Depois,
cita as sete beatas religiosas do primeiro mosteiro
da Visitação de Madri como exemplo de
comunidades que foram declaradas santas (n.141). E
isto é o que traz de forma direta a respeito
da tradição salesiana.
Observado isso, não tem como dissociar os dois
Franciscos neste tema da santidade nos dias atuais.
Francisco de Roma (Papa Francisco) tem levado a termo
o Concílio. Francisco de Sales o antecipou,
principalmente no que diz respeito à vocação
universal à santidade na Igreja, como afirmam
Paulo VI e Bento XVI . Vejamos a similaridade da doutrina.
Francisco de Roma: “munidos de tantos e tão
grandes meios de salvação, todos os
fieis, seja qual for a sua condição
ou estado, são chamados pelo Senhor à
perfeição do Pai, cada um por seu caminho’.
‘Cada um por seu caminho’, diz o Concílio.”
(nn.10-11).
Francisco de Sales: “O Senhor, criando o universo,
ordenou as árvores que produzissem frutos,
cada uma segundo a sua espécie; e ordenou do
mesmo modo a todos os fiéis, que são
as plantas vivas de sua Igreja, que fizessem dignos
frutos de piedade, cada um segundo o seu estado e
vocação (IVD I, III).
Continua Francisco de Roma: “Por isso, uma pessoa
não deve desanimar, quando contempla modelos
de santidade que lhe parecem inatingíveis.
Há testemunhos que são úteis
para nos estimular e motivar, mas não para
procurarmos copiá-los, porque isso poderia
até afastar-nos do caminho, único e
específico, que o Senhor predispôs para
nós. Importante é que cada crente discirna
o seu próprio caminho e traga à luz
o melhor de si mesmo, quanto Deus colocou nele de
muito pessoal (cf. 1 Cor 12, 7), e não se esgote
procurando imitar algo que não foi pensado
para ele.” (nn.10-11).
Francisco de Sales: “Diversas são as
regras que devem seguir as pessoas da sociedade, os
operários e os plebeus, a mulher casada, a
solteira e a viúva. A prática da devoção
tem que atender a nossa saúde, as nossas ocupações
e deveres particulares. (...) seria porventura louvável
se um bispo fosse viver tão solitário
como um cartuxo? Se pessoas casadas pensassem tão
pouco em ajuntar para si um pecúlio, como os
capuchinhos? Se um operário frequentasse tanto
a igreja como um religioso o coro? Se um religioso
se entregasse tanto a obras de caridade como um bispo?
Não seria ridícula uma tal devoção,
extravagante e insuportável?” (IVD I,
III).
Francisco de Sales, em vez do termo “santidade,
usa “devoção”, mas com o
mesmo sentido: “A verdadeira devoção,
Filoteia, pressupõe o Amor de Deus ou, melhor,
ela mesma é o mais perfeito amor a Deus. Esse
amor chama-se graça, porque adereça
a nossa alma e a torna bela aos olhos de Deus. Se
nos dá força e vigor para praticar o
bem, assume o nome de caridade. E se nos faz praticar
o bem frequente, pronta e cuidadosamente, chama-se
devoção e atinge então ao maior
grau de perfeição.” (IVD, I, III).
Ao passo que Francisco de Roma também diz:
“É verdade que não há amor
sem obras de amor, mas esta bem-aventurança
lembra-nos que o Senhor espera uma dedicação
ao irmão que brote do coração,
pois ‘ainda que eu distribua todos os meus bens
e entregue o meu corpo para ser queimado, se não
tiver amor, de nada me vale’ (1 Cor 13, 3).
Manter o coração limpo de tudo o que
mancha o amor: isto é santidade.” (nn.85-86).
O Concílio parece ser o eixo de encontro dos
dois Franciscos: o de Sales antecipando-o; o de Roma,
aplicando-o. Dito isto, seguiremos comparando apenas
o capítulo V da Gaudete et Esxultate que fala
das “características da santidade no
mundo atual”.
Suportação,
paciência e mansidão (nn.112-121)
Francisco de Roma fala da importância de “permanecer
centrado, firme em Deus que ama e sustenta. A partir
desta firmeza interior, é possível aguentar,
suportar as contrariedades, as vicissitudes da vida
e também as agressões dos outros, as
suas infidelidades e defeitos...” (n.112). Suportar
com paciência e mansidão torna-se uma
postura profética: “O testemunho de santidade,
no nosso mundo acelerado, volúvel e agressivo,
é feito de paciência e constância
no bem (n.112). É preciso “lutar e estar
atentos às nossas inclinações
agressivas e egocêntricas, para não deixar
que ganhem raízes ...” (n.114).
Francisco de Sales é o santo da mansidão
que sabia suportar com paciência os incômodos
do cotidiano. Assim ensinou: “A doçura
e a humildade são as bases da santidade”.
Por isso, com insistência, recomenda estas virtudes:
“Dentre todas as virtudes, vos recomento as
duas mais queridas de Nosso Senhor, as que tanto deseja
que aprendamos d’Ele: a humildade e a doçura
de coração” (Carta 518 a senhora
Brülart, maio de 1609; OEA XIV, 138). E, exortava:
“Nunca sejas violento nas discussões,
ama os que erram enquanto corriges os erros. E, se
suas oposições são distintas,
não empregue nunca a oposição
polêmica, aproxima a luz da luz. Seja tenaz
em amar, em orar, em iluminar. Saiba ter muita paciência,
saiba devolver gradualmente aos equivocados a plenitude
da verdade, daquela que a ninguém é
lícito afastar-se, e ninguém tem permissão
para diminuí-la” (Carta 2097 à
madre Chantal; OEA XXI, 185).
Alegria
e sentido de humor (nn.122-128)
A palavra alegria plasma o pontificado de Francisco
de Roma. É sempre sua primeira palavra. Nesta
Exortação, ele explica: “O santo
é capaz de viver com alegria e sentido de humor.
Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito
positivo e rico de esperança. Ser cristão
é ‘alegria no Espírito Santo’
(Rm 14, 17), porque, ‘do amor de caridade, segue-se
necessariamente a alegria. Pois quem ama sempre se
alegra na união com o amado” (n.122).
Lajeunie nos faz conhecer este pensamento de Francisco
de Sales: “a devoção não
é sombria, nem triste, nem entediada, mas ao
contrário, é uma fonte de alegria pois
consiste em ‘um certo grau de excelente caridade
que nos faz prontos, ativos e diligentes para observar
os mandamentos de Deus e para fazer gostosamente todas
as obras boas que possamos’ incluindo as que
não estão mandadas ‘mas apenas
aconselhadas ou inspiradas’ (2001, p. 246-247).
Conta-se que uma das famosas frases que dizia o santo
bispo é: “Um santo triste é um
triste santo”. Bem afirma o Papa: “O mau
humor não é um sinal de santidade”
(n.126).
Ousadia
e ardor (nn.129-139)
“A santidade é parresia: é ousadia,
é impulso evangelizador que deixa uma marca
neste mundo” (n.129). “Deus é sempre
novidade, que nos impele a partir sem cessar e a mover-nos
para ir mais além do conhecido, rumo às
periferias e aos confins. Leva-nos aonde se encontra
a humanidade mais ferida e aonde os seres humanos,
sob a aparência da superficialidade e do conformismo,
continuam à procura de resposta para a questão
do sentido da vida.” (n.135).
Usando o termo “zelo”, ensina Francisco
de Sales: “O verdadeiro zelo é filho
da caridade, sendo, como é, seu ardor. Esta
é sua característica particular e esta
filiação o reveste de todos aquelas
características que acompanham o verdadeiro
amor. (...) O verdadeiro zelo tem ardores muito inflamados,
mas constantes, firmes, doces, laboriosos, amáveis
e infatigáveis”.
Em
comunidade (nn.140-146)
Francisco de Sales concebe a Igreja na imagem comunitária
do jardim: “A Igreja é um jardim adornado
de infinitas flores, entre as quais reinam diversos
graus, diversos matizes, diversos odores, em suma,
diferentes perfeições, cada uma delas
com seu valor, sua graça, sua beleza, todas
em variadíssimo conjunto, formando agradável
e perfeita formosura” (TAD 2,7).
Francisco de Roma apresenta a mesma beleza formada
comunitariamente: “A santificação
é um caminho comunitário, que se deve
fazer dois a dois. Reflexo disto temo-lo em algumas
comunidades santas. Em várias ocasiões,
a Igreja canonizou comunidades inteiras, que viveram
heroicamente o Evangelho ou ofereceram a Deus a vida
de todos os seus membros. De igual modo, há
muitos casais santos, onde cada cônjuge foi
um instrumento para a santificação do
outro. Viver e trabalhar com outros é, sem
dúvida, um caminho de crescimento espiritual”
(n.141).
Em
oração constante (nn.147-157)
Francisco de Roma: “O santo é uma pessoa
com espírito orante, que tem necessidade de
comunicar com Deus. É alguém que não
suporta asfixiar-se na imanência fechada deste
mundo e, no meio dos seus esforços e serviços,
suspira por Deus, sai de si erguendo louvores e alarga
os seus confins na contemplação do Senhor.
Não acredito na santidade sem oração,
embora não se trate necessariamente de longos
períodos ou de sentimentos intensos”
(n.147).
Francisco de Sales: “A oração
é necessária ao homem: a árvore
que não tem terra suficiente para cobrir suas
raízes não pode subsistir. Assim o homem
não poderá subsistir se não tiver
uma atenção particular às coisas
divinas” (Sermão de 22/03/1615. IX, 48,49,50).
Ela, “fazendo o nosso espírito penetrar
na plena luz da divindade e expondo a nossa vontade
abertamente aos ardores do amor divino, é o
meio mais eficaz de dissipar as trevas de erros e
ignorância que obscurecem a nossa mente e de
purificar o nosso coração de todos os
seus afetos desordenados” (IVD II,I).
Continua Francisco de Roma: “No fundo, é
o desejo de Deus, que não pode deixar de se
manifestar dalguma maneira no meio da nossa vida diária:
‘procura que a tua oração seja
contínua e, no meio dos exercícios corporais,
não a deixes. Quando comes, bebes, conversas
com outros, ou em qualquer outra coisa que faças,
sempre deseja a Deus e prende a Ele o teu coração’’
(n.148).
Francisco de Sales: “Todas as ações
daqueles que vivem no temor de Deus são contínuas
orações e a isto se chama oração
vital... Pode se dizer que aqueles que dão
esmolas, visitam os enfermos e se exercitam em bo
nas obras fazem oração e estas mesmas
boas ações pedem a Deus recompensa”
(OEA VII, 61-62).
Mais uma vez, Francisco de Roma: “Recordemos
que ‘é a contemplação da
face de Jesus morto e ressuscitado que recompõe
a nossa humanidade, incluindo a que está fragmentada
pelas canseiras da vida ou marcada pelo pecado. Não
devemos domesticar o poder da face de Cristo’
(n.151).
E Francisco de Sales: “Mas o que muito em particular
te aconselho é a oração de espírito
e de coração e, sobretudo, a que se
ocupa da vida e paixão de Nosso Senhor: contemplando-o,
sempre de novo, pela meditação assídua,
tua alma há de por fim encher-se dele e tu
conformarás a tua vida interior e exterior
com a sua. Ele é a luz do mundo: é nele,
por ele e para ele que devemos ser iluminados”
(IVD II,I).
____________________________________________
Pensamento do Cardeal Francisco Xavier Nguyen van
Thuan, citado pelo Papa, mas que também se
encontra em Francisco de Sales.
São Francisco de Sales, Tratado do Amor de
Deus, VIII, 11: Opere complete IV (Roma 2011), 468.
“Nenhum melhor que Francisco de Sales, entre
os recentes Doutores da Igreja, soube, com profunda
intuição de sua sagacidade, prever as
deliberações do Concílio”
(Paulo VI, Papa. Carta apostólica Sabaudiae
Gemma, Roma, 29/01/1967).
“Nascia assim (com Francisco de Sales) aquele
apelo aos leigos, aquele cuidado pela consagração
das coisas temporais e pela santificação
do cotidiano, sobre as quais insistirão o Concílio
Vaticano II e a espiritualidade do nosso tempo”
(BENTO XVI, 2011).
SALES, São Francisco de. Filotéia ou
Introdução à Vida Devota. Petrópolis:
Vozes, 2004.
LAJEUNIE,
Étienne-Jean. San Francisco de Sales. El Hombre,
El Pensamiento, La Acción. Vol. II. Salamanca:
Gráficas Cervantes, 2001.
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