,
libertou-se da consciência isolada e está
ansioso por fazer o bem e partilhar a vida com os
outros.
283.
Os grandes homens e mulheres de Deus foram grandes
intercessores. A intercessão é como
«fermento» no seio da Santíssima
Trindade. É penetrarmos no Pai e descobrirmos
novas dimensões que iluminam as situações
concretas e as mudam. Poderíamos dizer que
o coração de Deus se deixa comover pela
intercessão, mas na realidade Ele sempre nos
antecipa, pelo que, com a nossa intercessão,
apenas possibilitamos que o seu poder, o seu amor
e a sua lealdade se manifestem mais claramente no
povo.
2.
Maria, a Mãe da evangelização
284. Juntamente com o Espírito Santo, sempre
está Maria no meio do povo. Ela reunia os discípulos
para O invocarem (Act 1, 14), e assim tornou possível
a explosão missionária que se deu no
Pentecostes. Ela é a Mãe da Igreja evangelizadora
e, sem Ela, não podemos compreender cabalmente
o espírito da nova evangelização.
O
dom de Jesus ao seu povo
285. Na cruz, quando Cristo suportava em sua carne
o dramático encontro entre o pecado do mundo
e a misericórdia divina, pôde ver a seus
pés a presença consoladora da Mãe
e do amigo. Naquele momento crucial, antes de declarar
consumada a obra que o Pai Lhe havia confiado, Jesus
disse a Maria: «Mulher, eis o teu filho!»
E, logo a seguir, disse ao amigo bem-amado: «Eis
a tua mãe!» (Jo 19, 26-27). Estas palavras
de Jesus, no limiar da morte, não exprimem
primariamente uma terna preocupação
por sua Mãe; mas são, antes, uma fórmula
de revelação que manifesta o mistério
duma missão salvífica especial. Jesus
deixava-nos a sua Mãe como nossa Mãe.
E só depois de fazer isto é que Jesus
pôde sentir que «tudo se consumara»
(Jo 19, 28). Ao pé da cruz, na hora suprema
da nova criação, Cristo conduz-nos a
Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer que
caminhemos sem uma mãe; e, nesta imagem materna,
o povo lê todos os mistérios do Evangelho.
Não é do agrado do Senhor que falte
à sua Igreja o ícone feminino. Ela,
que O gerou com tanta fé, também acompanha
«o resto da sua descendência, isto é,
os que observam os mandamentos de Deus e guardam o
testemunho de Jesus» (Ap 12, 17). Esta ligação
íntima entre Maria, a Igreja e cada fiel, enquanto
de maneira diversa geram Cristo, foi maravilhosamente
expressa pelo Beato Isaac da Estrela: «Nas Escrituras
divinamente inspiradas, o que se atribui em geral
à Igreja, Virgem e Mãe, aplica-se em
especial à Virgem Maria (...). Alem disso,
cada alma fiel é igualmente, a seu modo, esposa
do Verbo de Deus, mãe de Cristo, filha e irmã,
virgem e mãe fecunda. (...) No tabernáculo
do ventre de Maria, Cristo habitou durante nove meses;
no tabernáculo da fé da Igreja, permanecerá
até ao fim do mundo; no conhecimento e amor
da alma fiel habitará pelos séculos
dos séculos».
286. Maria é aquela que sabe transformar um
curral de animais na casa de Jesus, com uns pobres
paninhos e uma montanha de ternura. Ela é a
serva humilde do Pai, que transborda de alegria no
louvor. É a amiga sempre solícita para
que não falte o vinho na nossa vida. É
aquela que tem o coração trespassado
pela espada, que compreende todas as penas. Como Mãe
de todos, é sinal de esperança para
os povos que sofrem as dores do parto até que
germine a justiça. Ela é a missionária
que Se aproxima de nós, para nos acompanhar
ao longo da vida, abrindo os corações
à fé com o seu afecto materno. Como
uma verdadeira mãe, caminha connosco, luta
connosco e aproxima-nos incessantemente do amor de
Deus. Através dos diferentes títulos
marianos, geralmente ligados aos santuários,
compartilha as vicissitudes de cada povo que recebeu
o Evangelho e entra a formar parte da sua identidade
histórica. Muitos pais cristãos pedem
o Baptismo para seus filhos num santuário mariano,
manifestando assim a fé na acção
materna de Maria que gera novos filhos para Deus.
É lá, nos santuários, que se
pode observar como Maria reúne ao seu redor
os filhos que, com grandes sacrifícios, vêm
peregrinos para A ver e deixar-se olhar por Ela. Lá
encontram a força de Deus para suportar os
sofrimentos e as fadigas da vida. Como a São
João Diego, Maria oferece-lhes a carícia
da sua consolação materna e diz-lhes:
«Não se perturbe o teu coração.
(...) Não estou aqui eu, que sou tua Mãe?»
A
Estrela da nova evangelização
287. À Mãe do Evangelho vivente, pedimos
a sua intercessão a fim de que este convite
para uma nova etapa da evangelização
seja acolhido por toda a comunidade eclesial. Ela
é a mulher de fé, que vive e caminha
na fé, e «a sua excepcional peregrinação
da fé representa um ponto de referência
constante para a Igreja». Ela deixou-Se conduzir
pelo Espírito, através dum itinerário
de fé, rumo a uma destinação
feita de serviço e fecundidade. Hoje fixamos
n’Ela o olhar, para que nos ajude a anunciar
a todos a mensagem de salvação e para
que os novos discípulos se tornem operosos
evangelizadores. Nesta peregrinação
evangelizadora, não faltam as fases de aridez,
de ocultação e até de um certo
cansaço, como as que viveu Maria nos anos de
Nazaré enquanto Jesus crescia: «Este
é o início do Evangelho, isto é,
da boa nova, da jubilosa nova. Não é
difícil, porém, perceber naquele início
um particular aperto do coração, unido
a uma espécie de “noite da fé”
– para usar as palavras de São João
da Cruz – como que um “véu”
através do qual é forçoso aproximar-se
do Invisível e viver na intimidade com o mistério.
Foi deste modo efectivamente que Maria, durante muitos
anos, permaneceu na intimidade com o mistério
do seu Filho, e avançou no seu itinerário
de fé».
288.
Há um estilo mariano na actividade evangelizadora
da Igreja. Porque sempre que olhamos para Maria, voltamos
a acreditar na força revolucionária
da ternura e do afecto. N’Ela, vemos que a humildade
e a ternura não são virtudes dos fracos,
mas dos fortes, que não precisam de maltratar
os outros para se sentir importantes. Fixando-A, descobrimos
que aquela que louvava a Deus porque «derrubou
os poderosos de seus tronos» e «aos ricos
despediu de mãos vazias» (Lc 1, 52.53)
é mesma que assegura o aconchego dum lar à
nossa busca de justiça. E é a mesma
também que conserva cuidadosamente «todas
estas coisas ponderando-as no seu coração»
(Lc 2, 19). Maria sabe reconhecer os vestígios
do Espírito de Deus tanto nos grandes acontecimentos
como naqueles que parecem imperceptíveis. É
contemplativa do mistério de Deus no mundo,
na história e na vida diária de cada
um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora
em Nazaré, mas é também nossa
Senhora da prontidão, a que sai «à
pressa» (Lc 1, 39) da sua povoação
para ir ajudar os outros. Esta dinâmica de justiça
e ternura, de contemplação e de caminho
para os outros faz d’Ela um modelo eclesial
para a evangelização. Pedimos-Lhe que
nos ajude, com a sua oração materna,
para que a Igreja se torne uma casa para muitos, uma
mãe para todos os povos, e torne possível
o nascimento dum mundo novo. É o Ressuscitado
que nos diz, com uma força que nos enche de
imensa confiança e firmíssima esperança:
«Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5).
Com Maria, avançamos confiantes para esta promessa,
e dizemos-Lhe:
Virgem
e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.
Vós,
cheia da presença de Cristo,
levastes a alegria a João o Baptista,
fazendo-o exultar no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do Senhor.
Vós, que permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé inabalável,
e recebestes a jubilosa consolação da
ressurreição,
reunistes os discípulos à espera do
Espírito
para que nascesse a Igreja evangelizadora.
Alcançai-nos
agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.
Vós,
Virgem da escuta e da contemplação,
Mãe do amor, esposa das núpcias eternas
intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone
puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por instaurar o Reino.
Estrela
da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
Mãe
do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Amen. Aleluia!
Dado
em Roma, junto de São Pedro, no encerramento
do Ano da Fé, dia 24 de Novembro – Solenidade
de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo –
do ano de 2013, primeiro do meu Pontificado.
[Franciscus PP]
|
ÍNDICE
1. Alegria que se renova e comunica [2-8] ………………………..
2
2. A doce e reconfortante alegria de evangelizar [9-10]
………….. 6
Uma eterna novidade [11-13] ……………………...……………………..
7
3. A nova evangelização para a transmissão
da fé [14-15] …………..
9
A proposta desta Exortação e seus contornos
[16-18] …..……………..
11
Capítulo
I
A TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA
IGREJA
1. Uma Igreja «em saída» [20-23]
…..………………………..………..
13
«Primeirear», envolver-se, acompanhar,
frutificar e festejar [24] ..….. 14
2. Pastoral em conversão [25-26] …..…………………………...……..
16
Uma renovação eclesial inadiável
[27-33] …..……………….…………..
17
3. A partir do coração do Evangelho
[34-39] …..……………...……..
21
4. A missão que se encarna nas limitações
humanas [40-45] ...….. 23
5. Uma mãe de coração aberto
[46-49] …..………………….....……..
27
Capítulo
II
NA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
1. Alguns desafios do mundo actual [52] …..…………………....……..
30
Não a uma economia da exclusão [53-54]
…..…………………....……..
30
Não à nova idolatria do dinheiro [55-56]
…..…………………....……..
31
Não a um dinheiro que governa em vez de servir
[57-58] …...…….. 32
Não à desigualdade social que gera violência
[59-60] …..……………..
33
Alguns desafios culturais [61-67] …..…………………...............……..
35
Desafios da inculturação da fé
[68-70] …..…………………....……..
38
Desafios das culturas urbanas [71-75] …..…………………....……..
40
2. Tentações dos agentes pastorais [76-77]
…..……..……....……..
42
Sim ao desafio duma espiritualidade missionária
[78-80] …....…….. 43
Não à acédia egoísta [81-83]
…..………………….........................……..
45
Não ao pessimismo estéril [84-86] …..…………………...............……..
46
Sim às relações novas geradas
por Jesus Cristo [87-92] …..………….…..
48
Não ao mundanismo espiritual [93-97] …..…………………....……...
51
Não à guerra entre nós [98-101]
…..…………………...............……..
53
Outros desafios eclesiais [102-109] …..…………………....………….....
55
Capítulo
III
O ANÚNCIO DO EVANGELHO
1. Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho [111] …..……….……..
60
Um povo para todos [112-114] …..…………………...............……..
60
Um povo com muitos rostos [115-118] …..…………………....……...
62
Todos somos discípulos missionários
[119-121] …..……………...……..
65
A força evangelizadora da piedade popular [122-126]
…..……….…….. 66
De pessoa a pessoa [127-129] …..………………….........................……..
69
Carismas ao serviço da comunhão evangelizadora
[130-131] …....….….. 70
Cultura, pensamento e educação [132-134]
…..………………....…..….....
71
2. A homilia [135-136] …..………………………………..……………...
72
O contexto litúrgico [137-138] …..…………………....……………….…..
73
A conversa da mãe [139-141] …..………………….........................……..
74
Palavras que abrasam os corações [142-144]
…..………….......……..
75
3. A preparação da pregação
[145] …..…………………....………...…..
77
O culto da verdade [146-148] …..………………….........................……..
77
A personalização da Palavra [148-151]
…..…………………....….…..
79
A leitura espiritual [152-153] …..……………………………….....……..
81
À escuta do povo [154-155] …..…………………..........................……..
82
Recursos pedagógicos [156-159] …..…………………....………..…..
84
4. Uma evangelização para o aprofundamento
do querigma [160-162] . 85
Uma catequese querigmática e mistagógica
[163-168] …..……….……..
87
O acompanhamento pessoal dos processos de crescimento
[169-173] ….... 90
Ao redor da Palavra de Deus [174-175] …..………………….....……..
92
Capítulo
IV
A DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
1. As repercussões comunitárias e sociais
do querigma [177] ….... 94
Confissão da fé e compromisso social
[178-179] …..…………………....
94
O Reino que nos chama [180-181] …..…………………....………...…..
96
A doutrina da Igreja sobre as questões sociais
[182-185] …….…….. 97
2. A inclusão social dos pobres [186] …..…………………....……...
99
Unidos a Deus, ouvimos um clamor [187-192] …..………………….....
99
Fidelidade ao Evangelho, para não correr em
vão [193-196] …..…….... 102
O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus [197-201]
…..…….... 105
Economia e distribuição das entradas
[202-208] …..…………………....
108
Cuidar da fragilidade [209-216] …..………………………………....
110
3. O bem comum e a paz social [217-221] …..………………………......
114
O tempo é superior ao espaço [222-225]
…..………………………......
115
A unidade prevalece sobre o conflito [226-230] …..…………………....
117
A realidade é mais importante do que a ideia
[231-233] …..…………......
118
O todo é superior à parte [234-237]
…..………………………………....
120
4. O diálogo social como contribuição
para a paz [238-241] …..……... 121
O diálogo entre a fé, a razão
e as ciências [242-243] …..…………......
123
O diálogo ecuménico [244-246] …..……………………………........
124
As relações com o Judaísmo [247-249]
…..………………………......
125
O diálogo inter-religioso [250-254] …..………………………………....
126
O diálogo social num contexto de liberdade
religiosa [255-258] ….... 129
Capítulo
V
EVANGELIZADORES COM ESPÍRITO
1. Motivações para um renovado impulso
missionário [262-263] ….... 133
O encontro pessoal com o amor de Jesus que nos salva
[264-267] ….... 134
O prazer espiritual de ser povo [268-274] ……………………………....
137
A acção misteriosa do Ressuscitado e
do seu Espírito [275-280] ….... 140
A força missionária da intercessão
[281-283] ………………………..
144
2. Maria, a Mãe da evangelização
[284] ……………………………...
145
O dom de Jesus ao seu povo [285-286] ……………………………....
145
A Estrela da nova evangelização [287-288]
……………………………....
146
Texto
proveniente de: Documentos Vaticanos - 2013-11-2
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